Desde “Antes que Natureza Morra” de Jean Dorst a “Réquiem pela Natureza” de John Terborgh, transcorreram quase 40 anos. Os dois livros foram escritos por cientistas famosos e fizeram notícia, denunciando e especialmente demonstrando a destruição cada vez mais acelerada do entorno natural. Centenas de outros livros importantes foram publicados agregando informações e constatações, respaldando as conclusões destes e outros autores. Até que duas enormes reuniões mundiais, a de Estocolmo, em 1972, e a do Rio de Janeiro, em 1992, deram alguma esperança de que, finalmente, as evidências provocariam medidas concretas para se evitar os piores prognósticos. Da Comissão Brüntland e das promessas do desenvolvimento sustentável aos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, sem esquecer as várias estratégias mundiais de conservação, a situação de hoje é muito pior que antes que Dorst escrevera sua obra.
Degradação e mentiras
Até os anos 1980s a luta pela conservação da natureza se anunciava difícil, mas parecia destinada a obter um sucesso razoável. Não obstante, foi precisamente em fins dos anos 1980s que começou o processo que levou à desesperançada situação atual onde, racionalmente, toda esperança de fazer conviver natureza e humanidade parece condenada ao fracasso. Nos últimos 20 anos registrou-se alguns progressos muito divulgados, como o controle dos gases que impactam a camada de ozônio e a tinta verde com a qual os bancos multilaterais, em especial o Banco Mundial, se pintaram. Mas, também, se esconderam incontáveis retrocessos.
O pior é que derrotas evidentes, como a destruição, em constante aumento, das florestas tropicais, tanto como das temperadas e frias; o esgotamento dos recursos marinhos, o incremento de quase todos os parâmetros de contaminação ambiental e a crescente escassez da preciosa água são todas dissimuladas e até apresentadas como triunfos nos meios de comunicação de massa. A perda de milhões de hectares de florestas a cada ano é contrastada com o anúncio do estabelecimento de novas unidades de conservação, ou com as promessas do manejo florestal sustentável e da certificação. A destruição dos recursos aquáticos é dissimulada como o aparente triunfo da aqüicultura. O aumento dos níveis gerais de contaminação é escondido atrás do sucesso de uma ou outra cidade para controlar um ou outro parâmetro de poluição ambiental e, a destruidora mineração, é elogiada pelos míseros paliativos com os quais compensa os danos que faz. Poucos sabem que, visto no seu conjunto, tudo é falso.
Com efeito, as unidades de conservação que de qualquer modo não substituem as florestas e outros ambientes naturais são, na sua maior parte, essencialmente figurativas, pois dentro de quase todas se pode fazer o mesmo que fora delas. Ademais, de qualquer modo, na sua maioria, não são implantadas por falta de recursos e, em especial, pouco se diz que quase na mesma proporção em que são criadas, outras são caladamente eliminadas ou têm seu status de proteção reduzido.
Tampouco se sabe que o tão promovido manejo florestal sustentável certificado em florestas tropicais apenas existe na imaginação de alguns burocratas e que, na verdade, já quase não ficam florestas naturais produtivas e que muitas florestas de zonas frias seguem o mesmo caminho por obra da corrupção dominante na Rússia. Poucos enxergam que as florestas das zonas temperadas da Europa, EUA e Austrália são ainda gradativamente consumidas pelo fogo ateado por especuladores fundiários. Não se diz que a salvadora aqüicultura que produz salmão com sabor ruim, assim como muitas espécies de mariscos sem cor e sem gosto, depende estreitamente da natureza e que ano após ano, as suas fontes, como os manguezais e corais, são mais exíguos.
Quando se fala da água existe mais precisão na denúncia, mesmo retórica, dos riscos de que ela se converta no recurso mais importante do futuro. Mas, assim mesmo, se dão falsas esperanças, como quando no Brasil fala-se da inesgotabilidade do Aqüífero Guarani que, na verdade, já está sendo destruído ou, pior ainda, do milagre verde que acontecerá no Nordeste quando forem desviadas para lá as já minguadas e sujas águas do rio São Francisco. Fazem-se elogios desbragados à qualidade ambiental da mineração em Carajás (PA) e em outras poucas grandes mineradoras, mas se evita cuidadosamente falar dos garimpos anárquicos e das inúmeras pequenas e médias empresas de mineração que destroem tudo a seu redor. A natureza morre, mas a população é induzida a acreditar que está sendo salva pela obra de governos responsáveis, organizações não governamentais poderosas e empresas privadas sérias, sem deixar entrever que essas são as exceções e não a regra.
Conspiração?
Parece existir uma conspiração mundial para transformar a realidade do que acontece com o meio ambiente em uma realidade virtual, completamente diferente da realidade real. Na primeira, anunciam triunfalmente novos programas “milionários” apenas para inglês ver, fazem eventos, distribuem prêmios e pronunciam discursos, muitos discursos e; na televisão se exibe hora após hora paisagens naturais idílicas, intermináveis cenas de felizes animais selvagens e se visitam as riquezas inesgotáveis das profundezas marinhas e, do mesmo modo, se passa revista aos inventos que salvaram o mundo natural.
Claro que não dá para esconder tudo e, com certa freqüência, também se menciona o efeito estufa e se mostram as geleiras derretendo e os ursos polares flutuando para o sul em ilhotas de gelo minguante. Mas a verdade completa não é dita. Pior ainda, em nome do meio ambiente constroem-se hidroelétricas, pois “a água é energia renovável”, hidrovias porque “o transporte aquático é mais eficiente que o terrestre”, programas de “bio-combustíveis porque contaminam menos que os combustíveis fósseis”…. tudo “pela natureza”. Claro que ninguém fala sobre os impactos das barragens nos recursos hidro-biológicos e sobre os recursos naturais terrestres, que serão transformados em fundo de lagos tão imensos como estéreis, nem se fala do impacto das hidrovias sobre os rios e sobre as regiões como o Pantanal que podem secar; nem, muito menos, sobre os aspectos ambientais negativos da produção de álcool e de biodiesel que, somados, são muito piores para o meio ambiente que os combustíveis fósseis. Sempre se trata de meias verdades ou de meias mentiras. No final, sempre é o fato de que alguém vai ganhar dinheiro, muito dinheiro, destruindo o entorno natural.
Ambientalismo enrolado
No meio dessa realidade o movimento ambiental mundial que, até os anos 1980s parecia vigoroso, perdeu o rumo. Passa-se mais tempo se defendendo de outros ambientalistas, que protestando contra os agressores ao meio ambiente e, qualquer agressão denunciada por uns é imediatamente defendida por outros que, também, se dizem ambientalistas ou, agora, melhor dizendo, sócio-ambientalistas. Os agressores, em geral os que modelam o mundo a partir da insanidade de acumular dinheiro e poder sem sequer saber para que, vivem sem ser molestados, pois sempre existirá um ambientalista disposto a destruir o outro, anulando-se mutuamente e deixando os destruidores livres de problemas.
O ambientalismo virou um monstruoso bicho de mil cabeças que enrolou tanto seus longos pescoços uns com os outros que já não consegue nem se defender e muito menos convencer o resto dos humanos de que existe um perigo real e iminente. Até os anos 1980s existiam manifestações públicas multitudinárias em prol da conservação da natureza. Essas expressões de descontento popular até forçaram o Banco Mundial a mudar sua política e a se transformar em um razoável defensor do meio ambiente que, através da sua influência no terceiro e quarto mundo, tem conseguido promover agências ambientais e comportamentos mais sérios em quase todas as partes. Hoje, o Banco Mundial e os demais bancos multilaterais já esqueceram em grande medida o tema ambiental e estão desmantelando suas capacidades nesse tema ou, subordinado-as às prioridades em infra-estrutura.
Como se chegou a essa situação? Será que o grande público cansou-se do assunto e perdeu interesse? Será que o fato de que agora existam agências ambientais governamentais em cada país, não faltando nelas personagens reputadas como heróis ambientais, faz com que se acredite que tudo está resolvido? Mas, de que serve botar grandes nomes da propaganda ambiental nos ministérios quando se lhes asfixia com orçamentos ridiculamente exíguos? Ou será que a gente ficou tão confundida com as mil e uma vozes dissonantes do ambientalismo, e já não sabe mais a quem ou em que acreditar? Possivelmente exista um pouco de verdade na resposta a cada pergunta, embora a última deva ser a principal causa do desinteresse público e, em conseqüência, da falta de prioridade política para com esse tema.
Na verdade, hoje nem sequer se sabe o que é um “ambientalista”, ou que coisa é o “ambientalismo”. Com efeito, se sob o termo genérico ambiental, alguns ambientalistas com acesso à imprensa dizem que para salvar a biodiversidade devem-se estabelecer áreas protegidas naturais e, no mesmo dia, outros dizem que a melhor forma de protegê-la é explorando-a, a confusão fica estabelecida. Tem até “ambientalista” que fala “seriamente” que a agricultura tradicional é uma fonte de diversificação da biodiversidade. O pior é que levado ao extremo teórico, existe uma minúscula parcela de verdade em cada resposta destes últimos, que é amplificada até o absurdo, especialmente pelo ambientalismo social radical, apenas para defender seu ódio fundamentalista pela realidade e pelas idéias dos outros.
O ambientalismo social
Acontece que o tema ambiental até os anos 1980s era essencialmente assunto de graduados das ciências biológicas e de amadoristas da natureza. A crescente importância e complexidade do tema ambiental que, na verdade, abarca todas as atividades humanas imagináveis, provocou uma enorme diversificação dos profissionais que trabalham no assunto. A mais decisiva incursão de novos chegados ao tema ambiental foram os cientistas sociais, especialmente antropólogos e sociólogos. Eles foram atraídos ao tema pelo fato ou, segundo outros, pelo pretexto, de que muita gente pobre rural vive, precisamente, na fronteira agroflorestal ou na fronteira da humanidade com a natureza, incluindo os indígenas que vivem na natureza. De uma parte, dependendo da tendência filosófica entre os extremos de direita e mais comumente de esquerda da sociologia ou da antropologia, esses recém chegados se alinharam contra a proteção da natureza que, segundo eles, impedia ou limitava os direitos dos mencionados habitantes.
Os mais radicais passaram a defender a tese de que os povos da floresta são protetores da natureza e, logo, que eram seus “únicos” verdadeiros e legítimos defensores. A influência dos cientistas sociais não se limitou, logicamente, à natureza, mas se expandiu, em muitos casos justificadamente, aos outros temas ambientais, como os relativos ao uso da água, à contaminação urbana e rural, às obras de engenharia, etc. Mas é nos temas de proteção da natureza onde sua intervenção produz a maior confusão e que, pouco a pouco, se converteu na sua maior inimiga.
Seria bom acreditar que a participação social nos temas de conservação da natureza se deve a seu desejo de proteger a gente contra o abuso dos que pretendem proteger uma porção da natureza. Mas, na realidade, aponta a outros motivos bem menos respeitáveis. Por exemplo, não cabe dúvida que grande parte do interesse social pela natureza ou pela “ecologia”, como alguns dizem, é produto dos recursos aparentemente grandes que foram oferecidos para o meio ambiente nas últimas duas décadas. Não é coincidência que subitamente, bem no final dos anos 1980s e em especial nos anos 1990s proliferaram as ONGs sócio-ambientais, nome esquisito e objetivo ainda mais curioso, pois a conservação da natureza sempre teve por finalidade aprimorar a qualidade da vida humana, embora seja fato inelutável que para isso deva-se com freqüência proteger a natureza do homem, que é seu único inimigo conhecido.
Hoje elas dominam não só as ONGs dos países em vias de desenvolvimento mas, também, a maioria das grandes ONGs internacionais e também algumas organizações internacionais criadas para defender a natureza, como a União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN) e, assim mesmo, influenciaram as organizações do Sistema das Nações Unidas e muitas agências bilaterais. A agência britânica de cooperação internacional (DFID), que já condicionava seu apoio a projetos de meio ambiente a incluir temas sociais inclusive fora de todo contexto, agora eliminou o tema ambiental de sua área de interesse.
Os diplomatas também se envolveram na temática ambiental e é graças a eles que se dispõe atualmente de um conjunto de acordos internacionais quase inaplicáveis. Eles assumiram os problemas ambientais, que são transnacionais por definição, como assuntos de Estado, embora, apenas de seus próprios Estados. As negociações, como seu nome indica, se limitaram a ver quem tira mais e melhor proveito para seu país ou, em especial, para sua glorificação pessoal sobre temas científicos complexos que, obviamente, os negociadores nunca compreenderam bem. Assim travaram, mitigaram e complicaram tanto os convênios que hoje na sua maioria são letra morta na prática. Mas não na teoria, pois, todo dia, pode-se ler e escutar elogios a acordos e negociações internacionais como as convenções sobre biodiversidade, mudança climática, comércio de espécies ameaçadas ou sobre reservas de biosfera, sítios de patrimônio mundial, agenda 21 ou os objetivos do milênio. Ou seja, uma gigantesca montanha de papo furado que só serve para dissimular a trágica realidade da destruição a cada dia mais acelerada das bases da vida na terra.
Fechando o circuito
O começo do século XXI se parece muito ao do século XX por então o tema ambiental estar no seu ponto mais baixo porque a gente acreditava, com relativa honestidade, que os recursos naturais eram inesgotáveis. Lá estavam as imensas florestas dos trópicos e das terras frias, ainda cheias de animais selvagens; apenas se começava a conhecer o ártico e a visitar o antártico; os mares tinham tanta pesca que ninguém imaginava possível seu esgotamento. Até o Haiti, hoje uma rocha pelada, estava coberto de florestas onde não se cultivava cana-de-açúcar. Nessa abundância, os que se preocupavam pela natureza eram muito poucos e nunca escutados. Mas, após a segunda guerra mundial as coisas começaram a mudar ante a evidência da destruição que o progresso econômico de pós-guerra ocasionava.
Apareceram os movimentos protecionistas, claramente exagerados na sua visão de proteger a fauna e a flora. Mas, gradativamente converteu-se ao “conservacionismo”, uma filosofia que defendia praticamente os mesmos objetivos que o “desenvolvimento sustentável” não obstante sem acreditar nem vender a idéia de que se pode crescer ilimitadamente sem destruir o entorno natural. O sócio-ambientalismo, última edição da evolução cíclica do pensamento em relação à natureza, voltou aos princípios da “inesgotabilidade dos recursos” e faz todo o possível para destruir o pouco de natureza que sobreviveu este século. Ele favoreceu a exploração das florestas, entrega as unidades de conservação aos povos, se opõe às proibições de pesca ou de extração de palmito, permite a caça com fins de consumo familiar, etc. A única condição requerida é ser auto declarado “população tradicional”, índio, negro ou, também “sem-terra”.
Para o sócio-ambientalismo esse pessoal tem a poção mágica que transforma suas destruições do ambiente natural em ações que conservam a natureza. Todos os outros, inclusive os ambientalistas não afiliados ao sócio-ambientalismo, a destroem. Apesar das múltiplas evidências acumuladas, começa-se o século XXI de forma muito parecida a como se começou o XX, ou seja, se comportando como se a vida natural fosse inesgotável. Tanto é verdade que até se pretende usar a vida para fazer combustíveis sem esperar bilhões de anos para que previamente se transformem em fósseis. E muitos, a maior parte dos sócio-ambientalistas, acham isso uma ótima idéia.
Oxalá o futuro próximo devolva coerência e força ao movimento ambiental. Oxalá isso aconteça antes que os impactos evidentes da destruição alegremente tolerada e até fomentada pelo sócio-ambientalismo determine a irreversibilidade da miséria das mesmas populações que são pretensamente defendidas por ele. O sócio-ambientalismo, antes de reconhecer que proteger a natureza passa por controlar algumas atividades humanas, prefere somar seus esforços aos dos desenvolvimentistas. Como foi mencionado antes, o único inimigo da natureza é o ser humano e, como os humanos ainda não sabem como sobreviver fora da natureza ou sem ela… Bom, melhor é não esperar para ler dentro de 40 anos outro livro como os mencionados, pois esse não encontrará superlativos disponíveis para seu título. Será o último a ser escrito.
Leia também
Fim dos lixões, uma promessa reciclada
A implementação de uma política ambiental robusta, focada no encerramento definitivo dos lixões, não é apenas uma imposição normativa, mas um imperativo ético e estratégico →
Ilegalidade atinge 75% do desmatamento registrado em Mato Grosso em 2024
Nota Técnica elaborada pelo ICV mostra que “tratoraço” normativo registrado no estado ameaça metas ambientais assumidas pelo executivo mato-grossense →
Aridez avança e 3/4 do planeta ficaram mais secos nas últimas décadas, diz estudo da ONU
Relatório apresentado na COP da Desertificação, que acontece na Arábia Saudita, aponta que 40,6% das terras do mundo são áridas; aridez cresce no Nordeste e Amazônia corre risco →