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Superfluidade e unidades de conservação

Formalizar mosaicos de unidades de conservação é uma redundância que engana a população. Em vez de proteger ou aumentar áreas preservadas, o governo gasta mais com reuniões.

21 de dezembro de 2006 · 18 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

Com a pompa ministerial costumeira foram assinadas, no dia 11 de dezembro, as portarias 349, 350 e 351 do Ministério do Meio Ambiente reconhecendo três novos Mosaicos de Unidades de Conservação, neste caso na Mata Atlântica. A notícia oficial cuidou muito de destacar que esses mosaicos abarcam mais de 900 mil hectares de muito ameaçada floresta que contém grande parte das riquezas biológicas do país. O que não diz a notícia é que nem um metro quadrado de terra foi agregado ao que já estava protegido. Tampouco diz qual é o benefício ou utilidade dos tais “mosaicos” e muito menos no que se diferenciam dos “sistemas de unidades de conservação federal e estadual”, dos “corredores biológicos” e das “reservas de biosfera”, todos redundantemente superpostos no mesmo espaço. Ou isso foi uma resposta ao recente relatório do INPE e da SOS Mata Atlântica sobre a incessante destruição da Mata Atlântica?

O artigo 26 da Lei N° 9.985 que estabelece o Sistema Nacional de Unidades de Conservação e, do mesmo modo, os sistemas correlatos estaduais e eventualmente municipais, menciona que: “quando existir um conjunto de unidades de conservação de categorias diferentes ou não, próximas, justapostas ou sobrepostas, e outras áreas protegidas públicas ou privadas, constituindo um mosaico, a gestão de conjunto deverá ser feita de forma integrada e participativa”. Isso se vê muito sensato e óbvio no papel. Mas, esquece-se que a mesma lei prevê o estabelecimento de corredores ecológicos e de reservas de biosfera que, ainda que tenham outros propósitos, no seu aspecto de gestão implicam exatamente as mesmas coordenações. De outra parte, o sistema nacional (que inclui a coordenação das unidades de conservação federais com as estaduais) e as estaduais (que também incluem a coordenação com as áreas protegidas federais no âmbito do Estado) são em termos de gestão integrada mais do mesmo. Ou seja, se não há erro, a gestão das unidades de conservação da Mata Atlântica requer cinco mecanismos de gestão superpostos, sem considerar os próprios a cada unidade, como são os conselhos consultivos. Resumindo, se os ditos mecanismos de gestão se reúnem, por exemplo, duas vezes por ano, se estaria falando de não menos de 12 reuniões todas praticamente com a mesmo pessoal ou com as mesmas instituições a cada vez. Trata-se, sem dúvida, de um caso agudo de “reunionitis”.

É importante considerar que a coordenação interinstitucional e entre unidades de conservação vizinhas para aprimorar a gestão de cada uma e de todas no seu conjunto é a essência da gestão de um sistema de unidades de conservação. A gestão do sistema nacional ou dos estaduais implica considerar prioritariamente tudo o que se refere às relações entre áreas protegidas e o entorno de cada unidade. Isso é inerente ao conceito de sistema. Do mesmo modo, a gestão de cada unidade não pode ser feita em abstração do que a mesma entidade ou outras fazem nas unidades de conservação do entorno. Ou seja, isso de “legalizar” ou “formalizar” mosaicos de áreas protegidas é pura redundância. Neste caso mais ainda porque os corredores ecológicos são, por definição, mosaicos de áreas protegidas em uma ou outra forma que permitem a conexão entre elas, assegurando o fluxo genético, evitando o isolamento. E, finalmente, também porque a razão de ser das reservas de biosfera é a gestão integrada e que, nelas, as unidades de conservação de proteção integral e as outras são as áreas núcleo.

Ninguém deveria se preocupar pela enfermidade conhecida como “reunionitis”, inclusive nesta sua versão muito aguda se, como deveria ser, cada unidade de conservação do “mosaico” tivesse os recursos financeiros e o pessoal necessário para manejá-las adequadamente. Mas a realidade é que cada uma delas está desde muito carente até totalmente abandonada. Sem apoio significativo dos governos correspondentes, elas estão sendo desmatadas e transformadas em bananais. Suas árvores e palmeiras mais preciosas são roubadas, seus animais são perseguidos a tiros a cada noite e suas áreas mais bonitas são alvo dos especuladores de terra e convertidas em hotéis e residências particulares, tudo isso muitas vezes com o apoio e a conivência de autoridades. Basta ler O Eco, o Ambiente Brasil ou qualquer outra fonte de notícias ambientais não estatais para saber que isso é denunciado por dezenas a cada dia. Mas o escasso dinheiro disponível para o manejo efetivo das áreas protegidas vai ser usado para mais reuniões, onde se sabe de sobejo que não passará nada, quer seja por falta de quorum ou, principalmente, porque não havendo recursos, nenhuma decisão poderá ser implementada. Apenas aparecerá, nos relatórios e na imprensa, que os técnicos das repartições públicas tiveram uma “importante e decisiva” reunião para garantir o manejo integrado das unidades de conservação do “mosaico” que protege “tantos hectares” e “tantas espécies em perigo de extinção”. Não se falará do gasto estéril em viagens, diárias e coquetéis.

Por último, o mais chocante, é o óbvio propósito de enganar a população fazendo-a acreditar que existe muita terra protegida e que os governos fazem muito para defender o patrimônio natural. A notícia sobre o “mosaico” evita cuidadosamente mencionar que os sistemas nacionais e federais, os mosaicos, as reservas da biosfera e os corredores ecológicos são, todos, a mesma coisa, reduzidas na realidade às mesmas unidades de conservação de sempre. São apenas nomes diferentes, que acarretam mais custos ociosos, para a mesma pobre e abandonada tarefa. Igualmente revoltante é o fato de ser essa “notícia” propalada na mesma semana em que a realidade da destruição da Mata Atlântica deveria obrigar aos responsáveis por evitá-la a ficarem calados.

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