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Efeito estufa e segurança nacional

Militares dos EUA elaboram relatório sobre conseqüências do efeito estufa para a segurança nacional dos países e recomenda que americanos contribuam mais no combate ao fenômeno.

8 de maio de 2007 · 18 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

Da enorme quantidade de documentos sobre o efeito estufa que estão circulando pelo mundo afora, existe um particularmente interessante, porque é diferente. Não aporta dados novos sobre o fenômeno, mas ressalta, com precisão militar, algumas das suas conseqüências para a sociedade. Com efeito, um grupo de oficiais norte-americanos aposentados, da mais alta patente e com histórias de vida notáveis, nesse documento correlacionam as implicações das mudanças climáticas previstas com os riscos, muitos deles inéditos, que agora ameaçam a segurança dos EUA. A América Latina é frequentemente mencionada no relatório, mas o importante é que os riscos que prevêem para os EUA têm grandes probabilidades de afetar igualmente a América do Sul.

Trata-se do relatório “National security and the threat of climate change” (“Segurança nacional e mudanças climáticas”) preparado pelo Military Advisory Board (Grupo Assessor Militar) da CNA Corporation, um conhecido grupo de reflexão dos EUA. Os militares que compõem o grupo incluem personagens do calibre do Vice Almirante Richard H. Truly, que foi Administrador da NASA e, ademais, recebeu suporte técnico das maiores eminências de áreas científicas do país. Evidentemente o relatório discute os riscos e alternativas para a segurança dos EUA e faz as recomendações que melhor convém a esse país. Mas é provavelmente o melhor e mais transparente relato das ameaças que as sociedades de qualquer país do mundo deverão enfrentar em breve e, entre linhas, as que por conta do processo podem se derivar da atitude das grandes potências com relação a outros países. Merece ser lido com cuidado, em especial por políticos e por responsáveis das forças armadas da América Latina.

Segundo o documento, nada no cenário geopolítico mundial ficará no curso previsto até agora, se as previsões sobre impacto da mudança do clima se materializarem. O resumo do relatório indica quatro conclusões gerais: (i) a mudança climática esperada é uma ameaça muito séria para os EUA; (ii) ela atuará como multiplicadora da instabilidade nas regiões mais voláteis do mundo; (iii) aumentará as tensões, inclusive em áreas atualmente estáveis como a União Européia e a América Latina e; (iv) a mudança climática, a crise energética e a segurança nacional são temas interdependentes que devem ser abordados em conjunto.

O relatório faz cinco recomendações ao governo: (i) integrar plenamente o tema da mudança climática nas estratégias de segurança e defesa nacional; (ii) os EUA devem exercer um rol bem mais forte que o atual, nos planos nacional e internacional, para ajudar a minimizar a mudança climática nos aspectos que mais podem influir na segurança e estabilidade; (iii) os EUA devem cooperar com países menos desenvolvidos para ajudar-lhes a dispor de capacidade para manejar a mudança climática; (iv) o Departamento da Defesa deve promover, através do setor privado, as melhorias tecnológicas que aumentarão o poder combativo das forças armadas por meio da maior eficiência energética e; (v) o Departamento da Defesa deve avaliar a situação das instalações militares frente aos riscos decorrentes da mudança climática.

As mudanças climáticas impactarão diretamente na disponibilidade de água, na produção de alimentos e na saúde. E provocarão consideráveis perdas de terra por alagamento nas áreas costeiras, que são as mais povoadas. Alguns países e regiões terão muita água doce e outros, pelo contrário, a cada dia terão menos. O incremento da violência dos fenômenos climáticos impactará mais na infra-estrutura, superando a capacidade dos governos de prestar assistência e recuperá-la, disseminando insatisfação popular, como aconteceu até nos EUA com o furacão Katrina. Os enormes câmbios previsíveis na capacidade de cada país para produzir alimentos que, por razões naturais e sócio-econômicas, afetarão mais aos menos desenvolvidos, provocarão novos processos migratórios em procura de recursos, ou aumentará os atuais.

A maior incidência de enfermidades, agora sob relativo controle, exacerbará os processos migratórios e disseminará os problemas sanitários. Assim, governos que atualmente parecem estáveis poderão perder o controle, ocasionando o aumento da delinqüência, do extremismo e de outros elementos da instabilidade. A brecha entre ricos e pobres, para enfrentar os novos problemas, será muito maior e as tensões sociais aumentarão inevitavelmente. Todas essas situações, segundo o relatório, serão terreno fértil para mudanças políticas drásticas, revoluções e novas ditaduras e, especialmente, serão favoráveis para o terrorismo em todas as suas modalidades, especialmente a internacional.

A América do Sul, no documento, merece menos atenção que a África, Ásia e o Oriente Médio, embora não deixe de ser citada. A perda drástica, já evidente, das geleiras andinas tropicais é mencionada como exemplo de uma tragédia anunciada para a populosa costa do Peru, que depende exclusivamente dessa fonte para a agricultura, geração de energia e consumo urbano. Lima, uma cidade de uns sete milhões de habitantes, localiza-se em um deserto absoluto e muito mais da metade dessa população mora diretamente sobre a areia das colinas dos arredores, onde a água já é fator limitante. Eles, quase todos migrantes da década do terror imposto pelo Sendero Luminoso, são os mais pobres. Mais ainda, muitas das cidades da costa peruana, como Callao, na Grande Lima, têm extensas áreas pouco acima do nível do mar. Uma subida do mar de poucos centímetros pode multiplicar a intensidade de fenômenos comuns, como ressacas e, claro, deslocar outra porção da população. Fácil é imaginar as convulsões sociais que essa cidade sofrerá quando a escassez de água e os impactos costeiros forem mais agudos. Os habitantes dos vales andinos padecerão do mesmo problema de escassez de água, mas, o mais grave, é que o futuro da agricultura nesse país, irrigada quase na sua totalidade, também é uma incógnita. O problema mencionado para o Peru afetará também partes do Equador, Bolívia e Venezuela.

O Brasil, no relatório, aparece sob uma ótica mais otimista, embora muito do que ele conclui se aplica igualmente a este país como, por exemplo, o incremento de migrações indesejadas de países vizinhos. O relatório menciona o poder desestabilizante do impacto das inundações e dos fenômenos meteorológicos, como tormentas e ciclones no litoral e o incremento do impacto das secas no Nordeste ou, possivelmente, na Amazônia. Em um parágrafo menciona a incapacidade de o governo brasileiro para controlar o crime organizado (o Primeiro Comando da Capital) no Rio de Janeiro como um exemplo de problemas que poderão proliferar e acarretar mudanças sociais importantes.

O relatório não tem preocupação ambiental. Não abunda em dados, nem oferece dados novos e nem menciona, por exemplo, os riscos de perda da biodiversidade e as implicações econômicas. Sobre o último, apenas menciona que a economia de todos os países e do mundo vai sofrer grandes modificações. O relatório só é uma aproximação geo-estratégica do que se espera aos EUA no futuro mediato e uma invocação para que o governo e os militares tomem medidas urgentes. Por isso é um enfoque original e, como mencionado antes, outra tarefa que dele deriva dele é de se ler entre linhas o que a América Latina pode esperar dos EUA se as previsões das mudanças climáticas se cumprirem.

De uma parte, é provável que seja possível obter mais apoio dos EUA e dos países ricos para amenizar o efeito estufa ou suas conseqüências. Também, é de se supor que virá mais apoio para que os governos dos países da região não percam o controle, ou seja, que mantenham a “estabilidade” social, que o relatório menciona com tanta freqüência e como tão desejável. De outra, é evidente que a partir do momento em que os EUA considerarem os acontecimentos em um país qualquer como risco sério, eles se reservam o direito de intervir da forma que os mesmos julguem adequada. Isso, de fato, não é novidade, mas agora adquire um novo perfil e suas probabilidades aumentam muito. Por tudo isso, analisar cuidadosamente essa problemática e, assim mesmo, levar mais a sério o que acontecerá em termos de convulsões sociais em cada país da região, é uma tarefa tão urgente por aqui como nos EUA.

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