Muitos anos atrás fomos orientadores de uma tese de mestrado cuja hipótese era que a legislação florestal vigente não era acatada nem sequer pelo congresso que a preparou e muito menos ainda pelo governo que a promulgou e que tinha a obrigação de aplicá-la. O plano do mestrando era avaliar, artigo por artigo, a aplicação de uma lei que já tinha dez anos de vigência. Seu chocante resultado foi que nenhum dos cento e tanto artigos tinha sido fielmente acatado. Apenas 30% deles tinham sido parcialmente ou apenas formalmente aplicados e os restantes, alguns deles fundamentais, não só tinham sido ignorados, senão que foram sistematicamente violados. Transcorridos 35 anos desde esta experiência e já completamente esgotada a ingenuidade, sabemos que isso é rotina e que esse fato, entre outros, explica porque a questão ambiental anda tão irremediavelmente mal na América Latina.
Recentemente nos foi relatado o destino infeliz da iniciativa de fazer coleta seletiva de lixo da prefeitura da cidade onde agora moramos. Escolheram os bairros onde começar, fizeram campanhas educativas e arranjos administrativos para a coleta e o processamento do lixo. Tudo funcionou às mil maravilhas, para satisfação geral, por cerca de quatro anos. Mas, pouco a pouco, foram aparecendo pelas ruas essas bem conhecidas carroças puxadas por animais raquíticos, veículos motorizados caindo aos pedaços e até triciclos que, se antecipando aos caminhões do lixo, roubam as bolsas contendo metais, garrafas e papéis e, em procura de algo a mais, esvaziando o resto na vereda. Aos poucos, os “piratas do lixo” destruíram a coleta pública seletiva que, não dispondo mais do lixo “nobre” deixou de ser rentável e, claro, desestimulando os vizinhos que deixaram de fazer a seleção prévia. Agora, os piratas levam tudo e, para cumprir seus propósitos, esvaziam o lixo em áreas públicas e não se preocupam de que o vento disperse o que eles não querem e que isso termine entupindo esgotos e drenos e ocasionando desastrosos alagamentos urbanos. Em conclusão, acabou a coleta seletiva, as empresas que faziam o serviço perderam o interesse e muitos operários que tinham um trabalho legal e decente o perderam e, de outra parte, a cidade está mais suja. Os “piratas do lixo” ocasionam desde acidentes de trânsito, até toda classe de problemas sociais adicionais, como dispersão de pragas e enfermidades. Não é necessário mencionar que esse problema social e ambiental é evidente em todas as cidades do país e que, bate qualquer recorde precisamente em Brasília, no entorno do lar e dos palácios dos legisladores.
Quantas leis e regulamentos federais, estaduais e municipais são violados apenas no exemplo anterior, bem sob o nariz dos que as prepararam e dos que devem fazê-los cumprir? Não se trata unicamente de legislação ambiental. Neste caso se viola igualmente as de saúde e as de trânsito. Os “veículos” usados carecem de placas, faróis de freio ou até do próprio freio e não respeitam a velocidade mínima, regras de estacionamento nem nenhuma outra norma. Por que os “piratas do lixo” podem fazer livremente, sem restrição, o que nenhum outro cidadão pode fazer? A lei é só para uns? Afinal, esses pobres ou, neste caso, os pseudo-pobres, pois todos recebem bolsa família e bolsa-nao-sei-que, além de ter educação e saúde gratuita, habitação livre (em geral acampam em locais proibidos) e eletricidade e água grátis (simplesmente roubam esses serviços), ganham muito mais que qualquer operário honesto, que trabalha com carteira assinada. Com tanta vantagem eles nunca vão fazer um esforço para ser como os demais. É muito melhor continuar disfarçado de miserável. Também é em grande parte por isso que o meio ambiente urbano segue sendo um lixo.
A Ilha de Santa Catarina providencia outro exemplo de evidente falta de atenção à legislação, neste caso a florestal. Apesar de muito bem vinda, a operação Moeda Verde, deixou dúvidas com relação ao que pensavam as autoridades federais, estaduais e municipais para permitir, durante anos, violações tão óbvias de suas legislações; deixando acontecer toda classe de construções nas ladeiras mais empinadas das montanhas, destruindo a Mata Atlântica ou atropelando as matas ciliares, restingas, dunas, manguezais e praias. Qualquer pessoa, a olho nu e dia a dia, pode ver progredir estas invasões e é impossível imaginar que o pessoal treinado e os custosos e sofisticados aparelhos de sensoriamento remoto das agências públicas ambientais não tenham detectado isso, que até é gratuitamente visível, com algum atraso, no Google Earth. A operação Moeda Verde paralisou temporariamente as invasões mais evidentes, as das empreiteiras. Mas, nos dois meses transcorridos após a operação, só afetou alguns ricos, pois os pobres continuam fazendo exatamente o que eles querem. Ou seja, trepar nos morros, matar árvores deixando-as secar lentamente e logo, plantando pasto ou fazendo uma chácara e, após um lapso prudente, onde não passa nada, constroem primeiramente uma cabana que gradativamente se transforma em uma casa de material nobre. Ninguém viu, ninguém sabe de nada, ninguém se preocupa de cumprir ou fazer cumprir a lei.
Nem vale a pena, neste caso, falar outra vez das inúmeras violações da legislação ambiental de nível nacional, com tantas leis que só servem para fazer o povo acreditar que seu bem-estar está garantido e, para aparentar que são cumpridos ou superados os padrões internacionais e se respeitam os acordos e tratados. As leis são vítimas de burla desde o momento que saem do legislativo amputadas dos artigos que teriam garantido sua aplicação. E, se o legislativo esqueceu-se de eliminar esses mecanismos financeiros, pode-se estar seguro que o executivo os eliminará, usando e abusando de suas prerrogativas. Consequentemente as leis ambientais nascem, todas, mortas ou estéreis, pois têm custosas obrigações e pouquíssimas condições de executá-las. Assim, o país tem muitos parques nacionais maravilhosos, mas muitos estão ainda nas mãos dos proprietários originais, que nunca receberam o justo pagamento pelas suas terras. De outra parte, de que serviria que as terras fossem realmente incorporadas ao domínio público se o Ibama (ou agora o “Chibio”) não tem recursos nem para pagar os guardas ou manter as infra-estruturas de visitação? Uma vez pode parecer um erro, mas, quando nenhuma lei ambiental dispõe dos recursos que requer para sua implementação, o que se demonstra é que os legisladores tiveram mesmo a intenção de que a lei não sirva para nada. Nem sequer a Lei de Crimes Ambientais está cumprindo uma das suas funções, que é a de aportar fundos para o sistema ambiental.
Muitas das violações mais palpáveis da legislação são, na teoria, concessões aos mais pobres. Os carvoeiros, a maior parte dos madeireiros, os garimpeiros, os motoqueiros, os invasores de morros e matas ciliares para fazer favelas, os invasores do direito de via de estradas e ferrovias e de terras públicas para a expansão de aeroportos, ou em unidades de conservação, são todos, oficial ou realmente, pobres e, porque são “pobres” suas ações são, em geral, toleradas e até convalidadas. Para isso se aprovam medidas legais subalternas que criam exceções anticonstitucionais em países onde a base da democracia é, precisamente, a inexistência de diferença entre os cidadãos. Se ante a lei todos são iguais, todos devem acatá-la. Em nenhuma parte está descrito que as leis são somente para a classe média, pois como elas são feitas ou são distorcidas, não se aplicam para os pobres e, como se sabe, os ricos evitam o que não lhes é conveniente.
A legislação ambiental, incluída a florestal, apenas pretende estabelecer as regras necessárias para que o patrimônio natural da nação continue para sempre brindando os bens e serviços que a sociedade precisa, cada dia mais. Muito da legislação ambiental garante o direito da geração atual e em especial das futuras a um ambiente apropriado para a vida, que satisfaça as necessidades humanas e evite catástrofes ambientais como falta de água e o efeito estufa. Os danos ao ambiente não são piores ou menores se os ocasionantes são ricos ou são pobres, como tantos políticos de hoje parecem acreditar. São simplesmente danos para a sociedade e ninguém, nem rico, nem pobre, deve ter o direito de prejudicar a todos. Parece simples. É base do sistema democrático, mas não funciona assim.
O autor sabe que, se for feito um balancete dos prejuízos ambientais por ricos e por pobres, é possível –embora não seja seguro- que os ricos tenham mais responsabilidade global que os pobres na destruição ambiental. Também sabe que, detrás dos mais miseráveis entre os pobres que infringem a lei, incentivados pela tolerância das autoridades, sempre está o beneficio de ricos, sejam eles indivíduos ou empresas. No final, as cadeias tróficas funcionam por igual na sociedade e na natureza. Mas, será que isso é escusa suficiente para não fazer cumprir a lei? Acaso não cumprir a lei, tolerando ou perdoando as violações, mais a uns que a outros, se está contribuindo para aliviar a pobreza? Desde quando a disciplina social é geradora de pobreza? Não é possível esquecer a nossa consternação visitando o programa favela-bairro no Rio de Janeiro. De um lado da rua está a favela cujos moradores têm obtido tudo gratuitamente. Desde o terreno, que foi invadido, até a eletricidade, a água e todos os demais serviços, sem pagar imposto predial, nem outro tributo. Do outro lado da rua está o bairro, onde cada família comprou com seu dinheiro o terreno, construiu sua casa, onde paga a eletricidade e a água que consome e ademais os impostos e tributos. Os cidadãos do bairro são, obviamente, tanto ou mais pobres que os da favela. Porque, então, estes últimos, que violam todas as leis do país e da cidade, são beneficiados adicionalmente, com o programa que constrói para eles ruas, elevadores, drenos, parques, jardins, centros esportivos, postos médicos, entre muitos benefícios que os outros pobres, os que atuam dentro da lei, nunca receberam? O fato é que não se remediam as coisas fazendo sentir idiotas aos que vivem dentro da lei.
É muito melhor para os pobres e para a sociedade como um todo que a lei seja respeitada. Os poucos prefeitos que têm a coragem de tirar vendedores ambulantes das veredas e das ruas, ou de evacuar invasores de áreas e prédios públicos, prestam um serviço à nação. Estão fazendo cumprir a lei. Por isso existe a lei e para isso eles foram eleitos. O problema assim criado, ao invés de continuar oculto, é revelado e, por isso, impõe solução. E nesses casos o problema sempre é resolvido, seja estabelecendo mercados populares ou assentamentos em locais mais apropriados. Não se pede, por exemplo, que os “piratas do lixo” sejam fuzilados. Apenas deve obedecer a lei, como todos. Se os prefeitos demolissem, por igual, mais casas de ricos e pobres quando construídas em áreas ilegais, poucos se atreveriam a perder dinheiro fazendo-as.
Continuar fazendo legislação que não pode ser aplicada, que não é aplicada, ou que é sucatada por exceções que exacerbam as desigualdades, não significa resolver problemas, mas sim criar novos bem mais sérios. A legislação estabelece as regras de convivência da sociedade e assim mesmo as regras que asseguram sua sobrevivência, como no caso da ambiental, que garante a qualidade da vida e até a própria vida humana. Por isso, não é possível aceitar que a legislação se transforme numa farsa ou que seja ignorada, distorcida ou aplicada seletivamente. Caso contrário, nos afundaremos na anarquia.
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