Que podem ter em comum a fauna selvagem e a agricultura intensiva? À primeira vista a relação entre estes dois temas, excetuando o caso das invasões de bichos do mato nos campos de cultivo e, evidentemente, dos insetos e outros artrópodes e invertebrados, é aparentemente muito pouca. E em qualquer caso, cabe imaginar que seria negativa. Até certo ponto é assim mesmo. Mas, no deserto irrigado do sul do Peru, onde se produz uva para exportação, ou para produzir famosos piscos e vinhos, foi utilizada uma técnica de manejo da fauna selvagem para reduzir as perdas econômicas provocadas por algumas aves, que se tornaram pragas. O manejo da fauna implantado se converteu em controle biológico aproveitando outras aves, neste caso os belos falcões.
O deserto do Departamento de Ica, na costa central do Peru é sob qualquer parâmetro, um dos locais mais secos do planeta. Uma imensidade sem nenhuma vegetação e dunas enormes comprovam este fato. Devido ao efeito estufa que degela os glaciais andinos nesse deserto existe agora uma maior disponibilidade de água no lençol freático que, embora sendo evidentemente temporária, permite que extensas porções sejam ocupadas pela agricultura. Campos de aspargos e de parreiras, dentre outros cultivos, se estendem a perder de vista, regados por micro-aspersão ou gotejamento eletronicamente controlado. Tratam-se de especulações altamente sofisticadas, orientadas essencialmente à exportação.
Apesar de que se poderia pensar que essas ilhas verdes no deserto, por serem artificiais e pela intensidade da tecnologia aplicada, sejam desertos biológicos, o fato surpreendente é que a realidade é bem o contrário. A partir da aplicação de estratégias simples, nessas ilhas existe uma extraordinária explosão de vida, que contradiz todos os preconceitos ecologistas de moda. Para amostra, se relata o que ocorre em duas propriedades da Agrokasa, uma empresa familiar fundada há 56 anos que é liderada pelo Sr. José Chlimper, um empresário famoso por ser inovador. As propriedades são Santa Rita, com 188 ha e Santa Catalina, com 1.100 ha.
O Sr. Chlimper, de uma parte, ficou intrigado pela abundância, diversidade e beleza das aves que observava na propriedade, o que chamava muito a atenção dos seus visitantes. De outra, estava preocupado pela significante porção da colheita de uvas finas que os pássaros prejudicavam. O dano das aves acontece por uma somatória de fatores. Picam as frutas e as perfuram com as unhas, quando passam acima do racimo com o suco caindo sobre outras frutas cria-se condições para o desenvolvimento de um fungo (Bothrytis) que desvaloriza o produto nos exigentes mercados internacionais. No lugar de pretender espantar ou envenenar as aves, ações comumente praticadas na região, ele chamou um especialista para assessorá-lo.
O biólogo, de nome Victor Pulido, é atualmente professor em várias universidades de Lima e tem uma extensa folha de serviços distinguidos para o governo, como especialista em manejo da fauna e como ornitólogo. Após três anos consecutivos de observação, com três visitas por ano, o resultado foi exposto em um livro magnífico, revelando que nessa ilha no deserto existem 93 das 1.800 espécies de aves do Peru, das quais 72 na pequena Santa Rita e 81 na grande La Catalina. Pode parecer pouco, mas deve se lembrar que se está falando de um dos desertos mais radicais do planeta e que, ainda assim, esse é um número de aves maior que o de vários paises do mundo. Mais, ainda, porque entre as aves registradas existem 19 que são raras de acordo a Convenção de Espécies Ameaçadas de Extinção e que outras 4 são endêmicas.
À medida que a pesquisa adiantava, Pulido fazia recomendações a Chlimper que as aplicava de imediato. Dentre elas a manutenção e plantação de pequenos bosques de espécies nativas comuns em outras áreas do deserto de Ica, estrategicamente distribuídos para facilitar a nidificação e a diversidade alimentar e, claro, a capacitação do pessoal das fazendas para o reconhecimento e a proteção das aves, assim como modificações simples e sem maior custo no manejo agrícola das plantações.
Ainda faltava resolver o problema dos prejuízos das aves nas uvas. Essas são na sua maioria pombas selvagens (Zenaida meloda, Zenaida auriculata, Columbina cruziana) além do pardal Zonotrichia capensis e do sabiá Molothrus bonariensis, que picotam as uvas em processo de maturação. Para isso, por sugestões de Pulido, entre outros, foi iniciado um programa de cetraria (arte de domesticar aves de rapina) usando falcões da espécie Falco femoralis. Os cinco casais de falcões foram proporcionados por um zoocriadouro legalmente estabelecido e o pessoal experto na antiga arte de cetraria formou um grupo de operários das fazendas para seu manejo.
O sucesso tem sido extraordinário, tanto em termos econômicos, como em termos de educação ambiental e de abertura potencial de um novo filão de negócios que combina a nobre arte da cetraria com o bird watching. O beneficio econômico do uso do controle biológico da praga com falcões por campanha agrícola é estimado conservativamente em até 5% do valor da venda, o que representa, no caso da empresa, 550.000 dólares por ano sem provocar nenhuma redução da população das espécies que não prejudicam a uva. Tampouco coloca em risco a sobrevivência das espécies que são controladas. É uma solução ideal, o que os gringos chamam de “win win”.
Os resultados de Pulido sobre a população de aves nos cultivos de Ica lembram os que o brasileiro Paulo de Tarso Zuquim Antas obteve estudando as aves como bioindicadores de qualidade ambiental em áreas de plantio de eucalipto no Espírito Santo. Após 10 anos de observações em uma microbacia de 286 hectares (189 ha de eucalipto e 89 ha de floresta nativa) da Aracruz Celulose, ele demonstrou a ocorrência de 204 espécies de aves. Destas, 85 usavam os recursos da floresta de eucalipto e os da mata nativa, existindo indivíduos que incluíam os talhões de eucalipto nos seus territórios. Mais importante ainda era o fato de que a curva de acumulação de espécies se revelou igual à de outras áreas de florestas tropicais da América.
Portanto, o peruano Victor Pulido e o brasileiro Paulo Zuquim Antas demonstraram exatamente a mesma coisa, embora que em condições muito diferentes: É possível manter uma grande diversidade biológica até em monoculturas, sempre e quando se observem medidas simples e baratas, como são de proteger, ou estabelecer, pequenas áreas de nidificação e alimentação mais ou menos naturais para as espécies selvagens. Isso é, exatamente, o que os cultivadores de soja, algodão, cana de açúcar e outros no Brasil não fazem. Isso é também, o que pode se perder com a intenção sob exame pelo Congresso de eliminar as reservas legais nas fazendas que são, precisamente, os refúgios das aves e outras espécies.
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