O que fazer, acabar com o federalismo? Perguntou o professor John Hammond do Departamento de Sociologia do Hunter College, ao ouvir minha explicação sobre as contradições entre os recursos políticos e os recursos financeiros e governativos dos estados e municípios, no federalismo centralizado brasileiro. Foi no final de uma palestra sobre os desafios da governança no momento atual brasileiro, no Centro de Estudos Brasileiros da Universidade de Columbia. Eu havia dito que nos arriscamos a enfrentar uma crise federativa, que poderia causar sérios danos em vários setores no Brasil.
Numa delas, da segurança pública, o resultado do conflito federativo de jurisdições, a determinação constitucional de manter duas corporações policiais isoladas, uma delas parcialmente subordinada às Forças Armadas, a centralização, as restrições à criação e à ação de polícias municipais, já tem resultados claros. No Rio, o governo perdeu a soberania sobre o território. Uma parcela significativa da população carioca vive sob o governo do banditismo tirânico, ao qual deve obediência, paga pedágio e entrega o direito sobre sua vida. A taxa de homicídios de jovens entre 14 e 25 anos, na cidade do Rio é quase o triplo da média brasileira e mais de 50% superior ao da média das capitais brasileiras.
Respondi que precisamos levar a sério o federalismo. Certamente, a solução não é mais centralização. É aprofundar, radicalizar o federalismo. O contrário do que está acontecendo hoje. É preciso reduzir o tamanho de Brasília, que controla muito de quase tudo e partes estratégicas do pouco que a Constituição entregou às outras esferas. É preciso desconstitucionalizar o quadro legal brasileiro. Como ninguém, no Brasil, acredita nas instituições e nos políticos, todos acham que a única forma de preservar interesses, prerrogativas, privilégios e direitos é inscrevendo-os na Constituição. É impressionante a quantidade de questões tipicamente pertinentes à legislação ordinária que está na Constituição. Resultado, uma parte grande dela não é, e jamais será, respeitada.
Sermos federativos é nossa destinação. Podemos viver esse destino como tragédia ou como parte integrante de nosso ser social, assumindo-o integralmente e tomando as rédeas do processo em nossas mãos coletivas. Nunca poderemos ser uma nação unitária, como o Chile é, por exemplo. Somos grandes e diversos demais. Resta saber se vamos transformar nosso tamanho e diversidade em desvantagem ou se vamos aproveitá-los como recursos valiosos que podem enriquecer e aprimorar nosso processo de desenvolvimento.
A Política do Faz de Conta
Recentemente, numa entrevista sobre soja transgênica para a Globonews, o representante dos produtores gaúchos, presidente da Federasul, Carlos Speroto e o economista, John Wilkinson, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, defendiam ângulos polares dessa matéria polêmica. Me dei conta de que, em todas as áreas de atividade relevante, hoje, estamos diante de um grave impasse regulatório e esse impasse, quase sempre, está combinado ao imbróglio federativo. No programa, o produtor pedia liberdade de produção e consumo, livre-arbítrio, e o economista, regulação. Confesso que vi boas razões de ambos os lados, mas, na hierarquia dos processos, a regulação, no momento, seria, até, precondição para maior liberdade futura de escolha.
Numa federação plena, as posições antagônicas dos dois poderiam conviver em localidades distintas do país, desde que submetidas a determinadas condições gerais de respeito aos direitos de ambas as partes e se expressassem visões majoritárias, em seus respectivos territórios. O Rio Grande do Sul poderia adotar, por exemplo, a visão de seus produtores, se assim entendesse a maioria da sua população e outros estados poderiam adotar as medidas cautelares defendidas pelo professor. Agora mesmo, na Califórnia, por exemplo, várias cidades estão decidindo banir os transgênicos. No quadro atual, vira jogo de soma zero, um ganha tudo, o outro perde tudo.
O sistema político sempre oscilará entre forças mais intervencionistas e mais liberais. Temos uma cultura política centralizadora, que impede a diversidade de soluções, excluindo a possibilidade de convivência, na federação, de diferentes combinações entre regulação e liberdade. De quebra, temos um governo que é ambivalente em relação à maioria dos dilemas que hoje desafiam os formuladores de políticas públicas, apesar de ter chegado ao poder com a imagem de um grupo cheio de opiniões, radical, pronto, até, a virar tudo de ponta-cabeça. Na prática, joga mais com a inércia e a paralisia, do que com a mudança.
No caso particular da produção de soja transgênica, tudo estava errado: o ministro da Agricultura encorajava a produção, que já estava se realizando na mais absoluta informalidade. A ministra do Meio Ambiente desencorajava o fato consumado e alimentava a paralisia decisória. O governo, por inépcia política e falta de convicção, falhava na articulação da aprovação da lei de biossegurança e se perdia nas negaças de uma MP que todos sabiam que viria. As ambigüidades e ambivalências governistas na negociação da lei de biossegurança alimentaram o impasse e atrasaram irremediavelmente a sua aprovação. No país real, a situação da produção de transgênicos não deixa muita margem à dúvida: a cautela recomenda que, no mínimo, sua produção obedeça a regras claras. É preciso ter regulação. Até porque, no mínimo, hoje, 70% da produção gaúcha são transgênicos e, no restante do Brasil, em torno de 20%. Já não se pode dizer que seja um fato emergente.
Regular não é proibir
Paulo Bessa tem toda razão ao argumentar que a defesa que os produtores gaúchos fazem da soja transgênica, mostra que ela tem vantagens econômicas para o produtor. A produção gaúcha de soja só é competitiva com sementes organicamente modificadas, que reduzem o custo de produção. De outra forma, não consegue praticar os preços da soja de cerrado ou amazônica. Sobra-lhe razão, também, quando diz que produtores precisam ter tranqüilidade e legalidade para produzir. Uma das razões pelas quais o investimento não está acompanhando a retomada do nível de atividade, hoje, no Brasil, é a incerteza que eleva o risco regulatório. Tem mais razão, ainda, ao apontar para os riscos enormes da informalidade e da indefinição, num caso desses.
Onde perde o fio da meada, é ao imaginar que toda a questão dos transgênicos esteja determinada apenas pela aplicação, com excesso de rigor, do princípio cautelar e pela inversão do ônus da prova. Há ambientalistas que defendem isso: nenhum OGM deve ser autorizado enquanto não provar, fora de dúvida, que não tem efeitos colaterais indesejáveis. Mas a posição majoritária, hoje, é favorável à regulação das condições em que eles podem ser produzidos.
Na verdade, há vários aspectos importantes a considerar, além do princípio cautelar estrito, dos possíveis efeitos negativos dos transgênicos na natureza e na saúde humana. Por exemplo, a questão da contaminação. Sem as devidas precauções, as sementes transgênicas podem se misturar às convencionais e às orgânicas, para prejuízo geral. Trata-se de garantir os direitos dos outros. O direito dos produtores gaúchos de usarem sementes transgênicas, deve ser limitado pelo direito dos produtores convencionais e dos produtores orgânicos de não usá-las e dos consumidores de não consumi-las. Nenhum dos dois contraria ou enfraquece o corretíssimo argumento de Bessa, a favor da imediata regulação do tema. Ao contrário ressaltam a necessidade de apropriada e urgente regulação.
Mas, o recurso à medida provisória, não se justifica, nem é o melhor caminho. O governo, por seus erros e incoerências, não consegue aprovar projetos de lei mais completos e termina por recorrer a MP`s. Não resolve a incerteza, porque a MP pode ser derrubada, como acabou de acontecer com a da Reforma Agrária. Elimina a possibilidade de consultas e debates mais amplos, que permitam esclarecer melhor todos os interesses em jogo e todos os pontos de vista. A diversidade é sempre boa conselheira mas, no Brasil, é vista como entrave e raramente considerada. A MP legaliza a informalidade, mas não regula a atividade e fere os demais interesses, desprotegendo-os, em nome da conveniência de uma das partes.
O que é preciso é regulação adequada para a produção, embalagem, rotulação, transporte, distribuição e comercialização de transgênicos. O presidente da associação que representa os produtores gaúchos defendeu a liberdade de escolha de produtores e de consumidores. Mas, como essas liberdades podem ser antagônicas, na ausência de regulação, é preciso um quadro regulatório que abrigue toda a diversidade de interesses legítimos em jogo. Temo que, no atual quadro institucional brasileiro, isto não seja possível. Eu diria que há, no mínimo, três condições que esse marco regulatório teria que respeitar.
Regulando a diversidade
A primeira condição seria a correta separação entre princípios gerais e particulares. As questões de princípio geral requerem legislação federal padrão e sua implementação e fiscalização cabem à União. Regras cautelares para evitar a contaminação, por invasão ou mistura acidental, de sementes ou culturas convencionais por sementes ou culturas transgênicas. Regras cautelares, determinando rotulação precisa, para evitar que o consumidor desavisado consuma alimentos que contenham componentes geneticamente modificados, por ignorância e não por opção. Sobretudo, para preservar a liberdade de escolha daquele consumidor que se recusaria a consumir o produto, se soubesse que se trata de um OGM. Parâmetros legais que definam, claramente, a competência da União para interferir nas decisões federativas, no caso de desobediência a essas regras de proteção geral.
A segunda condição seria a do direito concorrente de maiorias parciais. Quer dizer, se a maioria da população de um estado, Rio Grande do Sul, digamos, considera importante a produção de grãos com sementes GM, por razões econômicas, seus representantes devem ter o direito de autorizar essa produção. Mas, desde que ela obedeça aos princípios gerais de produção, circulação e venda seguras, que protejam os que não desejam produzir ou consumir transgênicos. Se a maioria de um outro estado, Mato Grosso, digamos, considera indesejável a presença de OGM`s em suas culturas, porque são altamente competitivas na produção convencional, desejando comercializar um produto diferenciado, que não contenha traço de OGM`s, seus representantes devem ter o direito de vedar a produção de transgênicos no estado. O respeito ao princípio geral, permitiria que, pela rotulagem e pela garantia dada por certificação, seus grãos fossem ao mercado sem o risco de serem confundidos com os transgênicos.
É certo que não é tarefa fácil determinar o que deve ser atribuição local e o que deve ser responsabilidade da União, para salvaguardar o interesse nacional sobre o local. Mas não é menos certo que a melhor solução não é a que temos adotado e não vem dando certo: a centralização, a uniformização das regras e a restrição à autonomia local. Isso mata a criatividade, impede a busca de soluções diferenciadas, mais adaptadas a cada circunstância.
A terceira condição seria a da simultaneidade: a regularização da produção transgênica deveria se dar ao mesmo tempo em que entrasse em vigor o marco regulatório geral, que garantisse todos os direitos envolvidos. Nós já vimos no que dá, introduzir novas práticas, antes que seu marco regulatório esteja definido e pronto para ser aplicado. Grande parte da confusão reinante no setor elétrico brasileiro há anos tem a ver com o fato de que ele foi privatizado antes que o sistema regulatório pertinente estivesse definido e fosse operacional.
Uma das áreas em que nada avançamos no Brasil foi no desenvolvimento de uma adequada teoria da regulação, que permita desenvolver práticas regulatórias menos centralistas, menos burocráticas e autoritárias e mais diferenciadas. É reflexo de duas tradições de pensamento, uma estatista, autoritária e centralista e, outra, anti-federativa.
A Lei de Biossegurança, diga-se de passagem, tal como aprovada pelo Senado, não responde adequadamente à maioria desses quesitos. É um exemplo dessa nossa incapacidade de desenhar mecanismos de governança regulatória. Cria uma estrutura regulatória predominantemente política, que dá a um conselho de ministros – o CNBS – a palavra final nas controvérsias. É marca registrada da administração Lula da Silva, a rejeição de qualquer agência reguladora independente, tecnicamente qualificada. Todas se subordinam à vontade governamental. Ora, regulação que se preze, deve, por princípio, coibir a discricionariedade do Executivo. Além disso, quem fizer uma leitura política do artigo 11, que define os critérios de composição do CTNBio, a agência técnica subordinada ao CNBS, verá que: para os doze membros científicos, há exigência de nível doutoral, exercício da profissão e área de especialidade e são nomeados – sem critério condicionante – pelo ministro da Ciência e Tecnologia (outra instância de discricionariedade do Executivo); quinze membros, genericamente tratados como especialistas, são representantes indicados por diferentes ministérios. Ou seja, todos são nomeados livremente pelo Executivo, sem controle social algum, e a maioria representa os ministérios, embora sob o disfarce de “especialistas” em coisas tão vagas como “direitos do consumidor” ou “agricultura familiar”.
Além disso, órgãos governamentais podem solicitar a participação em reuniões para tratar de assuntos de seu especial interesse. Mas a sociedade civil e a comunidade acadêmica, só por convite e em caráter excepcional. Essa pérola do autoritarismo estatista está no parágrafo 9º do artigo 11. Audiência pública? Um instrumento do pluralismo e do contencioso, essencial à governança regulatória democrática, é facultativa. O artigo 15 diz que a CTNBio pode fazer.
Tudo bem, tem uma colherzinha de chá para a democracia, no parágrafo do artigo, vejam só: “em casos de liberação comercial, audiência pública poderá ser requerida por partes interessadas, incluindo-se entre estas organizações da sociedade civil que comprovem interesse relacionado à matéria, na forma do regulamento”. E o regulamento, ainda virá, no que dia que o governo conseguir redigi-lo e aprová-lo. Até lá, quanto vale a lei? Zero. Basta ler o texto: tudo vai estar no regulamento da lei e não na lei. Mais uma brecha para a discricionariedade e para tornar a regra mais mutável, pela vontade exclusiva do Executivo, sem precisar aprovar novo projeto de lei, que implica discussão pública, pressão social, essas coisinhas.
Do ponto de vista de risco regulatório, estamos diante de um exemplo completo. A regra não é estável porque definida em estatuto, não em lei. Não há processo participativo algum, nem garantia de contencioso. A decisão final, em havendo recurso, não é de agência dotada de autonomia, mas de um conselho de ministros. A própria agência tem autonomia limitada e sua composição é determinada, incondicionalmente, pela autoridade governamental. É claro que esse tipo de marco regulatório não gera segurança alguma e mantém elevado nível de politização das decisões.
Leia também
Entrando no Clima#41 – COP29: O jogo só acaba quando termina
A 29ª Conferência do Clima chegou ao seu último dia, sem vislumbres de que ela vai, de fato, acabar. →
Supremo garante a proteção de manguezais no país todo
Decisão do STF proíbe criação de camarão em manguezais, ecossistemas de rica biodiversidade, berçários de variadas espécies e que estocam grandes quantidades de carbono →
A Floresta vista da favela
Turismo de base comunitária nas favelas do Guararapes e Cerro-Corá, no Rio de Janeiro, mostra a relação direta dos moradores com a Floresta da Tijuca →