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Por trás do G-77

A conferência do clima acabou mal em Buenos Aires. O Brasil fez um papelão por trás do G-77. A reunião terminou ameaçando o futuro do Protocolo de Quioto.

17 de dezembro de 2004 · 19 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

A Cop 10 terminou em Buenos Aires com resultados muito negativos para os esforços globais de prevenção da mudança climática. É a Conferência das Partes, sessão oficial de implementação da Convenção do Clima e do Protocolo de Kyoto. Foi uma reunião com resultados medíocres. O Ministro do Meio Ambiente da Itália chegou a propor que o protocolo seja abandonado a partir de 2012, se não for possível chegar a um novo acordo, mais abrangente, para depois desde ano, quando expiram as metas já negociadas de redução de emissões. A proposta soava como um protesto contra a atitude dos Estados Unidos e o anúncio, pelo Reino Unido e pelo Japão, de que não conseguirão atingir suas metas de redução. Os países que fizeram o dever de casa se sentem prejudicados pela atitude de não comprometimento dos EUA e da Austrália, pela incompetência do Reino Unido e do Japão e pela atitude de grandes poluidores como China e Índia, de não aceitarem qualquer meta formal de redução.

O Brasil – renda per capita (por paridade de poder de compra – ppc) de 7770 dólares, índice de desenvolvimento humano de 0,775 – está na mesma posição desses dois. Alternou, a maior parte do tempo, na COP-10, o papel de porta-voz do G-77/China, com a Tanzânia – renda per capita de 580 dólares e índice de desenvolvimento humano de 0,407, o 16º mais baixo do mundo. Já é sinal suficiente de que algo está erradíssimo com esse grupo. Certamente esses dois países nada têm em comum, em se tratando de meio ambiente e desenvolvimento. O Brasil só pode se aliar na convenção sobre o clima a países como Tanzânia, Burundi (renda per capita 630 dólares e IDH de 0,339), República do Congo (de 650 dólares e 0,365), Etiópia (780 dólares, 0,359) e Haiti (1610 dólares e 0,463) por puro oportunismo. A imprensa nunca diz quem são os 77 que, junto com a China, formam a coalizão dos que querem liberdade para desmatar e emitir gases de efeito estufa para poderem se desenvolver. Eles são mais que 77, já chegam a 133, com a China, somam 134 estados divididos em tudo, menos nas suas posições sobre a Convenção do Clima.

O G-77 é uma dessas velharias da ONU. Um saco de gatos criado em 1964, quando o Brasil era um outro país, então, sim, uma ditadura de terceiro mundo. Hoje, de acordo com a lista que se encontra no site oficial do grupo, já é o G-134. Um aglomerado desse tamanho de estados nacionais não pode definir uma pauta comum sobre assunto algum relacionado a desenvolvimento econômico, social e meio ambiente. As situações estruturais e ambientais são as mais diversas. Sociologicamente falando, essa mistura heterogênea reúne países com população minúscula, como as Maldivas, com 300 mil habitantes, até megapopulações, como a da China, de 1,3 bilhões. Países urbanos e agrários. Industrializados e subdesenvolvidos. A renda per capita, em paridade de poder de compra, varia dos 520 dólares de Sierra Leone, aos 17 mil dólares de Bahrein e aos 30 mil dólares da Guiné Equatorial. O que podem ter em comum esses países? Fora a presença de tropas brasileiras por lá, o que mesmo têm em comum, social, econômica e ambientalmente falando, o Brasil e o Haiti? Aqui, definitivamente, não é o Haiti.

Quando o G-77 foi criado, nossa população crescia em torno de 3%, média geométrica anual. A taxa de fecundidade era de perto de 6 filhos em média por mulher. A população urbana não ia além dos 50% da população total, que era de 78,6 milhões. A mortalidade infantil era de 116:1000. A alfabetização de adultos estava em 55%. Nossa renda per capita era de perto de 1400 dólares.

O Brasil que se faz passar por país pobre, ao lado da Tanzânia, para se recusar a assumir compromissos públicos internacionais mais sérios na área ambiental, é outro. Democrático, não é subdesenvolvido, pobre ou necessitado. Não precisa privilégios para crescer, com prejuízo para os outros e sua própria posteridade. Nossa população tem, hoje, 100 milhões de pessoas a mais, mas cresce a uma taxa geométrica média anual de apenas 1,3% e a taxa de fecundidade não chega a 2 filhos por mulher. A grande maioria é urbana, 83% (uma taxa 66% maior que a de 64). A mortalidade infantil é de 27:1000, 76% menor. A alfabetização de adultos é de 89%, 62% maior. Nossa renda per capita é de perto de 8 mil dólares.

O Brasil, em nome desse G-77/China, que é um G-134, pediu, em Buenos Aires, isenção de metas de emissão, mais tempo para produzir informes nacionais e até que esses países fossem desobrigados de tornar públicas, internacionalmente, informações sobre a situação ambiental. Pediram que essa fosse uma obrigação formal apenas dos países desenvolvidos. Mas, de fato, o Brasil pertence a um outro grupo, que o mercado financeiro denominou de BRIC e que corresponde às principais potências intermediárias do mundo, estrelas do chamado mercado emergente. Nas próximas três décadas se tornarão megaeconomias, maiores que qualquer economia individual da Europa. E são todas, poluidoras de grande porte, já, no momento presente.

BRIC é o acrônimo, inventado pelos economistas da Goldman Sachs, que serve de apelido para Brasil, Rússia, Índia e China. Nesse estudo, a corretora prevê que, em menos de 40 anos, o grupo terá um PIB maior que o do G-6 e só Estados Unidos e Japão terão economias do mesmo porte: o EUA seria a segunda maior, atrás da China e o Japão, a quarta, atrás da Índia e ainda na frente do Brasil, a quinta, e da Rússia, a sexta. Claro, tudo pode dar errado para esses países e eles regredirem. Mas não é provável. Tudo pode dar certo para um ou vários deles e, ao invés de crescimento linear acelerado, dariam saltos, mudando de patamar aceleradamente. Semelhante ao que ocorreu com o EUA na virada do Século XIX para o XX, ou com o Japão, no após-guerra. Nesse caso, se tornariam megaeconomias ainda mais rápido. Mais provável que o regresso.

O cenário mais moderado, que serviu de base para o estudo, prevê crescimento linear sustentado, que produziria a primeira, terceira, quinta e sexta maiores máquinas econômicas do futuro próximo (2040). Não é história para isentá-los de responsabilidade alguma. Eles podem seguir essa trajetória de forma muito mais sustentável do que estão fazendo. Antes de 2030, o Brasil seria maior que a Itália e a França. Antes de 2040, passaria a Alemanha. A China passaria a Alemanha em menos de 10 anos. Hoje, eles já emitem mais gases de efeito estufa que esses países europeus.

O BRIC tem atualmente perto de 15% do poderio econômico do G-6. Nas projeções da Goldman Sachs, teria mais da metade desse poder, por volta de 2025. Para isto, esses países só precisariam adotar políticas favoráveis ao crescimento econômico, coisa que todos estão fazendo. As taxas de crescimento projetadas para obter esse resultado não são nada extraordinárias.

Mas, apesar de terem só o equivalente a 15% do PIB do G-6, já respondem por perto de 30% das emissões mundiais de gases de efeito estufa, pouco menos que a contribuição conjunta do EUA, com 20%, e da Europa, com 14%. Quase a metade é de responsabilidade da China, que gera entre 14% e 15% das emissões mundiais. Um pouco mais que a Eurolândia toda. O Brasil, ao contrário do que disse o governo, e a imprensa publicou sem discutir, já deixou para trás a marca de 94, de perto de 1% das emissões globais. Está perto de 4%, caminhando para os 5%, próximo da Índia (5%) e da Rússia (6%).

O Brasil, para virar uma megaeconomia global, precisaria crescer, apenas um pouco abaixo de 4%, em média, ao ano, nas próximas 4 décadas. A China teria que manter um crescimento entre 7% e 8%, nos primeiros 10 anos, caindo, nas duas décadas seguintes, para menos de 5%, para terminar também crescendo entre 3% e 4%, no período final. A Índia teria que crescer todo o período 2000-2040 acima da média de 5% ao ano. A Rússia poderia crescer abaixo de 5%, desde 2005 e abaixo de 4%, a partir de 2010. Como se vê, nenhum esforço incomum, à luz da história de crescimento passado em países como Japão e Alemanha e, mesmo, da experiência brasileira de crescimento dos anos 50 a 80 do Século passado.

Muita gente acha que esses cenários, mais que imprecisos, são improváveis. É um erro. O economista Winston Fritsch fez exercício semelhante só que para os próximos 30 anos, para o seminário de comemoração dos 30 anos do Instituto Coppead de Administração, da UFRJ. Seus resultados foram ainda mais favoráveis para o Brasil, num espaço de tempo mais curto que o da Goldman Sachs e com exigências mais brandas de crescimento, da ordem de 3,5% ao ano, em média. Imaginem em que posição estará no futuro breve o BRIC – e o Brasil em particular – como emissor de carbono, sem metas, sem restrições formais e sem constrangimento externo, crescendo nessa escala. As contas não são nada bonitas.

Todos esses países são máquinas de crescimento. A China, por exemplo, vem crescendo espantosamente há muito tempo. Tudo indica que terá que passar, mais ano, menos ano, por um ajuste que desacelerará seriamente sua locomotiva. E, ainda assim, sua trajetória de grande potência econômica não será alterada. Todos, sem exceção, são máquinas de elevadíssimo potencial poluidor e destruidor, também. O Brasil celebra sua energia limpa, mas não contabiliza as matas que ela devastou e ainda devastará. Não contabiliza o desmatamento da Amazônia, em velocidade maior que o do crescimento econômico. Ainda assim, o ministro da Agricultura considera a legislação ambiental brasileira um dos sete gargalos para o desenvolvimento de nossa agropecuária e acha que ela deve ser flexibilizada. Ele diz que o governo já está cuidando disso. Se for verdade, é mais uma rasteira anunciada, para derrubar a autoridade da ministra Marina Silva.

Foi um papelão. Um grupo de grandalhões, sugismundos de mão cheia, se escondendo por trás de 130 menores, para continuar isentos de responsabilidades. Só resta, agora, a sociedade brasileira cobrar mais duramente de seu governo uma mudança radical de atitude. Não é problema apenas do governo. A sociedade brasileira ainda não tem noção da tragédia ambiental que está tecendo diariamente. Como não percebe, também, que, no limite, nas condições brasileiras, a devastação pode não nos levar ao pódio do desenvolvimento, mas nos premiar apenas com capoeira, deserto e pobreza.

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