Anna salta as cercas do Parque das Aves com desenvoltura juvenil para fazer um agrado a um filhote de flamingo, fruto de seus esforços para reproduzir espécies em cativeiro. Os flamingos foram conquistados para a reprodução em cativeiro por um truque. Como eram poucos e estão acostumados a viver em grandes bandos – o número é sua principal defesa contra a extinção por predadores – ficam inseguros e estressados quando em pequeno número. Ao se dar conta de que essa era a fonte do estresse que os tornava estéreis, a equipe providenciou espelhos, criando a ilusão ótica da multiplicação de indivíduos. Deu certo. Mas ainda era cedo para comemorar.
Os flamingos chilenos chutavam os ovos dos flamingos africanos. Separou as duas espécies. Deu certo. Mas ainda não foi desta vez que deu para comemorar. Nasceram os filhotes, uma jaguatirica extraviada do Parque Nacional devorou os recém-nascidos. Só na terceira fase do ciclo de tentativas, as crias sobreviveram. Incidentes desse tipo não são incomuns, porque há muita circulação de animais entre as muitas reservas da região. A primeira ninhada de emas quase se acabou devorada por quatis, tão comuns no Parque Nacional de Iguaçu, que se tornaram o símbolo da empresa Cataratas S.A., responsável pela logística, manutenção e bilheteria do parque. As lojinhas de todas as concessionárias estão cheias de quatis de pelúcia. A saída, no Parque das Aves, foi cercar melhor as emas.
Anna Sophie Helene Croukamp, uma alemã quase tropicalizada, virou uma alcoviteira de aves de mão cheia. No Parque das Aves, até as mais ranzinzas acabam namorando e reproduzindo. A equipe técnica tem biólogos que fazem mais do que apenas o acompanhamento científico da namoração da passarada. Conduzem pesquisas importantes sobre comportamento reprodutivo, parental e de desenvolvimento dos filhotes em cativeiro. Ela fala o português bem o suficiente para traduzir com toda a veemência sua paixão pelas aves e a convicção de que o respeito pela natureza vem do contato com ela. “Eu tenho certeza que uma criança que chega perto de uma arara, passa a mão em um tucano, fica cheia de amor pelas aves e nunca mais faz mal ou deixa alguém fazer mal a elas. Vira uma defensora da natureza”.
Diz isso com conhecimento de causa. Foi a paixão por um papagaio criado na Namíbia que terminou trazendo Anna e Dennis Croukamp para Foz do Iguaçu. “Ele conseguiu entrar bem no meio de nossos corações”, diz, com os olhos brilhantes. No frio da Ilha de Mann, que fica no mar da Irlanda, olhando para Inglaterra, Irlanda e Escócia, algo os empurrava para lugares mais quentes. A oportunidade surgiu quando um ex-gerente de Dennis na África contou-lhes sobre Foz de Iguaçu, um local maravilhoso, segundo ele, mas sem infra-estrutura turística alguma. Queria fazer um parque de jacarés. Dennis e Anna não acharam muita graça na idéia. Não queriam jacarés, amavam, mesmo, os pássaros. Decidiram, então, que seria um parque de aves. Foi desta maneira que surgiu a idéia.
Iniciaram o Parque em 94, mas logo veio o golpe da perda de Dennis. Viúva, Anna acabou assumindo inteiramente o zoológico de pássaros, onde se empenha na reprodução de espécies ameaçadas, com destaque para os papagaios, periquitos e araras. “Primeiro fui cuidar de sobreviver à perda. Depois comecei a mexer no parque”. Foi mexendo nos 16 hectares, nos quais tem uma reserva de mata nativa, o parque cresceu, ganhou viveiros maiores, novos espaços. Virou sucesso turístico em Foz, onde não faltam atrativos. Passei várias vezes por sua entrada e sempre tinha movimento de carros, vans e ônibus de turistas. Nas visitas que fiz, estava lotado. As crianças ficam deslumbradas com a proximidade dos pássaros. Uma menina se derramava em carinhos para uma jandaia (foto), pousada no corrimão da ponte de madeira: “Que fofinha!” Não era exceção. Difícil é manter o entusiasmo delas nos limites de segurança para as aves.
O Parque das Aves faz parte da parceria de sucesso entre empresas que cuidam dos principais roteiros turísticos de Foz de Iguaçu e que constituem a porção central dos pacotes oferecidos pelas agências. Como as demais atrações, tanto no Parque Nacional, como em Itaipu, é um empreendimento privado, da Foz Tropicana. John Legatt, seu diretor financeiro, diz que o parque vai indo muito bem, com a receita turística – cobra U$ 8,00 por pessoa. Perguntei se recebiam apoio financeiro de alguma fundação e ele respondeu que não, “é auto-sustentado”, não fazem qualquer outra captação. “Too many strings attached”, disse, revelando não gostar das condicionalidades que normalmente acompanham financiamentos desse tipo.
Os piores momentos para as finanças do parque foram o auge da recessão, que secou o turismo interno, as crises cambiais e, mais ainda, o 11 de setembro, que reduziram dramaticamente o fluxo de turistas estrangeiros. As coisas começaram a voltar ao normal no final de 2003. Ano passado, todos bateram recordes de visitação. “Agora, estamos nos dando bastante bem e temos recursos, inclusive, para investir na melhoria e ampliação, como estamos fazendo”.
Há novos viveiros em implantação, mais amplos, os “normais” têm 8 metros de altura, como o que abriga as harpias (Gavião Real, harpia harpyja), ainda não liberado para visitação. O viveiro hospeda um casal: Áurea, uma harpia adulta, que chegou ao parque por meio de uma apreensão do Ibama, e Hans, que chegou pequeno, após ter sido resgatado pelo Ibama de uma aldeia indígena, onde estava sendo engordado numa gaiola, para ser comido. Hoje, é um jovem e saudável gavião, já aprendeu a voar e está sendo preparado para acasalar com Áurea, se ela aceitar. Juntos no viveiro, ficam, ainda, cada um no seu canto. Áurea deve saber que ele ainda é muito menino para ela. A altura dos viveiros permite manter a vegetação com árvores e arbustos, onde as aves ficam soltas e criam essa impressão de contato direto – às vezes é mais que impressão – como nos viveiros de passarinhos e no de araras e papagaios. Os novos têm amplitude ainda maior, para deixar os animais de porte ainda mais livres. Há, também, novas áreas, como a de répteis, esperando a liberação do Ibama. Devagar, o parque vai diversificando, com borboletas, jibóias, jacarés, sucuris e lagartos. Mas o centro das atrações continua a ser das aves.
Caminhar com Anna e sua equipe é o melhor programa do parque, mas não faz parte dos pacotes turísticos. Cheia de vivacidade, ela é uma excelente contadora de histórias e uma casamenteira pertinaz. A equipe, que sempre apresenta com orgulho, tem respostas prontas e precisas, para as questões, técnicas e os detalhes. Fez questão de me mostrar o filhote de arara azul, que será o consorte de uma fêmea, que vive só desde que seu parceiro morreu. Sabe quando cada casal reproduziu, como conseguiram que reproduzisse, por que não reproduziu.
Tem muitas histórias para contar, como, por exemplo, a dos tachãs, que são muito bons reprodutores e as fêmeas muito maternais. Um casal reproduz regularmente, mas há duas fêmeas solteiras, sem macho, que, até pouco tempo, punham ovos inférteis. Eles passaram a trocar os ovos das descasadas, por ovos férteis do casal. As duas chocaram e se tornaram excelentes mães solteiras, embora virgens. Ou a do casal de araras azuis, que demorou a reproduzir. Finalmente, encontraram dois ovos e Anna e sua turma ficaram monitorando. Um dia, os ovos sumiram. Procura daqui, procura dali, deram com uma caninana alojada no telhado do viveiro, com dois calombos na barriga. Levaram a cobra para o centro de cirurgia, anestesiaram, abriram a barriga da bicha e tiraram os dois ovos. Um estava quebrado e o filho morto. O outro, tinha um ligeiro trincado. Passaram esmalte e puseram na chocadeira. Mas não adiantou, estava morto também. Costuraram a barriga da cobra, acompanharam sua recuperação e a devolveram à natureza. O casal de araras ficou estressado durante duas temporadas de reprodução, com o trauma. Este ano, voltou à ativa.
O Parque mantêm mais de 900 aves de 150 espécies, sendo a maioria aves brasileiras. Um terço de espécies consideradas em risco de extinção. Todas elas são registradas, oriundas de zoológico, criadores autorizados pelo IBAMA ou de centros de reabilitação. Ele foi concebido para favorecer a reprodução em cativeiro. Hoje, há microcâmeras instaladas em vários ninhos, para acompanhar o processo. O programa de reprodução é muito bem sucedido.
Tão bem sucedido que Anna está com populações excedentes, por exemplo, de araras canindé. Gostaria de poder tocar programas de reintrodução dessas espécies em reservas nas quais já foram presença natural. Não é só ela que está parada na estação do meio da controvérsia sobre conservação e manejo de espécies. Esta é uma polêmica importante e que precisa ser mais bem estudada e definida. Há casos bem sucedidos, em outros países, de reintrodução de animais de cativeiro na natureza. Alguns estudos mostraram variação na resposta de indivíduos, determinantes no sucesso ou insucesso da adaptação ou readaptação ao seu habitat natural. Atualmente, com a análise de DNA e a possibilidade de determinar a similitude entre as aves de cativeiro e as de determinados espaços naturais, é possível fazer experimentos muito mais seguros e com maior probabilidade de sucesso.
Uma coisa é certa, parece fazer pouco sentido, reproduzir espécies ameaçadas em cativeiro, apenas para mantê-las em exposição ou como estoque genético, à parte das condições naturais. Uma área que merece mais estudo, mais reflexão e discussão com o máximo de isenção e o mínimo de pré-juízos. Há um diálogo entre o Ibama e alguns centros, como o Parque das Aves e o Refúgio Ecológico de Itaipu, entre outros. Mas é preciso uma discussão mais ampla e que se crie uma rede de pesquisa, experimentação e avaliação dos riscos e vantagens da reintrodução e do repovoamento, em determinadas áreas.
Nota sobre as aves das fotos:
Guará (eudocimus ruber) – existem duas populações, uma no norte, outra no sul. Já foi uma das aves mais comuns entre os voláteis aquáticos da região amazônica, tornou-se escasso e desapareceu do sudeste. Há registros dos anos 80, de maiores concentrações no Maranhão e no Pará. Ainda é relativamente abundante na costa do Amapá. Já habitou a Baía de Guanabara, nos manguezais da Ilha do Governador, nos anos 20. É ave meio nomádica.
Jacutinga (pipile jacutinga) – espécie típica do sudeste, habita a mata alta, abundante em palmitos, cujos frutos são seu alimento predileto. A ação de palmiteiros é uma ameaça adicional grave à sua sobrevivência. Era numerosa na Serra do Mar, em qualquer altitude, em locais acidentados, semeados de rochas e cobertos por mata espessa. Atualmente ainda existe, mas em número reduzido. Era abundante, no começo do Século 20, na região do Parque Nacional da Serra dos Órgãos. Desapareceu da maioria dos lugares onde era comum, inclusive dos vales dos grandes rios paulistas e paranaenses, onde podia ser encontrada em qualquer mata.
Jandaia verdadeira (aratinga solstialis jandaya) – ocorre no sudeste do Pará, do Maranhão a Pernambuco e no leste de Goiás.
Papagaio verdadeiro (amazona aestiva) – “o mais procurado dos papagaios para servir de xerimbabo, tendo fama de ser o melhor falador”. Vive na mata úmida ou seca, beira de rio e é encontrado no interior do país, dos estados do Piauí, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso ao Rio Grande do Sul, Paraguai, norte da Argentina e Bolívia. Ausente nas áreas litorâneas, onde é encontrado o curica, ou papagaio do mangue (amazonia amazonica).
Tachã (chauna torquata) – espécie meridional, ocorre da Argentina e Bolívia até o Mato Grosso, no Rio Grande do Sul e em São Paulo.
Tucano do Bico Verde (ramphastos dicolorus) – espécie meridional, ocorre no Espírito Santo, Minas Gerais e de Goiás ao Rio Grande do Sul, Paraguai e nordeste da Argentina. No Rio de Janeiro, aparece na Serra dos Órgãos e em Itatiaia.
Fonte: Helmut Sik, Ornitologia Brasileira, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1997, edição revista e ampliada por José Fernando Pacheco.
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