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Nossa alma severina

A qualidade da sociedade está no seu cotidiano. Nossas escolhas diárias mais simples revelam nosso civismo e determinam nosso governo e nossa ecologia.

17 de abril de 2005 · 19 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

Governos são o retrato da sociedade. Nenhuma sociedade tem, todo o tempo, governos melhores ou piores que seu próprio padrão comportamental. O grau de civismo da sociedade – seu compromisso com a qualidade da convivência coletiva, somado à sua noção de responsabilidade com o conjunto da comunidade nacional – é a medida indicativa de qual será a qualidade média de seus governos. Portanto, antes de ficarmos buscando as culpas do “severinismo”, ou do “garotinhismo”, nos políticos ou nas regras eleitorais que os elegeram, seria melhor olharmos para nós mesmos e nos perguntarmos de que maneira nossas escolhas individuais terminam na eleição daquele prefeito(a), daquele(a) governador(a), daquele presidente e naquela determinada composição das câmaras de vereadores, assembléias legislativas, Câmara Federal ou Senado da República.

Como avaliar nosso grau de civismo? Basta olhar para nosso cotidiano. Diariamente, quando deixamos nosso espaço privado e entramos no espaço público, fazemos centenas, talvez milhares de “micro-escolhas”, que definem se, ao final do dia fomos bons ou maus cidadãos. Essas “micro-escolhas” se traduzem em “macroresultados”. Imaginem a seguinte cena: 100 mil pessoas saem de casa, numa grande cidade, como o Rio de Janeiro, num final semana, mais ou menos à mesma hora, digamos entre 8 e 10 da manhã, para irem à praia. Cada uma compra uma de três coisas para comer na areia: um pacote de biscoitos, um sanduíche envolvido em papel de alumínio ou plástico, ou uma barra de cereais, e todas compram uma lata de refrigerante ou cerveja. Fazem seu lanche antes de deixar a areia e jogam nela as embalagens dos sanduíches ou dos biscoitos e barras de cereais e as latas. Às 11 horas da manhã, quando todo mundo já comeu, a praia terá 100 mil latas, e 100 mil embalagens de plástico, papel plastificado ou alumínio, nenhuma degradável espalhadas pela areia. O papel plastificado das barrinhas, por exemplo, pode permanecer por mais de 5 anos na natureza. Os garis, presume-se, limparão tudo. Errado: uma parcela não desprezível ficará na areia, irá para o mar ou para as calçadas e, daí, para os esgotos ou canais de águas pluviais.

Um saquinho de papel plastificado e uma latinha, não constituem uma grande agressão ecológica, certo? Mas todos admitirão que 200 mil unidades de lixo atiradas em duas horas nas praias da Zona Sul do Rio de Janeiro é muita coisa, uma baita agressão ambiental. Errado de novo: essa enorme agressão é apenas a soma das agressões individuais. Cada um que jogou lixo na areia da praia tem um índice de 100% de agressão às regras de convivência cívica e cuidado com o ambiente coletivo.

Ninguém se escandaliza com as toneladas de lixo retiradas da areia pelos garis, após um fim de semana de praia cheia. E é muito mais do que as duas centenas de milhares de unidades do meu exemplo. Cada pessoa, em média, consome mais do que isso na praia e, no verão, a cada fim de semana muito mais de 100 mil pessoas freqüentam a praia. E uma proporção significativa de seu lixo é incorporada ao ambiente, poluindo-o e degradando-o.

O lixo público no Rio de Janeiro, em grande medida um indicador de nosso índice de civismo nessa matéria, é de dezenas de milhares de toneladas/dia. Uma parcela não desprezível, mas que não cheguei a tentar obter da Comlurb, é recolhida fora das lixeiras, na areia, nas ruas, nas calçadas, nos gramados, por aí vai. Nenhum cidadão que se preze pode deixar de cumprir o dever de zelar pelo patrimônio coletivo, público. E, se o faz, não deveria ter o direito correspondente de cidadania.

Vou dar outro exemplo, também de lixo, em uma situação ainda mais restrita e em um ambiente onde, supostamente, as pessoas estão alertas para a higiene. No último sábado, passei algumas horas na sala de espera de uma clínica de ultrasonografia e exames similares, em Botafogo, Rio de Janeiro, acompanhando uma pessoa da família. Enquanto essa pessoa ia e vinha dos exames, fiquei lendo e escutando música em meu IPOD. De repente, observei que, como a maioria das pessoas tinha que fazer o exame com a bexiga cheia, bebia água em quantidade. Vamos analisar essa cena do cotidiano.

Havia uma mesa com uma geladeira de garrafão de água mineral e copos de plástico. Como os exames são feitos em jejum, havia, também, uma garrafa térmica com café e um vidro contendo cream-crackers. As pessoas em espera se levantavam, pegavam um copo, enchiam de água, voltavam a seus lugares, bebiam, levantavam-se de novo, iam até a lixeira e jogavam o copo fora. Uma vez liberadas, muitas iam até a mesinha, serviam-se de café em copinhos plásticos, pegavam duas bolachas, sentavam-se, comiam e bebiam, levantavam-se e jogavam o copinho no lixo, antes de deixar a clínica. Tudo muito normal, tudo muito natural.

Deixem-me adicionar um detalhe, que omiti, e vamos repetir a cena. A lixeira tinha aproximadamente 110 cm de altura e em torno de 0,60 cm de diâmetro, e era divida ao meio. Uma das meias-luas era aberta e tinha a borda pintada de branco. Na sua lateral, bem visível, estava escrito em letras grandes “Lixo Comum”. A outra era fechada e havia três orifícios, cada um correspondendo ao diâmetro de um tipo de copo. A borda era pintada de vermelho e se podia ler, na lateral, “Jogue o copo com o fundo para baixo”.

Vamos, agora, repassar a cena: no período de meia hora, que me detive a observar esse microcomportamento dos pacientes da clínica, contei 28 idas à lixeira. Em 24 vezes, as pessoas jogaram os copos de água e café na meia lua que indicava “lixo comum”. Só em quatro vezes, os copos foram colocados, corretamente, no local indicado. Dá um percentual de 86% de mau comportamento. Logo, um índice de civismo de 14%. Clínica de classe média. Ambiente controlado. E um índice de civismo pífio. Tudo bem, alguém pode argumentar que, pelo menos, todo mundo jogou o lixo na lixeira, ninguém deixou nas cadeiras ou jogou no chão. Mas, convenhamos, o bem-estar coletivo nunca estará bem servido, se as pessoas se restringirem a observar princípios tão elementares assim. Havia, naquela ante-sala, uma instrução razoável, correta e a expectativa é que todos a seguissem e os desvios se devessem apenas a erros.

Mas o mau comportamento não termina aí. Muitos devem ter observado a outra patologia social impregnada naqueles micro-atos individuais: o desperdício. Nem uma só das pessoas reutilizou o copinho de água. Em alguns casos, observei pessoas usando quatro copos diferentes. Essa pequena cena de sábado, em que pessoas saem de casa para fazer exames, na sua maioria de rotina, era um flagrante de nossa sociedade. Perguntei ao familiar que acompanhava qual era a instrução: deviam tomar seis copos de água. Pronto consumiam cinco vezes mais plásticos que o necessário. Para reduzir esse desperdício e essa produção imensa de lixo plástico (a sorte é que, no caso, trata-se de material reciclável), bastava uma mínima decisão: ficar com o primeiro copo na mão e reutilizá-lo nas seis vezes. Finalmente, colocá-lo no furo apropriado, de fundo para baixo. Tão simples e tão raro.

É baixíssimo, no Brasil, o percentual de pessoas que, ao longo do dia, respeita, de forma satisfatória, uma cesta de deveres para com a ordem coletiva, que definiria uma sociedade plenamente civilizada e madura: suspeito que menos de 10%. E suspeito mais, que a taxa de observância, por parte dos “cívicos”, não ultrapasse 50% da cesta necessária. Mesmo se reduzíssemos nossa medida a uma cesta básica de deveres, ainda assim, creio que nosso índice de civismo sequer chegaria aos 15%. Ficaria, talvez, naquele índice da clínica de Botafogo: 14%. E o percentual de deveres cumpridos não ultrapassaria os 60% da cesta básica.

Estamos vivendo um verdadeiro descalabro ambiental. Nos centros urbanos vivemos em estado de crise ambiental aguda. E o lixo é parte relevante dessa crise, embora não seu único elemento. A poluição cobra um preço elevadíssimo sob a forma de perda de saúde, dos habitantes da Grande São Paulo. A imprensa devia pesquisar e publicar com a mesma assiduidade com que publica os índices de inflação esses índices de degradação da qualidade de vida, da saúde e a quantidade de lixo que atiramos na natureza diariamente. Seria possível, até, termos metas de qualidade de vida, associadas à redução desses índices. Melhor, essas metas não requereriam aumento da taxa de juros, mas elevação da taxa de civismo, de responsabilidade social de cada um dos brasileiros. Coisa que se obtém com informação e educação, que não ferem, nem desempregam ninguém, muito ao contrário.

Manoel Francisco, nosso Kiko Brito, informa que, quando saírem os dados, que estão muito atrasados, do desmatamento na Amazônia no ano passado, teremos uma péssima surpresa. É possível que tenhamos destruído bem mais que o território de El Salvador, que é de 20,720. Estamos perdendo riqueza no mar, a beleza das praias está virando miragem, porque, a cada ano, somamos mais praias ao grupo das inapropriadas para o banho. Destruímos espécies. Nossos parques e reservas estão ao Deus dará. E não geramos, com esta destruição toda, o progresso que alegam o ambientalismo impediria.

Culpa dos governos. Em grande medida sim. Sobretudo, culpa da crise fiscal do estado, que está reduzindo dramaticamente a capacidade de governança no país. Mas culpa nossa, também. De nossos microcomportamentos. Do nosso déficit de civismo, nosso desprezo pelo país, pelos vizinhos, por nossa história, nosso patrimônio. Nossas muitas mazelas têm mais a ver com nossas próprias atitudes diante de nossa existência coletiva, do que queremos reconhecer.

Uma coisa é certa, não podemos nos conformar quando o governo é muito pior que a sociedade que o gerou, como tem acontecido muito Brasil a fora. Os capixabas, por exemplo, mudaram seu padrão de escolha e elegeram um governador que não fazia parte do padrão moral dominante na política estadual. Paulo Hartung, que sabia que seu Estado havia sido dominado pela bandidagem por causa da omissão das elites e do conformismo de boa parte da sociedade civil capixaba, resolveu mobilizá-los, para sanear a máquina pública. O estado estava corrompido, a política criminada, porque a sociedade tolerava: o empresário aceitava o achaque, o cidadão que avançava o sinal pagava a propina ao guarda. Cúmplices do desmando. Com o grau de civismo beirando o zero, mandavam os corruptos e a bandidagem. Um pacto de não tolerância iniciou uma jornada cívica na terra capixaba, iniciando um processo de limpeza que já está dando resultados. Está longe de ter acabado, mas o grau de civismo da tribo capixaba já aumentou, assim como sua estima pelo Estado. E mais, a crise fiscal do setor público foi debelada. Hoje, a maioria dos problemas sem solução adequada se deve à crise do estado no âmbito federal. Dia desses vou lá conferir se houve progresso também na área ambiental.

Da próxima vez que você se indignar com um político de sua cidade, seu estado ou de Brasília, lembre-se que quem os faz severinos é nossa atitude como pessoas, toda vez que exercemos nossos papéis sociais. A sociedade não é algo separado de nós, uma metade arrancada de nós. É apenas a soma de nossos milhares de pequenos atos e escolhas e da forma como interagimos uns com os outros.

João Cabral que me desculpe esse uso de sua expressão, nessa metáfora de conjuntura, mas há abundante evidência de que é esse nosso déficit cívico que se traduz em um comportamento social severino e leva os severinos todos aos palácios e assembléias e esta a causa principal da “morte e vida severina”.

“E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina…” João Cabral de Mello Neto.

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