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O protocolo do Rio Doce a ser assinado pelos governadores de Minas e do Espírito Santo, pode ajudar o rio e ser um exemplo de como salvar nosso federalismo.

20 de abril de 2005 · 20 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

Quando Aécio Neves e Paulo Hartung firmarem o compromisso, em Pedra Azul, de iniciar uma ação integrada e cooperativa para salvar o Rio Doce, podem estar abrindo uma nova avenida no processo institucional brasileiro.

Nossa política e nossas políticas públicas estão marcadas por uma cultura do impasse. Tudo que diz respeito a mais de um estado, vira problema federal. Tudo que o governo do dia não gosta, vira veto. No federalismo brasileiro, o mais comum é uma jurisdição empurrar o problema para a outra e lavar as mãos. Ou gastar recursos numa disputa política estéril e enganosa, como ocorreu recentemente, no Rio de Janeiro, quando o Ministério da Saúde, que está produzindo um colapso nos serviços de saúde, em todo o território nacional armou barracas no Campo de Santana, em parceria com o Exército, como se a cidade precisasse de uma operação de emergência. Quem estava precisando de intervenção cirúrgica – e continua a precisar – é a política de saúde do governo Lula. Errou, também, o prefeito, ao devolver unidades ao Governo Federal. Empurra daqui, empurra dali, quem se ferra é sempre o povo. Não adianta mandar Brasília resolver. É preciso criar condições para enfrentar os problemas localmente, independentemente do rótulo do animal.

Essa mania brasileira de criar escaninhos para deixar os problemas entalados neles, me lembra uma conversa, na época em que eu militava na área de ciência e tecnologia, com o biofísico Carlos Chagas, filho do Carlos Chagas que descobriu o ciclo completo da doença que leva seu nome e reapareceu tragicamente nos canaviais do sul. Carlos Chagas Filho contava que o único jeito de escapar aos escaninhos paralisantes da burocracia brasileira era “fazendo pesquisa pura no bicho aplicado”. Como a nossa política científica era “pragmática”, voltada para a “utilidade social” da pesquisa, era preciso burlar essa prioridade demagógica e esterilizante formulando projetos de estudo de determinados “bichos” ou temas “aplicados” para, na verdade, fazer pesquisa científica pura. É esta que está na raiz do desenvolvimento científico e tecnológico, que gera os conhecimentos novos que, muitos anos mais tarde se tornam “aplicáveis” e, eventualmente, se transformam em tecnologias. Esse truque, de usar o escaninho para desentalar o recurso, funciona quando se quer fazer as coisas realmente acontecerem. O caso mais freqüente, porém, é de usar algum desses escaninhos providenciais para se livrar das responsabilidades.

Uma parte considerável da história da lenta agonia de muitos de nossos rios mais importantes – entre eles o São Francisco e o Doce – está escrita por esse irresponsável empurra-empurra de responsabilidades. As bacias hidrográficas serviram de álibi para que prefeitos se desentendessem e empurrassem o problema para os governos estaduais. Esses, transferiam as demandas e as culpas para o Governo Federal. Dessa forma, a maioria dos municípios ribeirinhos, ao longo de rios importantes, permaneceu sem soluções criativas locais para seu desenvolvimento econômico, expandiu-se por inchaço ou inércia, desordenamente e permanece até hoje, em pleno Século XXI, sem água e esgotos tratados, sem coleta de lixo organizada. O rio, ao invés de um aliado para o progresso comunitário, não passa da cloaca local. Onde há pescadores, não se encontra um, que não tenha uma história de dias melhores, quando os peixes, agora escassos e raquíticos, abundavam grandes e gordos. As vacas magras da pecuária extensiva, trocaram Mata Atlântica por erosão, sem benefício tangível para os criadores e com prejuízo para as populações locais. Não é por acaso que, quando se anda de carro pelas rodovias vicinais da maioria das bacias, se encontra um campo ralo, com restos de braquiária misturados ao mato, uns gados pingados na paisagem e um rio muito mais estreito do que já foi, coalhado de ilhas de sedimentos, com as águas barrentas e tristes. Olha-se para os morros e são morros pelados, hoje sem uso, mas que já foram cobertos de vegetação que protegia e permitia a persistência dos aqüíferos.

Costumo dizer, sempre que se está discutindo a inércia burocrática brasileira e o permanente conflito de jurisdições, que a única coisa que não se deve fazer é escrever mais uma lei determinando a “articulação” entre os órgãos e os níveis de governo. Qualquer situação que alguém considere estar precisando de uma ordem para fazer os vários agentes envolvidos se “articularem”, já é incorrigível. Já caiu no buraco negro das querelas político-administrativas que impedem a reforma estrutural do estado e a efetiva superação de sua crise fiscal.

Conversando com o governador de Minas, sobre a reunião de cúpula dos dois estados, ouvi dele, exatamente, essa inconformidade com a idéia de que cada estado é um compartimento estanque e que se deve esperar, sempre, que as soluções e os recursos venham de Brasília. O governador do Espírito Santo, já celebra, como vitória, o simples fato dos dois governadores e os prefeitos da região que atravessa os dois estados se reunirem, para discutir soluções ambientais e econômicas comuns. O secretário de Planejamento do Espírito Santo, Guilherme Dias, repetiu várias vezes, em contextos diferentes, a palavra integração e suas variantes. O Secretário de Meio ambiente de Minas, José Carlos Carvalho, vê essa ação cooperativa, como um passo que pode ajudar no redesenho institucional do federalismo brasileiro. A secretária de Meio Ambiente do Espírito Santo, chama atenção para a existência, na bacia do Rio Doce, de duas entidades públicas plurais que estão funcionando bem e com esse espírito de cooperação: o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Doce e a Comissão Interparlamentar MG-ES do Rio Doce. Essa iniciativa dos dois estados está se aproveitando, na verdade, de uma fissura criada pela nova legislação sobre gestão integrada de bacias hidrográficas, para acabar com vários escaninhos, inclusive mentais, e iniciar um processo que pode vir a ser uma importante contribuição ao debate sobre o federalismo brasileiro.

Lei, por melhor que seja, no Brasil, precisa pegar. A lei que criou a política nacional de recursos hídricos e criou o sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos (ufa!), não pegou na maior parte do território nacional. A começar por Brasília. O Governo Federal acaba de jogar toneladas de terra em cima dela, ao passar o trator sobre o Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco e começar a fazer, centralizadamente e na marra, a irresponsável transposição das águas do rio, disfarçada numa microfantasia de revitalização. Essa lei, que tem o número 9.433, de janeiro de 1997, diz uma porção de coisas no seu caput, que Brasília desconsiderou, entre elas, que a bacia hidrográfica deve ser a unidade territorial para implementação da política de recursos hídricos (inciso V) e que a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a participação do Poder Público, dos usuários e da comunidade (VI).

O Governo Federal anda às voltas com uma nova campanha publicitária, encomendada ao atleta das rinhas, Duda Mendonça, cujo slogan deve tratar de bons exemplos. Tipo “exemplo é você quem dá”. A julgar pelo seu comportamento no episódio da transposição do São Francisco, a campanha está dirigida aos estados e municípios, Brasília se isenta de dar bons exemplos, sobretudo de como respeitar, democraticamente, as leis existentes.

No Brasil, temos a mania de escrever leis sobre leis que não estão funcionando, quando o nosso problema não é de falta de lei, é de escassez de respeito à lei. E essa escassez aumenta, na proporção geométrica do excesso de leis sobre a mesma coisa.

No caso do Rio Doce, parece que os governadores querem, realmente, dar o bom exemplo e mostrar que é possível decidir e implementar um plano de revitalização de uma bacia hidrográfica importante, seguindo a letra da lei. Quer dizer, de forma descentralizada, com ampla participação do Comitê da bacia, de prefeitos e parlamentares. Tomara que consigam.

O modelo político brasileiro é profundamente presidencialista. Significa dizer que o presidente, os governadores e os prefeitos dominam a agenda pública. E esse modelo se assenta sobre dois eixos, ambos plurais, requerendo soluções cooperativas negociadas. O eixo partidário nacional, por ser multipartidário e competitivo, demanda coalizões bem negociadas e bem administradas politicamente, para que a boa governança seja possível. Esse eixo se reproduz, da mesma forma, nos estados e nas grandes cidades. Praticamente todos os governadores e os prefeitos de capitais de cidades de porte também precisam governar, apoiados em uma coalizão multipartidária. Quando o presidente – ou o governador – não é capaz de formar e liderar uma coalizão funcional, enfrenta sucessivos impasses e turbulência na relação com o Legislativo.

O segundo eixo é o federativo. Nele se concentram grande parte de nossos grandes impasses. É nele que tem empacado a reforma tributária, por exemplo, e todas as políticas que envolvem atribuições nos três níveis de governo. A principal falha de nosso sistema federativo decorre da concentração de recursos e dos poderes deles decorrentes na União. Mas o pluralismo e a competitividade do eixo partidário nacional dão aos governadores e prefeitos uma fatia efetiva de poder político. Essa disparidade, entre a concentração de recursos e poder burocrático na União e o poder político dos governadores e prefeitos de capitais e grandes cidades, é fonte permanente de conflito entre as esferas de governo, de fricção entre o Presidente da República e as bancadas dos estados no Congresso Nacional e de instabilidade na coalizão que lhe dá sustentação parlamentar.

A única solução institucional viável é a descentralização, desinflando a União, e a criação de jurisdições compartilhadas para gestão de políticas públicas que cortam a estrutura federativa, porém sem a predominância do Governo Federal que, na maioria das vezes, não deveria passar de observador. Não é por acaso que as primeiras iniciativas com razoável chance de sucesso estejam na área ambiental. Poluição, assoreamento, enchentes não respeitam fronteiras. As soluções envolvem ações locais, mas as conseqüências vão muito além do plano local. A responsabilidade é inequivocamente de todos e, portanto, não dá para querer “faturar” politicamente, de forma isolada, na base do deixa comigo, nem para empurrar o abacaxi para o vizinho. A vantagem é que o prêmio do sucesso é um bem público.

Essa é a razão pela qual acho que devemos olhar com interesse e cautelosa esperança, as soluções que serão apresentadas na reunião de Pedra Azul e acompanhar os passos seguintes. Pode ser um começo importante, não só para a qualidade das águas e do meio ambiente, mas para a própria funcionalidade da democracia brasileira. Temos a mania de achar que grandes resultados têm que sair de grandes eventos, de âmbito nacional. Raramente isso é verdade. Grandes eventos ou estão no lugar errado, por causa de excessiva concentração de recursos e poderes, ou não passam de puro espetáculo político, com muita pompa, barulho e circunstância e nenhuma substância. Desde as monarquias absolutas, as reuniões e os toques das trompas, serviam para anunciar o decidido, não para negociar o que decidir. Tomara que Pedra Azul dê certo.

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