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As Novas Frentes do Desmatamento

O Brasil desmatou mais do que indicam os números recém divulgados e continua a desmatar vertiginosamente. Novas clareiras surgem todo dia em toda a Amazônia.

29 de maio de 2005 · 20 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

O Brasil desmatou mais na Amazônia no ano passado, do que está registrado no relatório recém divulgado com dados retirados das fotos de satélite analisadas pelo INPE. A metodologia, que é boa, não vê tudo. O Brasil continua a desmatar, este ano, em velocidade provavelmente maior do que no ano passado. No relato do sobrevôo que fez de parte do Mato Grosso e do Pará, para O Eco, Manoel Francisco Brito, encontrou sinais de que o desmatamento este ano começou mais cedo. Nem esperaram a seca chegar, para ligar as motoserras. Em entrevista à Globonews, o Secretário de Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente, João Paulo Capobianco, mostrou que seu ministério é prisioneiro dos vícios do governo petista, cujo diagnóstico da grave situação brasileira sempre deposita os problemas na herança do governo anterior e as virtudes no ineditismo histórico dos seus planos, ainda por provar. O governo FHC parece funcionar no imaginário do governo petista como uma espécie de habeas corpus para a paralisia do atual.

Mas Capobianco disse algo que é, ao mesmo tempo, importante e improvável: que de agosto de 2004 a agosto de 2005 a implementação do Plano de Prevenção e Controle reduzirá significativamente o desmatamento e, sobre esses números, o governo deve ser cobrado e não poderá apresentar desculpas. Nessa mesma entrevista, o deputado Fernando Gabeira, lembrou que a observação concreta da operação do Plano, desde que foi proposto, mostra que ele não está funcionando. Faltam coordenação, soluções financeiras viáveis e meios e modos apropriados para, de fato, transformar o que está no papel em ações efetivas, com princípio, meio, fim e resultados. Todas as indicações são de que Gabeira está certo e o governo errado.

Os novos instrumentos legais estão atolados na paralisia do Congresso, resultado da falta de coordenação política e da inépcia do governo no trato parlamentar. Criar reservas é essencial, mas não é suficiente. É necessário proteger a reserva, com adequada fiscalização, o que requereria a reestruturação radical do sistema atual de vigilância c controle ambiental e, especificamente, florestal no Brasil, mais verbas, pessoal, equipamento e autoridade. Reservas de papel são frágeis como as árvores e os animais que pretendem proteger. No último Encontro de Unidades de Conservação, foram apresentadas algumas dezenas de trabalhos, mostrando o risco e a degradação em que vivem nossos parques e reservas, por todo o Brasil. Recentemente, um coronel do Exército, retornado de posto na vizinhança da Serra do Divisor, no Acre, fez um relato dramático da situação de abandono, das dificuldades de se obter a presença das instituições que têm o poder de polícia – a Polícia Federal e o Ibama – para coibir a livre circulação de caçadores, traficantes de animais, madeireiros, contrabandistas na região, que é um patrimônio inestimável de biodiversidade.

É certo, sem margem de erro, que o Plano não está sendo implementado adequadamente neste momento e nem o será no futuro próximo. Essa certeza vem da observação da lógica de operação do governo como um todo. Política e administrativamente, o governo tem sido, no mínimo lento, com respostas sempre retardadas, e, não raro, tem ficado paralisado diante dos desafios gerenciais e políticos postos por nosso sistema político complexo e nossa máquina pública em crise fiscal e estrutural de longo curso.

A pior postura possível é afirmar que o desmatamento observado é inaceitável, mas o governo está revolucionando a Amazônia. Não está. Tem nas mãos, alguns instrumentos novos importantes, como o DETER. Mas mostra a mesma incapacidade do governo anterior para mobilizar outros, importantes e caros, como o SIPAM (que saiu, como sabemos, do SIVAM). Tem algumas boas idéias e outras controversas. Prefere, porém, a buscar ampliar politicamente o leque de aliados, o ataque aos aliados críticos e outros simpatizantes da causa ambientalista. Esforça-se para defender os que, no governo e no PT, não estão empenhados na efetivação do programa ambiental pensado no Ministério comandado por Marina Silva, mas que é formatado e articulado político-administrativamente, no Gabinete Civil, cujo titular nunca escondeu seu viés pelo desenvolvimentismo a ferro e fogo.

Há mais razões para que fiquemos preocupados com o avanço acelerado do desmatamento este ano. A Terra do Meio, no sul do Pará e no Mato Grosso constitui, hoje, a fronteira amazônica conflagrada. É onde a floresta está perdendo para os grileiros, os madeireiros e os sojeiros, em velocidade alucinada. Manoel Francisco tem feito a crônica dessa terra sem lei e sem ordem – até porque a lei e a ordem têm estado, muitas vezes, do lado dos desmatadores – aqui em O Eco.

Mas, o próprio foco da opinião pública e política nessa fronteira da devastação, faz com que parte da onda predatória se desvie para outras áreas. Agora, como mostrou reportagem de Cristina Amorim, para O Estado de São Paulo, publicada no domingo, 29 de maio, uma parte desta onda se dirige para a Calha Norte, que abrange Roraima, Amapá e o norte dos estados do Amazonas e Pará. Os que têm os seus olhos pregados na fronteira crítica da Amazônia legal, centro indisputável da preocupação imediata com a destruição que arrasa a Terra do Meio e pode transformar o Mato Grosso em um deserto de soja e capim, dizem que o desmatamento por lá é insignificante diante dos grandes números da área conflagrada. É, realmente, pequena, a área destruída até agora, ainda mais comparada a quase 30 mil quilômetros quadrados de mata arrasada.

Mas, no passado, das enormes clareiras, de milhões de hectares, onde outrora foi mata amazônica fechada, se podia dizer o mesmo que Cristina Amorim está dizendo sobre a Calha Norte: “clareiras se proliferam e pontuam o que antes era um íntegro cobertor verde”. Querer desprezar novos focos de destruição, longe da Terra do Meio, para não desviar a atenção pública das áreas críticas é um erro político comparável a todos aqueles que levaram à destruição do que já foi destruído e não só na Amazônia. Desta forma não salvaremos a Terra do Meio e ainda permitiremos que se criem novas fronteiras críticas.

Hoje, o Brasil enfrenta, nesse campo, um gravíssimo problema, que se chama desmatamento. Ponto final. É mais grave do que no passado, porque ele já levou praticamente toda a Mata Atlântica e o Cerrado. Aliás, vale lembrar a declaração do governador Blairo Maggi de que em suas fazendas não corta mata, “só cerrado”. Ou a atitude do prefeito Jaime Silva (PTB), de Óbidos, na nova frente de desmatamento, na Calha Norte. Perguntado, por Cristina Amorim, se o desmatamento é um problema para Óbidos, como indicou levantamento do IBGE, referente ao período 2002-2003, preferiu partir para o esporte inventado pelo governo do PT, em Brasília: “quem disse foi a gestão anterior. Assumi o cargo em janeiro [de 2004]”. “Aquelas clareiras ao norte da cidade não são desmatamentos?”, insiste a repórter. “Ah, sim, claro. É, tem um pessoal se instalando ali. Sabe o que é? Isso tudo é pressão da nova fronteira agrícola. Com a pressão que existe no Sul [da Amazônia], o sojeiro vem para cá e se instala. Não tem mais terra no Mato Grosso, então os sulistas investem aqui”.

Alguém, aposta uma muda de mogno, no futuro da região de Óbidos? Se ainda há duvida, vejam como o distinto alcaide arremata: “O responsável pelo desmatamento é o próprio governo, que não define o que é reserva legal. Até pouco tempo atrás eram 50%, agora são 80%. A pessoa já desmatou para montar a produção. O que fazer? Replantar? Quem paga?” Ele tem certeza que um dia os grandes produtores de soja vão chegar a Óbidos e, com eles, o progresso. Sobre a extração de madeira em seu município, ele diz que a maioria dos que conhece extrai em terra legalizada. Mas, adverte, “o Estado de direito não existe mais neste país. Dez, quinze anos atrás, Óbidos vivia do extrativismo. Aí, aparece uma pessoa revestida de ambientalista, que diz que estamos desmatando e caçando e cria uma área de proteção. Há um grande mito sobre a Amazônia, de que aqui não tem ninguém. Só lembram da Amazônia quando se está desmatando. Ninguém preserva o verde com o bolso no vermelho. O governo precisa dar nova opção de atividade para a população ou ela vai tirar madeira. É fácil dizer que não pode”.

O prefeito tem razão em muita coisa, menos em não ver a destruição. É mais um dos iludidos com o progresso que vem atrás da destruição. Prefeito da Amazônia devia ser obrigado a viajar pelas “terras do depois”, antes de tomar posse. São as terras largadas, desertificadas, superexploradas, onde a população amarga miséria pior do que antes do desmatamento. É claro que tanto Capobianco, quanto o prefeito Silva têm razão de que é preciso ter um modelo de desenvolvimento sustentável para a região Amazônica. Mas o prefeito é vítima das mesmas contradições que paralisam qualquer plano para a região e aceleram o desmatamento. Uma, a idéia de que a preservação contraria o desenvolvimento. Diga-se, por justiça, criada pela face reacionária, antiprogresso, do ambientalismo. Outra, a certeza de que as soluções pertencem ao governo federal, isentando-se de qualquer responsabilidade pelo “pessoal que está se instalando ali”.

A primeira vez que ouvi falar da Calha Norte, em Brasília, foi no governo Sarney. Um governo em regime voluntário de semi-tutela militar. O projeto Calha Norte fora concebido pelos militares, para instalar um cinturão de fortes, com o objetivo de ocupar e proteger uma fronteira remota e desguarnecida. Nunca foi inteiramente realizado. Ao ler sobre o avanço da grilagem e do desmatamento na Calha Norte, lembrei-me da observação de Manoel Francisco sobrevoando um pedaço da fronteira crítica do desmatamento, de que onde há reservas indígenas ou instalações militares, a mata está mais intacta.

Estou convencido – e espero ser desmentido em agosto de 2005 – que o Plano de Prevenção e Contenção do Desmatamento não terá resultados apreciáveis este ano. Tenho tentado expor as razões de meu pessimismo aqui nesta coluna. Há razões políticas e sociais, para ele. A crise fiscal do estado, associada à correlação de forças adversas nos legislativos e nos executivos e à incapacidade do ambientalismo em propor alianças mais abrangentes e propostas mais realizáveis, tudo contribui. O prefeito Jaime Silva acertou, sem saber, numa das mais graves deficiências do Brasil contemporâneo: o encolhimento do Estado de direito, que não se deve, entretanto, ao progresso do ambientalismo, e sim ao avanço do “Brasil ilegal” in loco e nas suas ramificações político-administrativas. Tentar deter a destruição ambiental hoje nada tem a ver com criar obstáculos ao nosso progresso econômico. Tem a ver com a proteção de um patrimônio que também está encurtando e pode por em risco regiões muito mais amplas que o entorno da vastidão do desmatamento. A destruição será sempre maior, nos seus efeitos, do que sua dimensão puramente física.

Quero ser desmentido, no ano que vem, pelos dados corretos do desmatamento em curso. Suspeito que será maior ou igual ao deste ano que, para todos os efeitos, está para ser perdido nos próximos meses, se não for vencida a paralisia política e administrativa do Governo Federal. Mas, Brasília não pode tudo e está longe demais das fronteiras críticas e das novas fronteiras. Há governos estaduais claramente envolvidos com a destruição. Se não se formar uma onda sóciopolítica contra o desmatamento, a favor da Amazônia, se não se formar uma opinião pública nitidamente pela prevenção e contenção da devastação, os próximos anos também estarão perdidos.

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