A crise do gás com a Bolívia que expropriou ativos explorados pela Petrobras tem uma dimensão que não está sendo considerada. Ela pode produzir um grave retrocesso no desempenho ambiental da indústria de São Paulo.
Ao longo dos últimos anos, as indústrias vêm convertendo seus processos para usar o gás como combustível e, em muitos casos, como matéria-prima. Tudo começou por razões econômicas que tinham um benefício ambiental colateral. A Petrobras, com o gasoduto em pleno funcionamento, cheio de gás, começou um programa agressivo de convencimento das empresas, para mudarem para o gás. Diante da vantagem de custos em relação aos derivados de petróleo e do benefício adicional de redução da emissão de gases de efeito estufa e de material particulado (fumaça preta e fuligem), a indústria aderiu em peso. Já havia, naquela época, uma difusa preocupação ambiental no meio das grandes empresas. As propostas da Petrobras juntaram o útil ao necessário: redução de custos e, de lambuja, redução de emissões.
E a diferença não é pequena. Entre 1999 e 2004, a ComGas informa que foram convertidas 500 indústrias em São Paulo, levando a uma redução de 29% nas emissões de gás carbônico, 95% nas de material particulado e 99% nas de enxofre. O gás já responde, hoje, por 70% da geração de calor na indústria paulista. Setores como o da indústria do vidro que já haviam definido a conversão para o gás como objetivo em seus planos estratégicos, responderam com muita rapidez à oferta da Petrobrás. Hoje 95% da produção de vidro brasileiro utilizam o gás. Na indústria de fertilizantes, matérias-primas derivadas de petróleo foram integralmente substituídas pelo gás.
A participação do gás em nossa matriz energética ilude a vista e esconde a sua enorme importância industrial hoje. Seja como insumo energético, seja como matéria-prima, o gás natural vinha crescendo e já tem um papel crítico, pelo menos do ponto de vista ambiental, na matriz insumo-produto do Brasil.
O efeito combinado do choque de preços causado pelas expropriações na Bolívia e da elevação da percepção da magnitude do risco político envolvido na dependência a um insumo estratégico oriundo de um país com um histórico de tão alta instabilidade político-institucional não pode ser desprezado. Altera todos os planos estratégicos das empresas. E muitas delas, em algum momento, enfrentarão os efeitos dessa crise em seus resultados. Já há quem fale, em São Paulo, em reconversão integral ao óleo combustível, o que teria alto custo e representaria um retrocesso ambiental perigosíssimo.
Durante o período eleitoral é provável que a Petrobras, prisioneira da lógica populista que comanda o governo Lula em todas as suas dimensões exceto na política monetária, subsidie a economia brasileira do gás, evitando repassar a elevação de preços. Mas, passado o período eleitoral, esse repasse será inevitável. A empresa diz que resistirá ao aumento de preços. Pode ser. Mas sua reação foi tardia e inepta demais para poder evitar prejuízos. No mínimo terá que arcar com a súbita e forte elevação do imposto. O governo acha que é um truque eleitoral de Evo Morales. Que ele recuará após as eleições para a Constituinte, no final do ano. Mais um desses erros elementares de análise política do governo do PT.
É pouco provável que a Petrobras consiga se livrar da elevação de preços. Está claro que o governo da Bolívia estatizou o resultado da exploração mineral e que passará a fixar quotas de produção e preços de comercialização do gás. A Petrobras, provavelmente, vai chiar em público, e negociar no privado, acabando por aceitar as novas condições impostas pelo governo boliviano.
Não importa muito se a Bolívia, ao final, sairá perdendo. É o que acontece, ao fim e ao cabo, com toda gestão populista. Acontecerá lá, acontecerá no Brasil. Mas os prejuízos econômicos, energéticos e ambientais para a economia brasileira serão inevitáveis e podem ter uma dimensão que ainda não está adequadamente avaliada.
Alertado para o Risco Bolívia, o presidente da Petrobras, Sérgio Gabrielli preferiu apostar nas afinidades ideológicas entre o governo Evo Morales e o governo Lula da Silva. Desrespeitou, dessa forma, os compromissos assumidos pela empresa que dirige circunstancialmente, com seus consumidores. Chegou a anunciar a expansão dos investimentos da empresa naquele país, os mesmos que, agora, algumas semanas depois, se viu forçado a “congelar”, por causa da crise.
Um erro elementar, no qual não se aposta mais de um bilhão de dólares em investimento, sem falar no investimento privado para a conversão para o gás. Mostrou irônico desdém quando lhe perguntaram se a empresa havia feito seguro de risco político para suas operações na Bolívia. Claro, seguro de risco político é quase um insulto para certa esquerda. Presume desconfiança em relação ao comportamento de governos. No caso, havia um sentimento de segurança típico do governo Lula. Achavam que o charme do presidente, as afinidades ideológicas, a influência do PT na esquerda sul-americana exercida pela ação diplomática oficiosa, mas dominante, do assessor Marco Aurélio Garcia, e a natureza estatal da Petrobras eram seguros suficientes de que teríamos tratamento diferenciado pelo governo de Evo Morales. Deu no que deu. Depois, o seguinte, como ficariam os interesses brasileiros, quando o PT deixar o governo, se Morales, porventura, conseguir a longevidade política que Chávez se assegurou na Venezuela?
Os erros de governança corporativa da Petrobras são simétricos aos erros de governança no Governo Federal. Em ambos os casos, a gestão dos negócios foi politizada e ideologizada: negócios corporativos, no caso da empresa; negócios de estado, no caso do governo. O caso mostra, com toda clareza, a extensão das inclinações populistas do governo Lula e a precariedade da governança no país. Essa similitude nada acidental entre o comportamento da Petrobras e o do governo mostra a extensão do aparelhamento e da influência ideológica e populista em toda a máquina estatal brasileira, até mesmo no setor das empresas de economia mista, como a Petrobras. Revela, também, o mesmo descompromisso com os interesses mais duradouros do país, pelo governo, e de seus acionistas e consumidores, pela Petrobras.
A incerteza e o risco vão paralisar o processo de conversão. As indústrias não sairão do gás para outras formas limpas de energia. Tenderão a voltar para o óleo combustível. As novas fábricas não serão desenhadas para gás, mas para os derivados de petróleo, mesmo com a desvantagem de preço. Esse retrocesso ambiental elevará a contribuição do país à concentração de gases estufa na atmosfera.
Existe cenário alternativo? Existe. A Petrobras poderia, imediatamente, convocar as empresas que se propuseram a ajudá-la a explorar o gás da bacia de Santos. Com investimento de terceiros e ajuda operacional, esse gás pode entrar mais rapidamente em nossa matriz energética e substituir o gás boliviano. Se a empresa retornar ao seu padrão de responsabilidade corporativa, der mais importância aos interesses de seus acionistas e consumidores, do que à ideologia do governo e da direção do dia, conseguirá restabelecer a confiança da indústria e neutralizar as forças que já atuam para o retorno ao óleo combustível. Uma empresa como a Petrobras tem que ter mais responsabilidade para com o país e olhar além dos interesses de sua eventual direção e mesmos de seus interesses econômicos mais estritos. Por isso ela é estatal. Se não medir cada ato seu, do ponto de vista das conseqüências mais amplas, como nesse caso, em que deixa na mão consumidores, prejudicar acionistas com os prejuízos decorrentes de seu descuido com o “Risco Bolívia” e com gastos para subsídios politicamente inspirados e aumentar a vulnerabilidade ambiental do país, é melhor que seja privatizada. Para ser estatal, tem que ser fiel aos propósitos do estado de defesa do interesse nacional.
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