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Correndo atrás do prejuízo

A Br 163, usada pelo governo como símbolo para comemorar o Dia Mundial do Meio Ambiente, não deve ser celebrada. É um erro econômico, logístico e ambiental.

7 de junho de 2006 · 18 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

O governo resolveu usar o projeto de desenvolvimento sustentável para asfaltamento da BR-163, que liga Cuiabá a Santarém, atravessando a Terra do Meio, como símbolo da comemoração do Dia Mundial do Meio Ambiente. Não vejo muita razão para esse anúncio ser a peça de resistência de qualquer comemoração, ainda mais que já havia sido feito em outras ocasiões. O condicionamento da licença ambiental a um plano de desenvolvimento sustentável é um avanço. A criação de unidades de conservação e reservas extrativistas, como forma de amortecer o impacto negativo da estrada, é muito importante. Tudo isso a ministra Marina Silva contou na cerimônia.

Qual o problema, então? É que tudo isso depende de uma coisa que o Ministério do Meio Ambiente e o próprio governo como um todo não têm para oferecer: presença ativa, permanente e eficaz do estado, impondo o império da lei, a obediência às regras de ocupação a garantia de implementação da política de licenciamento sustentável. Além do mais tudo isso é apenas para minimizar o impacto de um erro de planejamento econômico, logístico e ambiental.

Sem garantias institucionais

A proteção do meio ambiente por meio de unidades de conservação é uma questão de estado e não de governo. Não tem a ver com a autoridade moral da ministra Marina Silva, nem com vontade política de fazer as coisas acontecerem. Tem a ver com a falência da capacidade de ação estatal eficaz, com a degradação institucional dos aparelhos de estado e com a crise fiscal estrutural, que deixa todas as atividades essenciais do estado sub-financiadas. Significa que o IBAMA não tem condições de garantir fiscalização eficaz, sustentada e efetiva na região. Significa que o poder de polícia será exercido intermitentemente, em ações especiais de repressão e não no sentido de impor definitivamente o império da lei numa região sem lei e sem ordem. Significa que as fronteiras das unidades de conservação serão apenas um constrangimento para os menos ousados, mas não uma barreira moral, nem institucional, ao avanço da destruição.

Uma leitura rápida das dezenas de artigos apresentados ao IV Congresso Nacional de Unidades de Conservação, em 2004, mostra que a maioria absoluta dos parques nacionais sofre enormes agressões e ameaças. Fiz uma resenha de vários desses estudos aqui. Eles mostram desmatamento, invasões de caçadores, coletores de espécies protegidas, fortes efeitos de borda, situação fundiária irregular, falta de fiscalização adequada e fortes pressões adversas no seu entorno. Eu mesmo tenho visitado vários parques e constatado esses problemas. Mesmo onde os funcionários do IBAMA são dedicados, competentes, faltam-lhes recursos e a capacidade para atuar adequadamente. Portanto, embora as unidades de conservação possam ser garantia contra o desmatamento desbragado, elas mesmas estão sem garantias, são unidades de papel, até que se prove o contrário.

Mesmo unidades de papel são melhores do que nenhuma reserva. A terra pública em si não gera qualquer respeito no Brasil, o que já é uma aberração e sintoma de nossas graves disfunções institucionais e culturais. Terra pública não é terra de ninguém. É terra de todos. Portanto não pode ser apropriada privadamente, invadida, desmatada ou ocupada. Seu uso tem que ser determinado pela autoridade estatal, que é guardiã do patrimônio público. Terra pública é patrimônio público, mas aqui é vista como terra devoluta, desocupada.

Erro total

Sempre fui contra a Br-163, por razões ambientais e logísticas. Ela atende aos interesses da produção de soja do Mato Grosso e das trading companies, principalmente da Cargill, cujo porto, em Santarém, construído sem licenciamento ambiental e mantido por expediente jurídico, é o ponto de destino do principal fluxo da Br. Não vejo razão alguma para rasgar a Terra do Meio com uma rodovia, para que por ela passem pesados caminhões de soja. Do ponto de vista logístico, seria muito mais recomendável um corredor ferroviário. E do ponto de vista ambiental também. A ferrovia tem menor impacto ambiental, requer um corredor mais estreito para sua construção e não demanda, nem incentiva serviços ou ocupação nas margens da estrada. O diesel consumido por tonelada de soja transportada é muito menor no caso da ferrovia. Usa-se o argumento de que a rodovia permitirá o trânsito de passageiros. A ferrovia também permite, com a vantagem de que desestimula o uso de transporte individual.

A eficiência e a economicidade da ferrovia como meio de transporte de grãos, principalmente em distâncias superiores a 1000 quilômetros, caso da ligação Cuiabá-Santarém, são muito superiores à opção rodoviária. O impacto ambiental total de um corredor ferroviário comparado a um corredor rodoviário é muito menor. Portanto, é preciso reconhecer, desde logo, de que se trata de uma escolha errada, logística e ambiental. Logo, condicionar sua realização a um projeto de mitigação de impacto não é um exemplo tão notável assim de política ambiental. É uma redução de impacto de uma opção equivocada.

Não estou desmerecendo o trabalho do Ministério do Meio ambiente e a ministra Marina Silva tem razão quando celebra o fato de que o licenciamento da rodovia só saiu com o plano de desenvolvimento sustentável. Eu sei que a decisão descontenta muitos interesses importantes dentro do governo a que a ministra pertence e fora dele também. Essa condicionante sustentável ao licenciamento é uma novidade importante em si mesma. A criação do Parque Nacional do Juruena com 1,996 milhões de hectares em uma área de pressão da soja no Mato Grosso, também contraria interesses e atropela a manobra do governo do estado, junto com a Assembléia Legislativa, abarcando 60% do parque estadual por eles criados e a Reserva Ecológica de Apiacás.

Nada disso resolve dois pontos fundamentais. O primeiro é que nenhuma política de governo pode servir como garantia de interesses nacionais permanentes, se o estado não tem capacidade de implementá-la, regular a atividade econômica a que ela se refere, atender às pressões sociais legítimas delas decorrentes e impor a observância das regras necessárias para sua concretização. Política pública não é instituição. O problema brasileiro é institucional e não de política pública.

O segundo ponto é que a Br 163 nunca será um bom exemplo de coisa alguma, nem de progresso, nem de política ambiental. É apenas mais um erro, associado a uma cultura desenvolvimentista de empreiteiro, que nos transformou numa aberração logística. O Brasil é o único país de grande extensão territorial do mundo que dá preferência às rodovias sobre as ferrovias. Aqui, ao contrário do resto do mundo, o transporte ferroviário não é a opção preferencial para o transporte de cargas a longa distância, acima de mil quilômetros. No caso do transporte graneleiro, nem se discute a vantagem da ferrovia sobre a rodovia, só no Brasil. Um erro logístico e econômico, ao qual se superpõe um grande erro ambiental. Não dá para comemorar.

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