Os mercados de energia, comida e produtos florestais vão convergir. A energia do futuro não pode ser fóssil, se queremos uma sociedade humana realmente sustentável no longo prazo. Foram frases lançadas por Christopher Flavin, em um almoço reunindo, no Rio de Janeiro, empresários, políticos e pesquisadores, todos com a preocupação ambiental em comum. A reunião, promovida por Israel Klabin, da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável, em torno de Flavin, serviu para que, numa rápida troca de idéias e cartões de visita, aquelas pessoas, de origem e atividades diferentes, interagissem mais com o influente World Watch Institute. Acabou virando um daqueles encontros em que uns aprendem com os outros e as interações se multiplicam e vão além do imaginado.
Flavin é presidente do World Watch Institute e demonstra, como pode, que sua principal preocupação, no momento é com energia. Claro, se não mudarmos o padrão energético global, não conseguiremos de forma alguma enfrentar o tremendo desafio posto pela mudança climática. Além disso, tem um foco forte e importante no econegócio. O WWI está trazendo para o Brasil essa sua conexão com o mundo financeiro e do econegócio, ao qual quer dar visibilidade. De novo, está certo. Como a economia é capitalista, não dá para mudar o seu viés energético e de uso de recursos se a sustentabilidade não se tornar o quadro de referência para todas as atividades corporativas e para o próprio mercado.
Ao mesmo tempo, diz Flavin, é preciso que sociedades territorialmente extensas como Estados Unidos e Brasil aprendam a planejar e administrar sustentavelmente o uso do solo. A Europa faz isso há muito tempo e cada vez melhor. Nunca teve fronteiras contíguas amplas e abertas como países como esses dois, a Austrália e a Nova Zelândia. Ou China, um dos focos do relatório do World Watch Institute, State of the World – 2006, o outro foi a Índia.
Na conversa em torno da mesa, inevitavelmente, o prato principal foram os biocombustíveis e as vantagens que o Brasil tem nessa área. Não há dúvida e que o Brasil pode ser uma das potências bioenergéticas do Século XXI. Percebi, pela atenção com que Cristopher Flavin, Fernando Gabeira e Alfredo Sirkis ouviram a exposição de Mário Vieira, como a questão se tornou, corretamente, um ponto central de nossas preocupações. Mário é consultor da área de energia, e falou sobre como integrar a produção de álcool, biodiesel e eletricidade e das possibilidades de também inserir, nesse processo, a produção de soja, principalmente naquelas regiões onde soja, açúcar e álcool são vizinhos. Como a produção de açúcar e álcool desperdiça vapor, esse vapor pode ser transformado em trabalho para a moagem da soja, que seria transportada até a usina. Como o etanol é usado na produção de biodiesel, este seria produzido no local, nesse casamento entre soja e cana. A idéia é nada desperdiçar e tudo transformar em energia.
Era conversa inteligente. Fiquei convencido de que com a tecnologia já disponível o Brasil pode gerar bioeletricidade, o que reduziria a necessidade de hidrelétricas com balanço ambiental negativo e eliminaria a necessidade de termelétricas. Também me convenci de que existe um futuro viável de energia alternativa, não fóssil, para o Brasil, com ganhos crescentes de eficiência, incorporando novas fontes e atualizando a tecnologia, trocando-a por tecnologias mais eficientes. O álcool brasileiro é produzido em um sistema de baixa eficiência energética. Pode ficar mais eficiente e, no processo, de produção, se pode gerar eletricidade. Bom, no Brasil, tudo pode ficar mais eficiente. Conversa inteligente é assim, pode-se aprender e ver melhor as coisas.
Mas confesso que, ao mesmo tempo em que ouvia e apreciava a exposição do Mário, via a expressão de interesse de vários dos ouvintes, foi me dando uma grande aflição. Porque não conseguia parar de pensar no assunto que fora objeto de dois comentários meus na CBN, na quarta-feira, 23 de agosto e na quinta, 24. No primeiro, eu falei sobre a descoberta de mais de 400 trabalhadores em condições ilegais de trabalho nas propriedades do grupo Zillo Lorenzetti, um grandão da ÚNICA, a central dos produtores açúcar e álcool de São Paulo. E em outra propriedade do grupo, mais de 40 trabalhadores haviam sido flagrados em condições que a OIT classifica como a forma contemporânea de trabalho escravo. Usei o fato para mostrar que o biocombustível está fazendo sucesso internacionalmente, mas ele está longe de ser social e ambientalmente respeitável. E falava da necessidade de os bons empresários forçarem um pacto de responsabilidade total em seus setores, até para evitar danos à sua imagem e barreiras sociais e ambientais por parte de seus competidores internacionais, no mercado mundial.
No dia seguinte, voltei ao assunto, porque a coisa havia ficado mais grave. Ao entrar no site do BNDES, em busca de uma outra informação, encontrei uma nota à imprensa dizendo que o banco aprovara, tendo o Unibanco como agente repassador, mais de R$ 20 milhões para esse grupo. O BNDES, diga-se de passagem, nem é signatário dos Princípios do Equador. O governo financia com dinheiro subsidiado empresas que não respeitam minimamente a legislação trabalhista. Há incontáveis casos de financiamento oficial, na Amazônia, a grileiros, empresas que usam trabalho escravo, que desmatam. Ou seja, um aparelho de estado desconjuntado, fragmentado, que não tem comunicação interna e não tem responsabilidade social ou ambiental. Tem uns bracinhos sociais e outros ambientais, mas o corpanzil desse Leviatã anêmico, todavia ainda poderoso e que distribui benesses a torto e a direito, mesmo sem poder, não tem responsabilidade social ou ambiental.
Pensando nisso, eu vi o cenário do Brasil como potência bioenergética do Século XXI desmoronar. Ele se transfigurou em uma tragédia, produzida pela ausência de responsabilidade estatal e empresarial no país e por uma rede geral de complacência e conivência. As empresas brasileiras, na sua maioria, não sabem o que é responsabilidade corporativa total – econômica, social e ambiental – e muitas usam a palavra sustentabilidade, como marketing enganoso. O governo brasileiro, não tem noção de que suas responsabilidades são sistêmicas. Não pode incentivar aqui, o que condena ali. A responsabilidade pública é integral e deveria ser obrigatório que todo agente público consultasse e investigasse a integridade – total – de cada empresa que vai privilegiar. Não basta tomar a declaração do interessado. Quem escraviza, grila, desmata, mente. Porque qualquer empréstimo oficial é um privilégio, porque jamais será dado com os mesmos critérios que um agente financeiro privado daria e é financiado com o imposto pago pela maioria mais pobre.
A tragédia é que o ideal de desenvolvimento sustentável, plenamente viável para o Brasil, se perde nas brumas dos enganos, das enganações e da irresponsabilidade geral. Eu tenho ouvido extraordinárias defesas da vocação bioenergética brasileira, sem que essas pessoas falem uma frase sobre as salvaguardas necessárias, para que a soja não desmate, para que a expansão da cana seja mecanizada, erradicando-se a queimada, para que tanto a produção de soja, quanto de cana, não se baseiem em superexploração do trabalho e no recurso ao trabalho escravo. São mundos paralelos e estanques.
Mas não podem ser. Desenvolvimento sustentável só faz sentido se for um conceito sistêmico. A sustentabilidade econômica, fundamental, tem que estar associada, desde o início, à sustentabilidade social e ambiental. O empreendimento tem que ser viável, usar os recursos e a energia de forma sustentável e respeitar os direitos de seus trabalhadores e das comunidades em que operam. Se não for assim, não é desenvolvimento, nem é sustentável. É apenas uma das modalidades do capitalismo selvagem e predatório.
Uma hidrelétrica tem que ser desenhada para ser sustentável nessa acepção sistêmica. A produção de biodiesel e etanol também. Qualquer atividade tem que ser assim. Não é um desafio só dos governos. O mercado tem que provar que a economia de mercado é sustentável nessa acepção. O estado tem que regulá-la para que seja sustentável, nessa acepção. As empresas, seus gestores, as autoridades e os funcionários públicos, têm que usar essa acepção em suas decisões. E, no Brasil, esse desafio começa por impor o império da lei. O governo, as organizações empresariais, como a ÚNICA, a CNI, a CNA e suas congêneres, têm que exigir o respeito integral à lei por parte de todos. O governo, combatendo a corrupção e promovendo regulação eficiente e eficaz. As organizações empresariais, exigindo comportamento responsável de seus associados e estabelecendo pactos contra as piores práticas.
Nem vou falar que deveríamos adotar as melhores práticas. Seria utópico, hoje em dia. Melhorar as práticas atuais, para que, no mínimo, saiam da ilegalidade já seria, no Brasil de hoje, pobre Brasil de hoje, uma revolução.
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