“Eu me sinto mal quando ministros decidem regular coisas que fariam melhor se deixassem nas mãos das empresas… Seria melhor que eles definissem um regime para o carbono, de início, e deixassem a indústria decidir como lidar com ele”. Essa frase podia ter sido dita por um empresário do setor elétrico no Brasil, não fosse pela parte do “regime de carbono”. Ela foi dita pelo presidente da Associação dos Produtores de Eletricidade da Inglaterra, David Porter, em reação a propostas do governo britânico de estabelecer que todas as geradoras de eletricidade teriam que ser “neutras em carbono”. No Brasil, prefere-se dizer que é melhor deixar as hidrelétricas em paz, porque elas são fonte de energia limpa. Nem se fala em carbono. Estamos em pleno Século XIX por aqui.
Para início de conversa, limpas elas não são. Hidrelétricas como a de Barra Grande, por exemplo, destroem desnecessariamente biodiversidade e nascem de um jogo sujo, centrado em um EIA-RIMA fajuto. Os que se envolveram nessa trapalhada e são sinceros e responsáveis, hoje reconhecem publicamente seu erro. Toda hidroelétrica, além de causar danos ambientais – às vezes toleráveis, às vezes não – emite carbono com a decomposição de matéria orgânica em seus reservatórios. Quanto maior o reservatório, pior. Todas deveriam ser obrigadas a contabilizar, junto com seu potencial gerador, o seu custo ambiental real, principalmente em carbono, para que elas, também, no Brasil, fossem forçadas a ser neutras em carbono e a sua energia o mais limpa possível, inclusive do ponto de vista ético.
O retrocesso na discussão energética brasileira esteve anunciado na campanha eleitoral de 2006. Tanto Lula, quanto Alckmin só falaram no licenciamento ambiental como um obstáculo. Esse retrocesso está demonstrado com maestria, por Washington Novaes na sua coluna desta sexta-feira, 24 de novembro.
Lobby de empresários é coisa normal. É da democracia. E sempre tem viés. Sempre representa uma visão unilateral. Para isso é preciso estado. Estado, não governo. Governo é para administrar a máquina do estado e tocar as políticas públicas em que acredita. O estado, com a independência necessária, faz a mediação entre o mercado e a sociedade. Se ele é totalmente capturado pela lógica e pelos interesses do mercado, sufoca os interesses da sociedade. Se ele só representa os interesses da sociedade, anula o mercado. A regulação busca o melhor equilíbrio possível, em cada circunstância, entre mercado e sociedade. Entre o interesse privado e o interesse coletivo.
No Brasil, o interesse coletivo sempre esteve sufocado pelos interesses privados e por sua agregação corporativista. Claro, nossa política reflete apenas nossa estrutura de privilégios. Como vivemos uma profunda crise do estado, fiscal, estrutural, moral, a relação entre estado e sociedade e estado e mercado está truncada, subvertida, contaminada. E a relação entre mercado e sociedade ou não está sendo mediada, ou é sempre desequilibrada.
Meio ambiente não é obstáculo, nem externalidade. Ele pode ser limite, limitação, e por isso precisa ser bem manejado. Se desconsideramos esses limites no curto prazo, vamos encontrar limitações provavelmente instransponíveis no longo prazo. Não é externalidade, porque, principalmente com as evidências da mudança climática, é um componente endógeno, inevitável das escolhas energéticas e dos padrões de produção e consumo. Não é puro efeito colateral. Quando se decide por uma determinada fonte de energia, por uma opção de tecnologia, por um específico trade-off entre energia e biodiversidade, se está decidindo um dado futuro ambiental e, consequentemente, um padrão de qualidade de vida e limites ao crescimento subseqüente. Isso pode ser feito por omissão, com alto custo, ou racionalmente, calculando adequadamente os custos e benefícios integrais dessas decisões e descartando as piores.
Nenhum produtor de energia desconhece isso. Energia é um setor que requer elevada capacidade de cálculo, previsão e planejamento. Portanto, quando tratam a questão ambiental como estão tratando, não estão sendo nem transparentes, nem responsáveis.
Mas pior papel é o do governo. Se houver técnicos competentes no governo discutindo esse assunto, eles também não desconhecem essas coisas. Se forem responsáveis terão informado a seus ministros e a seu presidente sobre as conseqüências reais das escolhas que estão fazendo. O presidente e seus ministros, na qualidade de gestores políticos, não precisam ter conhecimentos técnicos. Mas têm a obrigação política e moral de se socorrer do melhor assessoramento técnico disponível e ouvir os argumentos dos setores técnicos da sociedade e do mercado, para orientar suas decisões.
A falha maior decorre da politização das agências reguladoras. A regulação do setor elétrico, hoje, é fraca demais para cumprir suas obrigações elementares. Se fosse uma agência tecnicamente competente, estaria se associando à autoridade ambiental, na demanda de relatórios decentes de impacto ambiental, de transparência no cálculo do balanço energético-ambiental e não se alinhando com os que desejam deixar tudo nas mãos do mercado, para que a indústria decida como fazer. Além disso, qualquer pessoa séria do setor de infra-estrutura há de reconhecer que na desordem regulatória geral, vigente, na inconstância das regras, ninguém está realmente disposto a fazer investimento de longo prazo como esses. Só se for com recursos públicos e subsidiados, porque o risco regulatório transcende de muito o âmbito puramente ambiental. A área ambiental, porque é mais fraca, virou o boi de piranha.
A indústria está fazendo o que se espera dela: defendendo seus interesses. Mas não está sendo sincera. Usa argumentos parciais e truncados. Nem demonstra ter responsabilidade corporativa na área ambiental. Qualquer pessoa séria, que conhece a área sabe que a maioria esmagadora dos estudos de impacto ambiental e dos relatórios de impacto ambiental não vale um tostão furado. E uma parte, na verdade, não vale mais que um bom processo judicial.
Porém, pior fazem o governo e as agências estatais. Estão descumprindo suas obrigações. Como esse é um setor de prazo longo de maturação, quem vai pagar o pato são os próximos governos e as próximas gerações. Claro, a história sempre nomeia os responsáveis pelas tragédias. Mas qual o consolo de ler nos livros de história as razões pelas quais o país ao invés de se desenvolver, ficou ainda mais atrasado no seu processo civilizatório?
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