Um grupo de cientistas brasileiros, entre eles o climatologista Carlos Nobre, presidente do comitê científico do IGBP (International Geosphere-Biosphere Program) se debruçou sobre as pesquisas relacionadas a mudanças ambientais no Brasil e acabou concluindo que elas formavam um conjunto interdisciplinar que justificava a idéia de um seminário para divulgá-las em bloco. Daí nasceu o 1o Simpósio Brasileiro sobre Mudanças Ambientais Globais, realizado nos dias 11 e 12 de março no Rio, pela Academia Brasileira de Ciências, pelo IGBP, pelo INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) e pelo ICSU (International Council for Science). O objetivo seria divulgar mais entre cientistas, estudantes e interessados, os resultados do trabalho científico das mais diversas áreas e das mais diversas partes do Brasil sobre mudanças ambientais.
Mas suspeito que, do ponto de vista do público presente – a imprensa parece não ter percebido bem isto – o Simpósio era uma mistura de estado das artes da ciência brasileira voltada para o estudo das mudanças ambientais globais e balanço sobre o consenso científico brasileiro sobre a mudança climática.
Baixo carbono urgente
Desde a primeira apresentação, o consenso sobre alguns pontos eram evidentes naquela porção da comunidade científica brasileira ali representada. O primeiro ponto desse consenso é que a mudança climática é real e parte de seus efeitos inevitáveis, porque se deve a processos já em curso e irreversíveis, como o efeito estufa decorrente da emissão de gases realizada ao longo das décadas passadas.
Outro ponto importante de consenso é que o quarto relatório do IPCC, cujo sumário foi divulgado em fevereiro passado e a versão completa e final será divulgada em abril próximo, reduziu a incerteza sobre a mudança climática e aumentou o grau de confiança das previsões.
Por essas duas razões, entre outras, ficou mais urgente a necessidade de reduzir o cociente de carbono atual das economias, por meio não só da queda expressiva das emissões de gases estufa, mas de mudanças profundas no padrão de produção e consumo que produziu o desenvolvimento de uma parte do mundo e a outra parte quer repetir. Além do esforço para mitigar as mudanças globais, será imprescindível planejar e executar ações de adaptação ao ambiente alterado pela mudança climática previsível nos próximos 30 ou 40 anos, que foi contratada pelas emissões do passado acumuladas na atmosfera. Esse novo ambiente será caracterizado pela elevação do nível do mar, um clima mais quente, com invernos mais curtos e eventos climáticos extremos – secas, furacões, chuvas muito fortes – com efeitos sobre as cidades, a agricultura e a saúde pública. Outro importante ponto de concordância, por sinal, é que o mundo todo e o Brasil em particular estão atrasados nessa tarefa de mitigação e adaptação.
As duas faces da Amazônia
Uma outra parte importante do consenso científico brasileiro se refere à Amazônia. Ela é parte da mudança climática e sua provável vítima, se nada for feito. Corre severo risco de savanização, isto é, de uma parte importante dela se transformar em um cerrado de baixa diversidade e densidade, por causa do efeito simultâneo do desmatamento e do aquecimento global. Seu desmatamento e empobrecimento florestal aumentam esse risco de savanização e têm conseqüências climáticas locais, regionais e globais. Portanto, interromper o processo de desmatamento da Amazônia é um imperativo. E para chegar ao desmatamento zero sustentado será preciso criar na região alternativas econômicas que se beneficiem do valor econômico implícito na floresta e sua diversidade. Não houve discordância em relação à tese apresentada pela geógrafa Berta Becker, de que é preciso criar uma economia da floresta de alto valor agregado.
O estado do conhecimento
Para dar consistência e continuidade a esse consenso, a Academia Brasileira de Ciências está criando o Comitê Nacional sobre Mudanças Ambientais Globais e uma série de grupos de estudo científico, para examinar as mudanças climáticas e seus impactos ambientais no Brasil.
O Simpósio cobriu várias áreas temáticas relevantes dessa macro-problemática da mudança ambiental. Um primeiro grupo de apresentações cobriu o tópico central, da mudança climática e seus impactos no Brasil. Começou com a conexão entre modelos climáticos globais e modelos regionais, que permite reproduzir para o Brasil cenários climáticos como os do IPCC para o planeta.
A busca de cenários climáticos regionais envolve questões metodológicas complexas e permite avaliar os impactos prováveis. É a base necessária para os estudos sobre a adaptação a essas mudanças. Qualquer programa de desenvolvimento sério para os próximos anos e décadas terá que contemplar as mudanças climáticas, as ações necessárias para reduzir o grau de carbono da economia e para a adaptação da sociedade às mudanças inevitáveis. Vários aspectos do sistema climático foram examinados no Simpósio, inclusive apresentações sobre questões metodológicas, que permitiram mostrar, com clareza, o lado prático desse processo científico todo. Na verdade, a busca desse conhecimento adquiriu um imperativo ético e social que aflige todos os cientistas envolvidos nela: esse conhecimento e os consensos que ele permite, têm que se tornar objeto de políticas públicas e mudança econômica e social, em benefício da própria humanidade.
Talvez por isso, tenha sido tão notável o interesse do público pela apresentação de Eduardo Assad, da Embrapa, – e sua repercussão na mídia – porque ele mostrou os impactos que a mudança climática pode ter na agricultura brasileira. Os cenários não são animadores. A agricultura brasileira poderia sofrer duramente, nas suas principais culturas, principalmente as de exportação, como soja e café. Regiões como o Rio Grande do Sul e o Nordeste são particularmente vulneráveis. Mas Assad não apresentou seus cenários para desenhar o colapso da agroindústria brasileira e sim para ressaltar a importância do investimento na mitigação e na adaptação. É possível, dada a previsão de mudança global e seus impactos locais, desenvolver cultivares apropriados às novas condições climáticas do país. Como isso requer um período de pesquisa e desenvolvimento, quanto mais cedo se começar, melhor.
Mais que na física do clima, é na biodiversidade que a mudança climática se expressa de forma mais rápida. O estudo da biodiversidade dá sinais mais imediatos das mudanças em processo. Nas apresentações sobre biodiversidade, foi possível montar um quadro não só da relação entre biodiversidade e a mudança global, mas também sobre duas regiões críticas do Brasil, a Amazônia e o Cerrado. Uma das coisas que ficam muito claras, quando se reúne um grupo interdisciplinar de estudos científicos, de diferentes áreas, mas com objetivos comuns, é a quantidade de conhecimento que se destrói com a perda de diversidade. Por exemplo, a destruição de corais pode levar com eles informação sobre o clima ao longo de seu processo de formação. O melhor testemunho sobre eventos climáticos extremos no passado brasileiro foi encontrado em amostras de corais de Abrolhos, contou Bruno Turcq, da Universidade Federal Fluminense, em sua apresentação sobre o clima do holoceno no Brasil. O desaparecimento do cerrado pode destruir princípios medicamentosos ou genes, que seriam de enorme valia para o Brasil e para a humanidade. Eduardo Assad contou que a Embrapa identificou 30 plantinhas do cerrado, que resistem a uma grande amplitude de variação climática. Seu estudo pode permitir descobrir o gene que lhe dá essa resistência ao clima, o qual pode, então, ser incorporado ao desenvolvimento de cultivares mais adaptados ao clima alterado. Mas isso pode se perder, dada a velocidade com que se destrói o cerrado, muito maior do que a da destruição da Amazônia, que não acontece, tampouco, em câmera lenta. Em dois anos, 2004-2005, foram destruídos 28 mil Km2. A taxa de desmatamento do cerrado é de perto de 1,5% ao ano, contra perto de 0,5% ao ano para a Amazônia.
Diálogo necessário
O simpósio percorreu vários outros temas relevantes, como os ciclos biogeoquímicos e sua relação com o clima (eles têm importância na emissão de outros gases estufa, além do CO2), o ciclo do nitrogênio, o ciclo de nutrientes na Amazônia, as dimensões humanas da mudança ambiental global. Esboçou-se um diálogo controvertido sobre a relação que precisa se estabelecer entre as ciências da natureza e as ciências sociais. Eduardo Viola lembrou a fragmentação dos recursos e o paroquialismo de boa parte de nossa ciência social. O presidente do INPE, Gilberto Câmara, reclamou da resistência ao uso de modelos quantitativos. Uma resistência que acompanhei, com desgosto, ao longo de toda minha carreira. Myanna Lahsen alertou para o perigo de por excessiva ênfase no quantitativo e perder a capacidade de avaliação crítica, essencial à própria análise da política da ciência.
Todos têm razão e esta questão merece um fórum específico, urgente, para estabelecer as bases para a cooperação interdisciplinar entre os dois ramos da ciência, crucial, quando se trata da ciência do clima. As mudanças globais são fenômenos naturais, em parte induzidos pela ação humana. Sua compreensão, enquanto fenômenos naturais requer o instrumental das ciências naturais. Mas a mitigação e a adaptação requerem a compreensão dos processos de escolha coletiva e uma engenharia institucional e de governança econômica, climática, científica, que está no domínio das ciências sociais. Esse diálogo mal começou no Brasil. Uma parcela importante do establishment das ciências sociais no Brasil permanece impermeável à questão das mudanças globais.
A ciência do Brasil
Olhando do fundo o salão de eventos do Hotel Othon lotado, na avenida Atlântica, em Copacabana, em um domingo de sol esplendoroso, me dei conta de que a ciência brasileira havia conseguido, aos trancos e barrancos, uma trajetória sob muitos aspectos notável. Conseguiu manter a qualidade ao longo dos anos, acompanhando o progresso científico mundial, a evolução das novas ciências, dando saltos sucessivos de qualidade. E mais, continua a empolgar os jovens. Eram muitos os estudantes no salão. Um grupo atento, era de alunos de meteorologia da USP. Havia estudantes do Rio, em bom número também, de várias áreas. Era uma amostra de que a ciência brasileira pode ganhar escala nos próximos anos. E agora, mais que nunca, é preciso investir em ciência e educação científica no Brasil.
Não pude deixar de me lembrar da época em que, antes do doutorado, estive envolvido no debate sobre o desenvolvimento científico e tecnológico no Brasil. Ainda nos tempos noturnos e soturnos da ditadura, quando as reuniões da SBPC eram uma das poucas arenas em que se podia discutir o Brasil e lutar por sua redemocratização, todos ainda encontrávamos tempo para lutar por verbas para a ciência, discutir o FNDCT, fazer pesquisas. Importante, havia interlocutores na burocracia governamental, que respeitavam a divergência política e compartilhavam o projeto de desenvolvimento científico do país. Com todas as dificuldades, o projeto de constituição de uma comunidade científica de nível internacional não se frustrou, como se frustraram vários outros projetos no Brasil.
Eu sei que, quando se fala que a ciência no Brasil vai bem, muitas vozes se levantam para dizer que não é bem assim. Ir bem não significa não ter problemas. Ir bem não significa que não poderia ir melhor. Mas eu vi como era e estou vendo como é a ciência no Brasil, em todas as áreas. Na maioria, ela passou pelo maior desafio: da sobrevivência institucional. Há instituições decadentes? Há. Instituições que perderam qualidade? Há. Mas o contexto institucional geral da produção científica brasileira ficou de pé e, em alguns casos, evoluiu e se descentralizou regionalmente. A comunidade científica se reproduziu. O Brasil tem hoje cientistas de nível internacional de todas as idades, em diferentes estágios de amadurecimento da carreira científica. Os jovens estudantes distribuídos pelos salões do Hotel Othon, os estudantes entusiasmados de várias áreas científicas que encontro em platéias de palestras pelo Brasil a fora, me fazem apostar que a ciência brasileira tem sua reprodução garantida por várias gerações à frente, pelo menos pelo lado do recrutamento de novos praticantes. Claro que é preciso um fluxo continuado e crescente de recursos, públicos e privados, nacionais e internacionais, para que esse processo se conclua.
Tem muito problema. A comunidade científica brasileira ainda não se livrou inteiramente de sua cultura corporativista, que impede a avaliação mais rigorosa de quem deve e quem não deve participar da partilha de recursos escassos e essenciais. Quando falo dos avanços da ciência brasileira, sempre aparece alguém para dizer que é para poucos. No mundo todo é para poucos, embora as escalas variem. Tem patota e protecionismo? Tem. No mundo todo tem. É preciso combatê-los, defender critérios mais universais de avaliação, recrutamento e distribuição de recursos, bolsas, prêmios. Mas esses problemas não obscurecem o claro progresso científico do Brasil nos últimos 50 anos. Hoje o número de trabalhos de brasileiros em publicações internacionalmente acreditadas está mais ou menos na mesma faixa de publicação da Coréia do Sul, que tem 82% dos jovens matriculados no ensino superior, contra menos de 20% aqui.
A revista Pesquisa, da Fapesp, de fevereiro, traz uma matéria sobre trabalho publicado nos Anais da Academia Brasileira de Ciências, de Abel Packer e Rogério Meneghini, que estuda a projeção internacional da ciência brasileira. Há cientistas brasileiros com clara influência internacional, em vários campos. Influência medida pelo número de citações de seus trabalhos em outros trabalhos publicados em periódicos “peer reviewed”. A análise encontrou 25 núcleos de excelência científica, em 11 campos diferentes, como conta Fabrício Marques na reportagem. Vários campos da ciência saíram quase do nada, para terem expressão científica internacional. Muitos cientistas brasileiros trabalham em redes internacionais. Nesse estudo, os 37 artigos brasileiros mais citados tinham, em média, 21 autores, de 9 paises diferentes. Claro que são exemplos extremos, mas, mesmo no conjunto, a média de países de autores em cooperação chegava a quatro. Interdisciplinaridade, cooperação científica e globalização da pesquisa são características emergentes da ciência do século XXI. Um resultado previsível, dada a centralidade dos fenômenos da mudança global nos desafios científicos e tecnológicos desse século.
Falha na conexão
Onde não progredimos o suficiente foi, exatamente, na conexão entre ciência e tecnologia. Essa conexão que permite a Eduardo Assad dizer que, com investimento e tempo, é possível estudar plantas de cerrado resistentes à variação climática, descobrir os genes que lhes dão essa qualidade e desenvolver novos cultivares, para outras espécies, dotados dessa mesma qualidade.
E essa conexão é crítica, se queremos seguir o conselho respeitável de Berta Becker e tentar construir uma economia da floresta na Amazônia, por exemplo. Porque a economia da floresta tem uma série de requisitos que são exigentes e que, se cumpridos, redundam em progresso para o país e, principalmente, para a região. O primeiro deles é zerar o desmatamento e a destruição da biodiversidade. Os outros vão desde a educação básica até a educação científica de qualidade para a população regional. Desde o estabelecimento de uma infra-estrutura de pesquisa básica até a implantação de uma rede empresarial de pesquisa e desenvolvimento tecnológico.
Na concepção avançadíssima da geógrafa, professora emérita da UFRJ, a economia da floresta é uma economia industrial. A economia da floresta é uma economia do conhecimento, que industrializa não a floresta, mas o conhecimento da biodiversidade da floresta, explorando-a, sem destruí-la e constituindo uma cadeia que começa na floresta, atravessa o território científico e tecnológico, e desemboca em produtos de alto valor agregado para os mercados doméstico e global. Uma economia do século XXI para Amazônia, não uma economia do século XVIII como muitos querem, nem tampouco uma economia contemporânea da segunda guerra mundial, como temos agora. E sua base é científica.
A consciência da mudança climática trazida pelos avanços da ciência do clima é uma arma poderosa para viabilizar o investimento em mais progresso científico e tecnológico. E na era da mudança climática, o conhecimento e a ciência são o principal recurso tanto para desenvolver respostas para a mitigação dos piores efeitos, ainda evitáveis, dessa mudança, quanto para a adaptação ao novo ambiente global, que será produzido pela mudança inevitável.
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