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A Matriz do Atraso

Enquanto o mundo se move para as energias renováveis, o Brasil corre o risco de daqui a alguns anos não ter energia suficiente e uma matriz energética mais suja e mais atrasada.

31 de julho de 2007 · 17 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

Quando a ministra Dilma Roussef disse que ninguém pode falar a sério em energia eólica no Brasil, ela não manifestava apenas preconceito ou ignorância em relação a uma fonte de energia alternativa, renovável. Ela estava expressando uma política de governo. O governo não pensa a sério em fontes alternativas: para ele só existe hidroeletricidade, na energia elétrica, e álcool/biodiesel, no setor de combustíveis. Quando decide fazer a usina nuclear, apresenta a decisão quase como uma retaliação aos problemas de licenciamento ambiental das grandes usinas hidroelétricas do PAC.

Quando, porém, um leilão de energia só consegue agregar termoeletricidade à matriz, não é resultado exatamente de uma política intencional de governo. É fruto de erro regulatório. As regras criadas pela própria ministra inibem a oferta tanto de hidroeletricidade, quanto de energias renováveis. Mesmo as PCHs, que constituiriam uma escolha muito mais razoável tanto ambiental, quanto economicamente, são desencorajadas pelas regras vigentes e pela falta de apoio governamental. Mas o governo está totalmente disposto a subsidiar grandes e controvertidas hidroelétricas, uma usina nuclear. Pior deixa nossa matriz energética perder suas virtudes – que já não são muitas – e suas vantagens competitivas, em um mundo cada vez mais preocupado com o uso abusivo de combustíveis fósseis, convalidando as ofertas de termoeletricidade do mercado. O erro das regras para o setor elétrico incentivam a termoeletricidade, porque é mais barata que a “mega hidros” e a exposure econômico-financeira dos investidores é de prazo menor. Desta forma, o que surgiu na matriz energética como uma solução de emergência, para enfrentar o apagão elétrico no governo FHC, está se tornando solução definitiva – e única – para o setor elétrico.

É esse movimento irracional rumo a uma matriz fóssil que o resto do mundo quer abandonar que as autoridades do setor comemoraram como 100% de sucesso. Apenas o presidente da ANEEL, Jerson Kelman, disse que nada havia a comemorar. Estava certíssimo. Errou, porém, ao debitar o fracasso do leilão, que aumentou o índice de carbono de nossa matriz energética – que é, ainda, de baixo carbono – aos ambientalistas. Deixou de considerar o modelo equivocado de regulação para o setor. Deixou de considerar as hidros de médio porte e as PCHs licenciadas, mas que não saem do papel. Deixou de considerar o desprezo desse governo e do anterior pelas energias alternativas, que estiolou o Proinfa. Mas, pelo menos não comemora termoelétricas, como faz o resto do governo.

Uma breve descrição do leilão de energia nova para oferta às distribuidoras a partir de 2010, realizado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), mostra o tamanho do equívoco que o presidente da EPE, Maurício Tolmasquim, em nota divulgada à imprensa, considerou amplamente positivo. Sua satisfação se deve ao fato de que a energia negociada representa o atendimento a 101,8% da demanda das distribuidoras. O preço médio no leilão atingiu R$ 134,67 por megawatt-hora, totalizando volume financeiro de R$ 23,09 bilhões. Mas qual o custo real para o país e sua matriz energética? Um total de 12 termelétricas movidas a óleo combustível e com financiamento do BNDES. O cidadão brasileiro vai subsidiar a poluição de nossa matriz energética. São bastante insistentes as informações de fontes do mercado de energia sobre o encorajamento por parte de autoridade do setor a investimentos em termoelétricas a óleo e carvão. As piores possíveis.

Por isso não é surpresa que o primeiro leilão de fontes alternativas de energia tenha decepcionado até mesmo o ministro em exercício das Minas e Energia, Nelson Hubner. Dos 1.165 megawatts (MW) habilitados para participar do leilão, apenas 638,3 MW foram comercializados, sendo 541,9 MW de usinas de biomassa e 96,74 MW, de pequenas centrais hidrelétricas (PCH). Diante do “fracasso”, o ministro disse que não valeria a pena, com esses volumes, continuar a realizar leilões específicos para fontes alternativas. A falta absoluta de uma política energética voltada para as fontes renováveis, coisa que o resto do mundo persegue, com sacrifício, e nós poderíamos realizar com vantagens, produz esse tipo de reação. Nenhuma estranheza em relação ao fato de que o leilão só abrangia PCHs – que é a prima enjeitada do paradigma hidroelétrico – e biomassa (bagaço de cana) – a gata borralheira do álcool.

Os projetos de energia eólica habilitados, não tinham incentivo adequado do governo. Segundo o presidente da Associação Brasileira de Energia Eólica, o preço-teto era baixo e o prazo de contratação curto, desmotivando a maioria dos investidores. Claro que as fontes alternativas, sem uso corrente no país, portanto sem escala, não são competitivas. Podem vir a ser. Política voltada para a mudança serve para isso: desincentivar o velho e indesejável e incentivar o novo e desejável. Mas aqui, a política faz o contrário. E o resultado é que marchamos aceleradamente para ficar atrás de nosso próprio passado.

É até engraçado ver as autoridades comentando as dificuldades dos empreendedores da energia renovável para entrar no mercado totalmente regulado pelo governo de energia elétrica, como se nada tivessem a ver com elas. Em sociologia essa síndrome tem nome: alteridade, um palavrão que poderia ser facilmente substituída pela expressão mais popular de “e eu com isso?”. Sociologicamente, essa síndrome tem o seguinte padrão: o agente principal comenta o resultado da ação coletiva sobre a qual ele tem domínio, como se fosse alheia a ele, como se ele não fosse participante, mas apenas espectador. Aí vêm as “análises” objetivas das autoridades. Uma diz que o problema são os ambientalistas. Outra diz que falta cultura de eletricidade aos usineiros. Ou que há dificuldades de interligação. Um presidente de uma estatal, insiste que a energia eólica não serve para ofertar em escala relevante e é de baixa produtividade. Está fazendo um cálculo de grande número de turbinas por MWh, tomando por base a pior tecnologia disponível. Outra diz que solar é inviável. É o que dá tratar desses assuntos olhando apenas para o próprio umbigo, sem olhar para os benchmarks em cada setor. E ninguém leva em consideração a mentalidade dominante de empreiteira, que só valoriza obra grande, com muita movimentação de terra e concretagem. Ou a óbvia hegemonia do paradigma profissional no setor elétrico especializado em grandes hidroelétricas e que estimula o preconceito em relação a qualquer alternativa.

O Brasil tem uma visão à parte do mundo da energia. No ano passado foram adicionados à matriz energética mundial 15.200 MW de eletricidade de origem eólica, segundo contabilidade do WorldWatch Institute. A energia eólica, há sete anos, é a segunda fonte de eletricidade na Europa, perdendo apenas para as térmicas a gás. No EUA, foi a segunda fonte de eletricidade pelo segundo ano consecutivo. Nos países europeus e no EUA, não parece haver problemas de escala ou produtividade. O EUA atingiu 11.600 MW de potência eólica instalada, no ano passado. É hoje o líder no mundo em instalações, resultado fundamentalmente de políticas de energia, com ênfase no incremento da oferta de energia renovável, em vários estados da federação. Alemanha e Espanha têm parques de energia eólica ainda maiores que o dos Estados Unidos. Na Alemanha, a energia eólica já ultrapassa os 50.000 MW. A Espanha pretende chegar aos 20.000 MW, em 2010-2011. Duvido que qualquer um desses dois países tenha melhores condições de aproveitamento do vento para gerar energia que o Brasil, principalmente que o Nordeste brasileiro. A diferença é que eles têm política de diversificação correta da matriz energética, trocando fóssil por renovável. Nós estamos trocando renovável por fóssil.

Mas não é só nos países desenvolvidos. Não é coisa só de rico pós-materialista, que já atingiu seu desenvolvimento. O país em que a energia eólica mais cresceu no mundo, em 2006, depois do EUA, foi a Índia, cujo parque já gera perto de 7.000 MW de eólica. Na China os investimentos em eólica também crescem e o governo planeja ter instalado em torno de 30.000 MW, até 2020.

E o uso inviável do sol para gerar eletricidade? Em 2006, a Europa ultrapassou os 3 milhões de m2 de coletores, equivalentes a 2160 MW de capacidade adicional. O parque solar europeu cresceu 23,5% entre 2004 e 2005 e 44,3%, entre 2005 e 2006, de acordo com o “Le Baromètre du Solaire Thermique” do EurObserver. Na Alemanha foram instalados o equivalente a 1070 MW. Um crescimento de 56%, em um ano em que o governo reduziu os subsídios pela metade. Na França, as instalações solares cresceram 83%.

Na Califórnia, nova legislação, associada a subsídios governamentais, tem incentivado o crescimento das instalações solares fotovoltaicas. A indústria lidera o uso de energia solar, mas, em 2006, houve mais de 7000 inscrições para instalações residenciais. A regulamentação e os incentivos fazem parte do programa “Um Milhão de Telhados Solares”, lançado pelo governo da Califórnia, como se sabe conduzido por um ator de filmes de ação, que começou a carreira como fisiculturista.

Está até virando símbolo de status nas regiões ricas, ter uma casa “solarizada”. Até recentemente, era ilegal “plugar” os sistemas solares domésticos no grid elétrico. Agora, a legislação obriga as empresas distribuidoras são obrigadas a creditar a eletricidade excedente que seus clientes produzem. O grid serve para “estocar” essa energia, no lugar do sistema de baterias que caracterizava os sistemas “off-grid”. No final do ano, os créditos são usados para abater do custo da eletricidade não-solar consumida. Mas não é só.

Este ano, a Pacific Gas & Electric, a maior distribuidora de energia do norte da California, anunciou que vai comprar 550 MW de eletricidade termo-solar, de uma instalação de um sistema de espelhos em uma área de aproximadamente 3mil hectares no deserto de Mojave. É a corrida para atender à determinação do Congresso da Califórnia de que as distribuidoras tenham um quinto de sua eletricidade fornecida em 2010 proveniente de fontes renováveis. A planta de Mojave ressuscita modernizada uma tecnologia que foi testada sem sucesso nos anos 70. Os espelhos focalizam concentradamente os raios solares em um sistema de canos com espessura em torno de 7 cm de diâmetro, aquecendo um fluido no seu interior a 400o C, gerando vapor que move uma turbina geradora. Todas as distribuidoras estão contratando eletricidade temo-solar e a expectativa é que nos períodos de pico, ela atenda a centenas de milhares de casas. Fora os contratos para fornecimento industrial. Políticas públicas têm seu melhor uso, quando servem para mudar padrões ultrapassados. No caso da Califórnia, as pesquisas indicam que o sucesso da troca para energia solar residencial tem a ver com os incentivos, mas também com a perda de credibilidade do sistema convencional, depois do apagão. As empresas estão correndo atrás do prejuízo e, além de investirem pesado em aperfeiçoamento dos instrumentos de gestão e governança corporativa, estão sendo fortemente proativas na busca de uma matriz energética com maior participação das fontes renováveis o mais rápido possível.

No Brasil, a política pública ao invés de estabelecer parâmetros para mudança de comportamento das empresas e encorajar a diversificação de nossa matriz energética exclusivamente no pólo renovável, faz tudo a contrário. Pode nos levar ao pior dos mundos: um apagão energético, com uma matriz mais suja daqui a cinco anos, do que ela era há dez anos atrás.

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