A reunião em caráter de emergência que o presidente Lula convocou para discutir ações para enfrentar a retomada do desmatamento acelerado da Amazônia só deu sinais preocupantes. A começar pela emergência. Reunião de emergência se faz quando acontece o inesperado. O aumento do ritmo de desmatamento estava anunciado há meses. Outro fato relevante é o desmentido da verdade, por parte do ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes que, com sofismas e truques de raciocínio, nega que a reaceleração do desmatamento se deva à retomada da expansão da pecuária e da soja. Ele oscila entre a desnecessidade de cortar árvores para aumentar a pecuária ou a lavoura de soja, o óbvio, e a afirmação de que não houve expansão da área plantada de soja nos últimos anos. Outra obviedade. Corta-se para expandir e não porque se expandiu.
O mais grave, porém, foi que o presidente, sem querer enfrentar os conflitos expostos na sua grande mesa em arco, nem contrariar interesses econômicos que afaga com seus PACs, resolveu o litígio entre a ministra do Meio Ambiente e seu colega da Agricultura, dizendo que não é “hora de procurar culpados, é hora de agir”. A proposta de ação, fora o envio de policiais federais para as áreas, parece desenhada para conter um surto de desmatamento excessivo por agentes econômicos legais. Só assim, se entende a crença de que uma moratória de licenças de desmatamento nos municípios delinqüentes teria algum efeito. Ninguém está pedindo licença para desmatar. É tudo ilegal e se alguém tiver licença, basta por na cadeira quem a assinou porque, certamente, não estava habilitado a recebê-la. Não se trata de madeireiros licenciados exorbitando de suas autorizações de corte. Trata-se de banditismo, de grilagem de terra, de avanço sob a mata de quem sempre grila e desmata ou de quem acaba de vender para grandes investidores do sul as suas terras e está buscando um novo naco de mata para converter em pasto ou lavoura.
O presidente mandou os ministros irem para aquelas áreas verificar o que está acontecendo. O ministro da Agricultura tratou a viagem, na coletiva à imprensa, como uma missão pioneira, como se ninguém tivesse ainda estudado essa questão. Antes de viajar, podia dar uma passadinha no escritório do IPAM em Brasília e folhear o farto material sobre como e porque se dá o desmatamento. A ministra Marina Silva acredita que tudo se deve à atipicidade do momento que vivemos, de estiagem prolongada – que houve antes e não impediu que o ritmo do desmatamento parasse de cair – período eleitoral – que ainda não começou realmente – e subida dos preços da soja e da carne – bingo! toda vez que os preços dessas commodities subiram o ritmo do desmatamento aumentou. Também não é preciso ir até lá. Só vai aumentar a emissão de gases estufa.
Antes de ir para a Amazônia, o governo deve auditar suas próprias políticas e encontrará nelas a impressão digital dos incentivos ao desmatamento: nos créditos generosos do Banco do Brasil, do Banco da Amazônia e do BNDES. Verá que os maiores estímulos ao desmatamento estão embutidos em suas políticas de crédito agrícola e industrial para a região. A ministra anunciou que os empréstimos públicos serão bloqueados para as atividades que causam desmatamento, como é feito com o trabalho escravo. É pouco. O pacto do trabalho escravo pegou muitos poucos até agora, exatamente porque quando chega nos tubarões as ações param por causa de suas conexões políticas e empresariais. Os fiscais autuam, a imprensa divulga, mas não é suficiente para romper a cadeia de leniência, nem a vista grossa da conveniência, tanto no governo, quanto no setor privado. Ações desse tipo levarão muito mais tempo que os desmatadores gastarão para bater recorde de devastação. O fundamental é rever com rapidez os critérios de concessão de empréstimos, torná-los muito mais exigentes, transparentes e auditáveis do que hoje.
Antes de pegar os aviões para o Pará, Mato Grosso e Rondônia, seria de todo conveniente repassar os PACs, no seu capítulo amazônico, para também retirar dele os incentivos à devastação da mata, para abrir estradas e hidrelétricas, anunciadas com antecedência suficiente para atrair grandes levas de migrantes, atrasados na sua busca do Eldorado. O principal culpado do desmatamento está embutido na estrutura de incentivos ao desenvolvimento, sem qualquer critério ambiental, sem avaliação de impacto, sem regulação e fiscalização. Não há transparência, nem responsabilização. O cúmplice mais importante dele é a combinação de omissão de autoridade e corrupção, que impede a aplicação da lei na região. Devia, também, tentar entender porque fechou os olhos e os ouvidos, desde maio do ano passado, e, ao invés de ouvir os alertas de que a tendência de queda do ritmo do desmatamento havia sido revertida, negou a realidade mostrada por seus próprios satélites e tentou desqualificar quem afirmasse a verdade.
Há outras investigações a fazer em Brasília, antes de lotar um avião para a Amazônia, mas vamos ficar nessas aí. Chegando à Amazônia, a primeira coisa que o governo não deveria fazer é prender os tratoristas que operam as máquinas que arrastam as correntes da devastação para qualquer um ver, nem os operadores de moto-serras, que fazem os cortes seletivos, ou os “tocheiros”, que ateiam fogo para a limpeza final. Nem mesmo os capatazes e os mandantes são um alvo muito interessante. É preciso examinar esse fluxo criminoso à jusante para ver quem realmente se beneficia dele. Aí, não encontrará muitos nomes amazônicos, ou sobrenomes-peão. Vai encontrar nomes de estirpe, empreendedores que costumam freqüentar as matérias de negócios e não as picadas na selva. Tem muita arraia miúda, nas cadeias de suprimento da pecuária e da soja, mas interessa pegar, mesmo, é os tubarões. Investidores compram quantidades exuberantes de terra na Amazônia e qualquer autoridade séria local dirá que não há essa terra toda legal para ser comprada. Se começarem a embargar as propriedades dos grandes, que pagaram alto por papel fajuto, cortam o fluxo de dinheiro grande para o negócio da grilagem. Numa viagem dessas, a missão brasiliense pode acabar tendo que desviar seu avião do Pará, para terminar seu trabalho em São Paulo, no Rio de Janeiro, no Paraná e em Brasília.
O governo se meteu numa enrascada globalizada na Amazônia por conta de erros sucessivos na política de controle do desmatamento. Desde o primeiro anúncio de queda do ritmo de destruição da floresta, foi alertado para o fato de que havia um forte componente econômico nesse processo, porque ele coincidiu com a queda nos preços da soja e da carne, por diversas razões. O movimento ambientalista apostou na capacidade do ministério do Meio Ambiente de implementar medidas nos anos seguintes que assegurassem a continuidade do processo de queda, em grande medida pela credibilidade da ministra Marina Silva e pelo péssimo desempenho do governo Fernando Henrique nesse campo. Apenas uma parte dos porta-vozes do ambientalismo via a euforia governamental com alguma reserva e dizia, desde o início, que o teste definitivo viria com a recuperação dos preços das commodities agrícolas. Só então, seria possível saber quanto da queda se explicava pela ação governamental e quanto à conjuntura econômica específica.
Fora do ambientalismo, o ceticismo sempre foi maior. As medidas governamentais eram, na sua maioria, planos de fazer e não ações concretas. De ação, mesmo, efetivas, houve operações de repressão de vulto, com bons resultados, porém tópicos e fugazes. O ponto alto foi a complementação e aperfeiçoamento do sistema de monitoramento por satélite, especialmente a criação do DETER, de monitoramento “em tempo real”, que está permitindo, agora, ver a retomada da velocidade do desmatamento. Porque o desmatamento, mesmo, nunca caiu. Mas é esse DETER que o governo veio desacreditando, desde o ano passado, dizendo-o menos confiável que o PRODES, que faz a medição mais extensa e de maior precisão, a qual serve de base às estimativas anuais. Valorizar o PRODES interessava ao governo, enquanto ele, por razões metodológicas, ia apontando a queda do ritmo de desmatamento, enquanto o DETER, com menor extensão e precisão, mas obviamente confiável, ia dando sinais crescentes de que o processo estava em reversão. Até aí, o DETER era “menos confiável”. Agora, ele tem que ser considerado e levado a sério, porque o PRODES passará a mostrar, no futuro, a aceleração do desmatamento e, no balanço anual, os dois sistemas vão convergir. Pode, mesmo, acontecer, que o PRODES mostre, ao fim e ao cabo, que o DETER subestimava o estrago.
O governo anuncia novas reservas sem dizer o que fará que as que já criou e nunca deixaram de ser reservas de papel. Podia antes, no mínimo, mandar tirar os rebanhos que passeiam alegremente por várias das já criadas. O IBAMA não foi reforçado, nem reaparelhado. O que as autoridades ambientais chamavam de “medidas estruturantes”, não eram estruturantes, ou não saíram do papel. Uma boa parte foi de criação de reservas extrativistas, cuja contribuição para o controle do desmatamento é, no mínimo, duvidosa.
O ministério perdeu quase todas as batalhas para o núcleo desenvolvimentista comandado pela ministra-chefe da Casa Civil. Num desses embates, veio a pá de cal. No meio da violenta pressão pelo licenciamento a toque de caixa de empreendimentos altamente controvertidos na Amazônia, em particular as hidrelétricas do rio Madeira e de Belo Monte, da parte dos lobbies, empreiteiras, empresários e da cúpula desenvolvimentista do governo, o ministério dividiu o IBAMA, criou o Chibio, sem planejamento prévio, sem garantir aportes orçamentários para manter e ampliar a fiscalização e para financiar a construção de uma nova estrutura para cuidar das unidades de conservação. Já havia criado o Serviço Florestal Brasileiro, para licitar e regular manejo florestal em áreas da Amazônia, também sem dotação orçamentária e sem recursos suficientes. Os céticos viam em todos esses movimentos a crônica de tragédias anunciadas: a reaceleração futura do desmatamento e o fracasso da política de manejo florestal sustentável, por falta de recursos administrativos e institucionais.
Essa discussão se manteve acesa e quente ao longo dos últimos três anos, nas reuniões ambientalistas, nos sites que tratam do assunto e, ciclicamente, na grande imprensa. O tempo todo o governo negou as dúvidas e se auto-congratulou pela suposta mudança estrutural que havia promovido na Amazônia. Em maio de 2007 apareceram os primeiros sinais de retomada do desmatamento. Quebras de safra em várias partes do mundo, em 2006 e 2007, haviam reduzido a oferta de grãos e puxado a demanda de soja para alimentação humana e animal no mundo inteiro. A demanda por etanol no EUA capturou parte importante da produção de milho para ração animal, puxando o preço do milho e aumentando a demanda por soja, com efeito altista em seus preços. A demanda interna no Brasil crescia, também pressionando o preço da carne e da soja. Portanto, quando surgiram os primeiros sinais de reaceleração do desmatamento, já havia evidência, também, de que os fundamentos econômicos do desmatamento haviam mudado, no sentido de maior pressão por desmatamento. O governo continuou negando, comemorando no Brasil e nos fóruns mundiais o sucesso de sua política de controle do desmatamento e pressionando fortemente ou desqualificando todos que manifestavam dúvida, publicamente, sobre a política oficial. Mas o DETER não mentia, ia mostrando, mês a mês, a progressão do estrago.
Agora, depois do discurso auto-laudatório do presidente Lula na ONU e da auto-celebração dos ministros brasileiros em Bali, o governo fica em posição vexatória na imprensa mundial e com sua credibilidade abalada. Por ter abandonado toda precaução, tem nas mãos o risco de retorno do desmatamento às proximidades de sua média histórica, que é péssima e, se a crise da economia mundial não derrubar os preços das commodities agrícolas, voltar às marcas de pico em pouco tempo. De quebra, ainda corre dois riscos externos: perder a credibilidade como interlocutor nas negociações sobre o clima e, principalmente, sobre o desmatamento evitado; e enfrentar duras barreiras sócio-ambientais no comércio internacional.
Nunca se viu tanto desmatamento em um dezembro. É esquisito. Parece feito de encomenda para deixar em maus lençóis toda a cúpula política e técnica do governo que está envolvida no controle do desmatamento. E, se há tanto desmatamento na entresafra, imagine-se o que não haverá na safra, ou seja, no período da vazante. Pobre Amazônia.
Leia também
Entrando no Clima#40 – Florestas como forças de estabilização climática
Podcast de ((o))eco fala sobre como as florestas têm ganhado espaço nas discussões da COP 29 →
ONU espera ter programa de trabalho conjunto entre clima e biodiversidade até COP30
Em entrevista a ((o))eco, secretária executiva da Convenção Sobre Diversidade Biológica (CDB) da ONU fala sobre intersecção entre agendas para manter o 1,5ºC →
Livro revela como a grilagem e a ditadura militar tentaram se apoderar da Amazônia
Jornalista Claudio Angelo traz bastidores do Ministério do Meio Ambiente para atestar como a política influencia no cotidiano das florestas →