A ministra Marina Silva reconhece, finalmente, que as medidas do governo vão a reboque do desmatamento. Para ela, essas medidas demandam tempo para fazer efeito e, nesse entretempo, o desmatamento cresce.
Ela tem razão em parte. As medidas econômicas e financeiras, como corte de crédito a desmatadores e punição a compradores de madeira ilegal, têm mesmo um tempo de implementação e podem surtir efeito futuro, se de fato implementadas sem vacilações. No papel, servem apenas como sinal. E, como tal, podem até produzir uma reação adversa dos agentes econômicos. Desde os tempos da hiperinflação, o Brasil conhece os efeitos da exacerbação preventiva dos atos sob ameaça de intervenção governamental. Na época da hiperinflação, todo boato de plano de estabilização provocava o que se chamou, na época, “inflação preventiva”. Um reajuste mais que proporcional de preços, como defesa contra o futuro congelamento. Esses primeiros meses de 2008 podem estar assistindo a um “desmatamento preventivo”, em reação a medidas anunciadas, mas ainda não implementadas. Pelos dados do INPE de janeiro e fevereiro, o desmatamento está alto demais, perto de 1300 km2 para meses historicamente de muito baixa atividade. Com um detalhe: o DETER só “enxerga” desmatamento de no mínimo 25 hectares. O “pequeno desmatamento”, que devora parcelas significativas da floresta, ainda não foi computado.
A maior parte do desmatamento tem causas diferentes da defasagem diagnosticada pela ministra do Meio Ambiente. Causas que já estavam em operação quando o governo ainda negava a retomada do desmatamento. Durante os três anos em que o desmatamento caiu, o governo comemorou como sendo fruto exclusivo de uma nova atitude, com “medidas estruturantes” que, pela primeira vez na história, reduziriam o desmatamento de forma sustentada e, a médio prazo, poderiam conduzir ao desmatamento zero. O que se viu de concreto foi a criação de unidades de conservação, uma medida essencial, porém, sem os elementos necessários para que saíssem do papel. Ao contrário, o governo acabou fazendo uma mudança impensada na estrutura do IBAMA, que só conseguiu paralisar o sistema de licenciamento e criar um órgão para cuidar das unidades de conservação destituído dos meios materiais e institucionais para o exercício de suas funções. Ao mesmo tempo proliferaram reservas extrativistas, cujo papel na conservação da floresta é, no mínimo, discutível e o INCRA acelerou, sem controle e sem licença, a ocupação de terras com assentamentos economicamente inviáveis e ecologicamente destrutivos. Os assentamentos são responsáveis por quase 20% do total do desmatamento e, no período de crise da agroindústria, praticamente todo o desmatamento foi nessas áreas.
Perdido nas comemorações do pouco que fez e inebriado por estatísticas muito boas, que interpretava como resultantes de sua ação e não de fatores sistêmicos, o governo fez ouvidos mocos aos alertas de que o desmatamento caía porque a soja e a pecuária estavam em crise de preço e demanda. O “boom” das commodities agrícolas, desde o final do ano de 2006, mudou esse quadro. Já no ano passado estava claro que a quebra das safras de milho e trigo na maioria dos grandes produtores, alavancaria os preços da soja. A expansão do consumo mundial de alimentos, impulsionaria o preço da carne. Os fatores sistêmicos por trás da queda do desmatamento mudavam de sinal. A aceleração da grilagem e a reativação dos correntões tratorados eram visíveis na virada do primeiro semestre do ano passado. Só o governo não quis ver.
Desde de maio de 2007, os sinais de retomada do desmatamento apareciam nas estatísticas dos seus vetores econômicos e nas observações do que se passava nos eixos de desmatamento por observadores independentes. O governo não quis ver ou ouvir. No segundo semestre do ano passado, a reversão da curva do desmatamento já estava clara para a maioria dos observadores e especialistas da economia amazônica. O governo ainda foi a Bali, no final do ano, com o discurso oficial da queda do desmatamento, embora nas reuniões mais fechadas começasse a reconhecer a realidade. Acabou por se envolver em uma polêmica estéril em que as autoridades passaram por diferentes versões ou estágios de reconhecimento da volta do desmatamento. Primeiro negaram os dados, dizendo que não eram suficientes para afirmar que o desmatamento retornara. Depois, disseram que a taxa de queda do desmatamento estava diminuindo, mas que ele continuava caindo, embora mais devagar. Em seguida, reconheceram que o desmatamento havia voltado, que a tendência de queda fora revertida. Mas, para logo dizerem que estavam tomando medidas para evitar essa reversão, como se ela já não fosse um dado praticamente irreversível. E, agora, dizem não só que o desmatamento voltou, mas que as medidas governamentais não conseguem estancá-lo em tempo real.
É mais grave do que uma simples inconsistência de versões ou um problema de defasagem temporal da eficácia das ações de governo. A ministra Marina Silva não colocou publicamente em sua equação as contradições de seu governo, que destroem qualquer ação que o ministério do Meio Ambiente consiga emplacar. Ela tem contra suas políticas as ações e pressões dos Ministérios das Minas e Energia, da Agricultura, dos Transportes e da Casa Civil. Também não computou o sinal negativo de uma medida provisória que reproduz, quase ipsis litteris, um projeto patrocinado pelos ruralistas, para legalizar terras ocupadas ilegalmente. O que era uma anistia para ocupações, primeiro, de 100 hectares, depois, 500 hectares, chegou agora, pela pena presidencial, a 1500 hectares. Em um país conhecido pelo desprezo à lei, tal generosidade soa como um convite a mais ousadia, com a expectativa de que um novo ato, no futuro, amplie o escopo da anistia. As dimensões amazônicas permitem essa falácia na definição de “posseiros”. Uma gleba de terra de 1500 hectares, nos domínios da Mata Atlântica, é considerada de média a grande propriedade, dependendo da sub-região. O fato é que, independentemente da enormidade das áreas em uso e abuso na Amazônia, 1500 hectares requerem quantia nada desprezível de capital para se tornarem efetivamente produtivas. Não é negócio para posseiro: “indivíduo que ocupa terra devoluta ou abandonada e passa a cultivá-la”, segundo o Dicionário Houaiss.
As contradições do governo se somam, para tornar durável o impasse que devasta a floresta, à ausência de uma política para a Amazônia que contemple pelo menos três dimensões cruciais. A primeira é a legalização da “Amazônia Ilegal”, que tem uma existência mais concreta e com efeitos mais reais, do que a “Amazônia Legal”, um conceito jurídico-político abstrato. A verdadeira geopolítica regional se dá na Amazônia ilegal. O que não temos é um plano efetivo para impor o respeito à lei e promover uma transição justa – e sem concessões ao banditismo – para a legalidade. A regularização fundiária é necessária, mas deveria começar pelas unidades de conservação e pela definição do estoque de terras devolutas como áreas de preservação. A legalização de terras ocupadas privadamente deveria vir cercada de cautelas, para não doar terra a quem não merece mais que os poucos metros quadrados de uma cela numa penitenciária federal. A legalização se deveria fazer já sob novas regras, no contexto do macro e micro-zoneamento econômico-ambiental da Amazônia Legal, para evitar a reincidência.
A segunda dimensão crítica, é econômica e social. A Amazônia não tem uma agenda econômica compatível com o objetivo de manter a floresta em pé. A visão econômica predominante ainda é a mesma definida pelo governo militar, que a tratava como um “inferno verde”, a ser conquistado produtivamente para o país. A Amazônia sem uma agenda de longo prazo, que valorize a floresta em pé e crie as bases para o desenvolvimento sustentado do bem-estar de sua comunidade, com elevação de seus índices de educação, saúde e renda e ampliação de suas possibilidades de ascensão social, continuará sendo plataforma de assentamentos e de expansão da “fronteira agrícola”. Foi dessa forma que a definiu a ministra Dilma Roussef, em sua apresentação no lançamento do PAC – Plano de Aceleração do Crescimento. A Amazônia não precisa rodovias ou hidrelétricas tanto quanto precisa de uma base educacional e de pesquisa que dê sustentação a um novo modelo de desenvolvimento para a região. As soluções energéticas para a região podem ser de fontes localmente disponíveis, que prescindem de grandes, lesivas ao ambiente e caríssimas redes de transmissão. A irracionalidade é tanta, que se transporta óleo diesel de caminhão do Sudeste para a Amazônia, para queimá-lo em termelétricas.
A terceira dimensão do impasse Amazônico é o da governança. O desmatamento-zero requer não apenas uma agenda, mas um novo modelo de governança. Este, além de tornar real e eficaz a coordenação das ações interfederativas, entre os três níveis de governo, deveria conter instrumentos de transparência e responsabilidade, que assegurem a participação de setores da sociedade amazônica e da comunidade científica e tecnológica no monitoramento da implementação dessa nova agenda para a região.
São poucas as chances de que algum governo ou partido façam essa agenda. Ela terá que se impor aos governos como uma construção solidária das principais forças efetivamente comprometidas com a região, com o envolvimento da comunidade científica e tecnológica e a ativa participação das empresas verdadeiramente interessadas em um pacto pela legalidade, pelo desmatamento-zero e pelo desenvolvimento amazônico ordenado e sustentável.
O Brasil tem o vício de esperar que algum ser iluminado chegue ao governo e resolva os seus problemas, em todos os setores. Isso nunca vai acontecer. Não existe essa força, nem em democracias, nem em ditaduras. Problemas complexos, como o da Amazônia, que envolvem alto grau de conflito entre poderosos interesses em um quadro definido pela ação anêmica do governo, só se resolvem na sociedade. Quando uma nova agenda para a Amazônia se tornar uma demanda social, os governos a abraçarão como sua e a região terá uma ponta de esperança de se livrar da savanização.
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