Quem nunca viu uma daquelas reportagens de tevê sobre os altos índices de atropelamentos no Brasil? A abordagem clássica é mostrar os “populares” que arriscam a vida atravessando a rua em meio aos carros, muitas vezes embaixo de uma passarela. Implícita ou explicitamente, a mensagem é que a rua é lugar dos carros, e que o pedestre que a invade o faz por sua própria conta e risco.
Essa visão é tão arraigada que se torna quase inconsciente. Há o risco, inclusive, de que ela se torne uma premissa não apenas da cobertura jornalística nas grandes cidades, como também do próprio processo de criação de políticas públicas de transporte, trânsito e combate à poluição do ar. O resultado é fácil de imaginar: uma distopia tecnocrática onde as cidades são recortadas por autopistas que ocupam espaço, destroem comunidades, mas nem por isso são capazes de eliminar os congestionamentos de trânsito. E onde a progressiva redução das emissões de poluentes de automóveis, caminhões e ônibus pouco ajuda diante da expansão da frota.
O difícil é imaginar que existam soluções puramente tecnológicas para os problemas dos congestionamentos, poluição do ar e mudança climática. Essa constatação não é tão nova assim. Algumas das iniciativas mais visíveis nesse campo são muito mais políticas do que técnicas. Os corredores de ônibus, por exemplo, tiram espaço dos automóveis particulares e priorizam o transporte coletivo. Também parece haver entre os especialistas um consenso cada vez maior de que não há solução para os crescentes problemas de congestão e poluição das grandes cidades sem algum tipo de restrição ao uso do automóvel.
Mas uma coisa é discutir esses princípios em seminários acadêmicos; outra coisa é colocá-los em prática.E por isso mesmo é fascinante constatar que algumas das idéias mais radicais em discussão não vêm de um técnico ou um cientista, mas sim de um político – o colombiano Enrique Peñalosa. Prefeito de Bogotá de 1998 a 2000, Peñalosa investiu em um sistema moderno de corredores de ônibus, em ciclovias e ruas para pedestres. Alargou calçadas e reduziu faixas de trânsito. Restringiu o uso dos automóveis, e criou condições para restrições crescentes no futuro. O resultado foi uma redução significativa na proporção das viagens realizadas de carro.
Peñalosa esteve em São Paulo para abrir a conferência Ar Limpo para a América Latina, cujo foco foi a redução da poluição do ar através de transporte sustentável. Ele falou sobre a sua experiência em Bogotá, transmitindo aos presentes a sensação de estar diante de um político que se dedicou à sua cidade, procurou conhecer os seus problemas e buscar soluções apropriadas. O que é muito diferente de usar o cargo de prefeito de uma grande cidade como trampolim para a política nacional.
Para Peñalosa, o maior obstáculo à expansão do uso do transporte coletivo nas grandes cidades latino-americanas é psicológico, é a busca de status social. A análise científica do problema, portanto, é necessária mas não suficiente: é necessário, segundo ele, desenvolver uma visão compartilhada de espaço urbano. Uma visão nova, pois as nossas cidades são desastres urbanísticos e as projeções indicam que elas continuarão crescendo rapidamente nas próximas décadas. Muito do que construímos nos últimos 80 anos foi ilegal e irregular. O resto, nas palavras de Peñalosa, foi feito para os carros, e não para a felicidade das crianças.
Nós copiamos – mal – o modelo das cidades dos países desenvolvidos. Não levamos em consideração, ao copiá-los, que o nosso clima é diferente, e não copiamos as coisas boas, como o Central Park de Nova York. Devíamos ter um Central Park para cada 400 mil habitantes, no mínimo. Devíamos pensar uma maneira diferente de construir cidades, onde, por exemplo, metade das ruas poderia ser reservada para pedestres e ciclistas. O modelo que vem dos países desenvolvidos é um modelo falido, diz ele. Praticamente todos os especialistas em urbanismo concordam que as cidades americanas são hoje um desastre, desfiguradas pela suburbanização do pós-guerra. Para que imitar esse modelo, que é causa de arrependimentos lá?
Mesmo que houvessem automóveis completamente limpos, ainda seria necessário disciplinar o uso dos mesmos, pois eles estão em contradição com a qualidade de vida nas cidades. O que é um habitat sustentável? Para Peñalosa, é aquele onde podemos realizar o mais plenamente possível o nosso potencial. Segundo ele, a sobrevivência das populações das nossas grandes cidades já está assegurada; agora é preciso cuidar da vivência, criar condições para que as pessoas sejam mais felizes. Com calçadas mais largas, por exemplo. Ou com espaços públicos que permitam a socialização, uma necessidade humana.
Peñalosa nos lembra que o espaço público é um espaço democrático. Que criar espaços públicos atraentes combate a exclusão. E que se levarmos a sério a idéia, consagrada em muitas constituições democráticas, de que o interesse geral deve prevalecer sobre o particular, vamos organizar os sistemas de transporte de nossas cidades de maneira muito diferente do que tem sido o caso nas últimas décadas.
Mas não é possível desenhar sistemas de transporte, diz Peñalosa, sem definir antes que tipo de cidade queremos. E propõe: devemos buscar cidades para as pessoas, e especialmente para os cidadãos mais vulneráveis, os mais velhos, para os incapacitados, para as crianças. A cidade que é boa para os mais vulneráveis é boa para todos, diz ele.
Uma cidade amigável para os carros não é uma cidade amigável para as pessoas. Basta imaginar uma autopista de seis faixas na porta de sua casa para concordar com Peñalosa. Daí a importância, em uma discussão sobre transporte, de falar nos espaços para pedestres. Além do aspecto simbólico, ao mostrar que o pedestre, ou o ciclista, tem os mesmos direitos de um motorista.
Ao final da palestra fica uma pergunta no ar: o que estamos esperando para restringir o uso dos automóveis? É evidente que é impossível que todos os cidadãos usem o carro para todas as viagens que realizam. Sabemos ainda que quanto mais alto esse nível, maiores são os custos sociais e ambientais, e que a construção de mais e mais autopistas não resolve o problema dos congestionamentos. Se é assim, pergunta Peñalosa, o que estamos esperando para restringir o uso dos automóveis?
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