Carl Sagan, em “Mundo Assobrado por Demônios” (que deveria ser obrigatório no ensino fundamental) ensina como usar o espírito e o método científicos para verificar se o que nos dizem não é uma embromação como culpar a área ambiental pelos atrasos o PAC. Sagan nota que uma técnica comum dos mistificadores é desviar o assunto desqualificando o interlocutor ou uma terceira parte. Como noticiado no 6 de fevereiro, após o lançamento de um dos relatórios do IPCC, Lula disse que “os países ricos são muito espertos, aprovam os protocolos, fazer grandes discussões de que é preciso evitar o desmatamento, mas eles já desmataram tudo, não tem mais o que desmatar”.
Lula implica que, se a Europa perdeu suas florestas durante a Idade Média e a Renascença (hoje a área florestada está crescendo) isso justifica que o Brasil desmatasse, em média, 21.000 km2 da Amazônia a cada ano de seu primeiro mandato, algo “nunca antes” visto na história brasileira. Quando o presidente diz que “têm poucos países no mundo que têm autoridade moral para falar em desmatamento com o Brasil” fico a pensar se ele sabe do que fala.
Com o mercado do etanol subindo à cabeça, Lula também afirmou que “o que a gente não pode é ceder aos adversários lá da Europa que vão dizer ‘não, vai invadir a Amazônia’. Quem tem interesse em defender a Amazônia somos nós e não eles” (OESP 4/maio/07 A15). O empenho em desmantelar a gestão ambiental, visível na forma de criação do Instituto Chico Mendes de fazer alguma coisa com a Biodiversidade (o ChiBio); as taxas de desmatamento e a irresponsabilidade em induzir desastres, como ao anunciar o asfaltamento das BRs 163 e 319 sem ter o menor controle daquelas áreas, mostram que “a gente” quer mesmo é que a Amazônia (e o Cerrado, a Mata Atlântica, etc) se lasque.
O presidente data sua ideologia com carbono-14 com o fantasma da internacionalização da Amazônia, que ele acha ótima quando é feita pelo agronegócio e madeireiras, mas ruim quando se destina à conservação. Deveríamos é incentivar, ao invés de sabotar, iniciativas dos Eliaschs que querem comprar e manter grandes áreas de florestas sob conservação privada. Dado o histórico de má gestão pública, provavelmente farão isso de forma mais eficiente do que pela atual política ambiental e seu ChiBio.
Da mesma forma que a Armada Britânica atuou contra o tráfico negreiro no século XIX por este ser imoral e para aumentar seu mercado consumidor, é previsível que nações desenvolvidas irão intervir contra o desmatamento brasileiro no século XXI, por ele não apenas ser imoral, mas também porquê está ajudando a destruir nossa civilização. Vale também refletir as palavras do governador Arnold Schwarzenegger: “Creio que, no futuro, vamos tratar países que produzem mercadorias sem levar m conta o meio ambiente da mesma forma como lidamos com países que violam os direitos humanos e têm fábricas quase escravizadoras” (OESP 6/05, A25).
Além de ser a deixa para um apêndice ambiental do atualíssimo manual de Mendoza, Montaner e Vargas Llosa, aquelas e outras falas presidenciais são sintomas de algo muito maior: a aversão do mandatário e da sociedade que representa em assumir e cobrar a responsabilidade dos indivíduos pelos seus atos. É sempre mais fácil culpar aos outros. Mais fácil ainda quando os “outros” são um alvo fácil e tradicional, como os imperialistas de sempre.
Li a pouco Planeta Favela, do historiador e auto-definido “marxista-ambientalista” Mike Davis, também autor do interessante Holocaustos Coloniais, que menciona nomes familiares do agronegócio e conta histórias do Brasil que não aprendemos na escola.
A explosão das favelas a partir de meados do século XX não é apenas um dos mais importantes fenômenos sociais, mas também uma questão ambiental urgente. Pela primeira vez na História a maior parte da humanidade vive em áreas urbanas. Isto, em alguns locais, é uma ótima notícia para a Natureza, pois a urbanização levou ao abandono de terras agrícolas em áreas menos adequadas e estas puderam se regenerar. Mas, em outros casos, a transferência de populações causou novos, e graves, problemas ambientais.
A visão da Grande São Paulo (com atuais 19,44 milhões de habitantes) é assustadora quando se chega a qualquer dos aeroportos locais. Enquanto em 1973, apenas no município de São Paulo, a população favelada correspondia a 1% dos 6,57 milhões de habitantes, este total havia saltado para 11% de 10,34 milhões em 2000. Entre 1973 e 1980 – período da imigração da década do “milagre econômico – a população favelada cresceu mais de 20% ao ano, enquanto a população do município crescia a 3%. Segundo a Emplasa, as 2.018 favelas atuais cobrem 31,42 km2 do município (60 km2 na região metropolitana).
O livro de Davis tem um interessante capítulo escatológico sobre os impactos ambientais das favelas. É fácil acrescentar exemplos próximos. Favelas tendem a se instalar em áreas ambientalmente sensíveis, como manguezais, encostas e margens de rios, e o problema da destruição de habitats pela expansão das favelas é gritante nas regiões metropolitanas como São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Manaus. Esta ocupação rápida, descontrolada e predatória compromete unidades de conservação como Floresta da Tijuca, Pedra Branca e Serra da Cantareira, que tem que lidar não apenas com a gradual troca de florestas por barracos, mas impactos como a caça e incêndios criminosos. Espécies ameaçadas, como os sauins-de-coleira de Manaus e os guarás de Cubatão, perdem seu habitat para a expansão urbana descontrolada.
Nos manguezais paulistas, como em Cubatão, da mesma forma que na vizinha Serra do Mar ao longo do litoral paulista, a favelização induzida por políticos locais e outros parasitas é uma ameaça mais presente e imediata do que os devaneios de projetos portuários, habitacionais e industriais, sujeitos a licenciamento e controle que na prática eximem os “pobrezinhos”. Como nas etnofavelas estabelecidas em unidades de conservação que só não ganham este nome porquê seus ocupantes calham ser “povos tradicionais”.
Favelas destroem serviços ambientais dos quais regiões metropolitanas dependem. Na Grande São Paulo a mancha urbana cresceu 1.100 km2 desde 1973, chegando a 2.300 km2. Destes, 670 km2 foram urbanizados m áreas de mananciais. O incentivo à favelização, especialmente entre 1989 e 1992, da região da represa de Guarapiranga, importante manancial de abastecimento, deflagrou um processo que comprometeu gravemente a qualidade da água e continua, com eventos como a recente invasão por 3,5 mil famílias do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto em 16 de março. Em 30 anos, a Guarapiranga perdeu 20% de seu espelho d’água devido ao assoreamento resultante do desmatamento dos 40% de APPs da bacia que foram ocupadas. Das 800 mil pessoas que vivem na bacia, quase metade não está conectada à rede de esgoto, e seus dejetos acabam na represa, que tem florações de águas tóxicas com efeitos ainda não avaliados na saúde pública. Processo similar ocorre no entorno da represa Billings. Favelados defecando nos mananciais de abastecimento também são um problema em todo o litoral paulista, cortesia das mesmas favelas que destroem a Mata Atlântica.
Mike Davis, bom marxista que vê o mundo em termos de luta de classes, atribui a existência das favelas ao imperialismo, êxodo rural gerado por políticas de mercado neoliberais, estados corruptos e, com ênfase, os programas de ajuste ditados pelo Banco Mundial e FMI. Embora os imperialistas de sempre estejam longe de serem inocentes, vivemos imersos na síndrome, identificada por Bertrand Russell, da crença na virtude dos oprimidos. É fácil esquecer outros detalhes que ajudaram a cavar o buraco onde estão os miseráveis.
Um destes detalhes, que praticamente passa batido no livro apesar dele afirmar que “a urbanização excessiva é gerada pela multiplicação da pobreza, não de empregos”, é o tremendo crescimento populacional ocorrido no século XX, resultado de uma miríade de decisões individuais tomadas em um contexto de menor mortalidade e maior produção agrícola. Cortesia da Ciência, aquele construto da sociedade capitalista ocidental imperialista. Simplesmente nos multiplicamos mais rápido do que a capacidade da maioria das sociedades – com limitações que vão de recursos naturais a seus pactos sociais particulares – tem para educar, dar saúde, habitação e empregar os novos cidadãos. O número de Homo sapiens pulou de 1,65 bilhões em 1900 para 2,9 em 1950 e hoje bate em 6,45. Estima-se que seremos entre 8 e 10,5 bilhões em 2050; 99% deste aumento se dará nos países “em desenvolvimento”, com mais 90% nos mais pobres entre os pobres.
A incapacidade de suprir as necessidades de populações crescentes, que acabam indo para habitats marginais como as favelas e assentamentos do INCRA, é exemplificada pela avaliação do All Party Parliamentary Group on Population,Development and Reproductive Health do parlamento britânico (que faz coisas mais interessantes que as pizzas do nosso), sobre o impacto do crescimento populacional na capacidade de atingirmos os Objetivos do Milênio propostos para 2015. Interessante para comparar com as lomborguices que por aí circulam, e com um capítulo muito interessante sobre educação, o relatório conclui que será impossível atingir os objetivos com as atuais taxas de crescimento demográfico e estas condenam boa parte do terceiro mundo a entrar no quarto. Ponto final. Ao mesmo tempo, programas de apoio ao planejamento familiar que poderiam ajudar têm perdido apoio e recursos.
Sobre o Brasil, a tabela abaixo (com dados do IPEADATA) mostra nossa história recente. De 17 milhões em 1900, passamos a 41 milhões em 1940, na industrialização da ditadura Vargas, e chegamos a quase 170 milhões em 2000 (um crescimento de 10 vezes). O PIB per capita cresceu quase 13 vezes no mesmo período, um avanço modesto considerando o padrão de vida de então e o de agora.
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