A cidade do Rio de Janeiro, cercada por montanhas e tendo encravada em seu coração a Floresta da Tijuca, que alguns chegam a chamar de “maior floresta urbana” do mundo (o que é em si um contra-senso), além de um imenso litoral, convive com balas perdidas, “fornos de microondas”, fechamentos da Avenida Niemeyer, Linha Vermelha, Linha Amarela e outras mazelas que já se tornaram rotina. Não por acaso, a cidade tem como santo padroeiro um São Sebastião cravejado de flechas. Tamanho contraste gera situações inusitadas.
A generosidade da providência divina para conosco tem feito com que, em momentos de grave crise, a singeleza da natureza nos obrigue a voltarmos nossa atenção para algo que realmente importa: a possibilidade de permanecermos humanos em meio à barbárie que, todos os dias, se aproxima um pouco mais de cada um de nós. Refiro-me aos animais “selvagens” que, rotineiramente, se avizinham de áreas extremamente urbanizadas e que, como que por milagre, conseguem sobreviver.
O recente episódio da Capivara da Lagoa é uma demonstração viva de que, apesar de tudo, esta cidade ainda tem alma e sentimento. Não obstante a violência, oficial e privada, que se abate sobre os seus habitantes, ainda existe espaço em nossos corações para protegermos a capivara que, durante dois anos, ocupou um dos endereços mais nobres desta mui leal e heróica vila. Sim, durante dois anos, a capivara residiu placidamente às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas e não foi vista servindo de aperitivo para nenhum churrasco realizado após uma pelada jogada ali perto. Ao contrário, a falta de espaço nas modernas habitações fez com que os freqüentadores da Lagoa – gente de toda parte da cidade, diga-se de passagem – tomassem aquela capivara como o animal doméstico que mora no quintal da imaginária casa de cada um de nós, revelando as origens rurais e, de certa forma, suburbanas de nossa sociedade. Assim, a capivara passou seus dois anos, ora aparecendo, ora desaparecendo da vista dos jornais e da imprensa.
Assim como a capivara, há garças e outros animais que habitam o entorno da Lagoa. Mário Moscatelli pode ter certeza de que foi graças ao seu trabalho, plantando uma nova vegetação nas margens da Lagoa, que a nossa Garota de Ipanema pôde se abrigar e sobreviver durante dois anos. Se outra utilidade o “manguezal” não teve, somente este fato já justificaria o que foi feito. Ninguém sabe de onde a capivara veio. Talvez, um mero palpite, tenha vindo da Floresta da Tijuca, descendo o Rio dos Macacos que cruza o Jardim Botânico, passando pelo Jockey Club e indo se aninhar na Lagoa. Ou talvez algum gaiato a tenha colocado lá, de forma que pudesse se divertir com as nossas especulações sobre a origem da capivara. Enfim, o que poderia ter sido ninguém sabe, nunca saberá. Este é um segredo que morrerá com a capivara.
Não bastasse a surpresa da simples existência da capivara na Lagoa, o simpático roedor nos propiciou outros deliciosos momentos quando, subitamente, demonstrou suas habilidades na natação ao cruzar de Ipanema para Copacabana, em mar aberto. Agora, os manuais de biologia deverão acrescentar entre as características capivarais a habilidade para nadar no mar, bem como a corrida, pois o Corpo de Bombeiros teve enormes dificuldades para “enjaular” o bicho.
Ora, capivaras, pingüins, baleias, micos e outros animais são figurinhas fáceis nesta cidade. Os momentos que eles nos proporcionam são impagáveis e dão ao nosso burgo uma peculiaridade extremamente simpática e agradável. Porém, estas aparições de animais servem para muito mais do que apenas isto. Graças a elas podemos perceber a importância da solidariedade, do respeito pela vida e da capacidade de nutrir sentimentos de ternura e carinho que tais animais nos proporcionam. Na verdade, capivara, pingüim e baleia servem para nos mostrar que é possível cultivar a nossa humanidade. A mesma sorte não teve o tubarão da Barra da Tijuca que, vítima de um imaginário cruel, pagou os pecados de terceiros, servindo de válvula de escape para toda a agressividade, angústia e frustração de uma sociedade tão cansada de apanhar e de sofrer atos bárbaros e irracionais que, infelizmente, reproduz o que sofre. Deixo um alerta. Caso apareça um leão em nossa frente, na Avenida Nossa Senhora de Copacabana ou em qualquer outro lugar, lembremo-nos de Jorge Benjor: “Calma, minha gente, que o leão é sem dente”.
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