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Memórias de montanha

Colunista volta no tempo, relembra a época em que escalava usando um par de tênis Kichute e explica por que temos tanto fascínio pelo ato de pisar nas alturas.

1 de abril de 2005 · 20 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

O Rio de Janeiro, como sabemos todos, é uma cidade espremida entre a montanha e o mar, entre a bala perdida e o arrastão. Aqui neste site, volta e meia, surge o assunto do montanhismo. Agora mesmo temos a estréia de uma nova colega, Ana Araújo, que irá falar sobre esportes de contato com a natureza. Isto é muito bom e merece ser comemorado! Modestamente, eu também já fiz parte da turma dos esportes de contato com a natureza. Na longínqua década de 70 do século XX dediquei-me à prática do que, então, era conhecido como alpinismo, ainda que praticado em terras brasileiras e, portanto, longe pra burro dos Alpes. Eu freqüentava o “Carioca” (CEC – Clube Excursionista Carioca), fundado em 21 de janeiro de 1946 e que tinha sede em um pequeno apartamento na Rua Hilário de Gouvêa, 71/206. Nós nos reuníamos às 4ªs e 6ª feiras para falar de escaladas passadas, programar outras para o fim de semana que se avizinhava e assim a vida ia se passando. O grupo era majoritariamente de jovens, mas haviam também os coroas. Como eu tinha cerca de 18 anos, não conseguia imaginar a idade dos coroas, talvez tivessem 30, no máximo. Hoje, acharia que eram jovens como os outros. Era meio ridículo imaginar Eric Clapton com quarenta anos.

Não pretendo me referir à uma idade de ouro perdida, nem ficar com pieguices chorando um passado que não volta mais. Aquele época, assim com a atual, tinha as suas dificuldades, principalmente políticas. Mas o assunto é montanha e para ele retorno. Algumas dificuldades para a prática do alpinismo, então, eram diferentes das de hoje. Em primeiro lugar vinha a dificuldade para compra de material. Cordas, mosquetões, botas, vibrans, magnonis, oitos e demais petrechos só mesmo importados e a peso de ouro. A maioria de nós escalava com o Kichute, ou algum tênis que lhe fosse equivalente. Tais dificuldades fizeram com que um dos melhores escaladores daqueles dias, Natanael de Oliveira, lançasse a Alpinat que era uma fábrica de fundo de quintal na qual o material de escalada era produzido. A garantia era o próprio Nat que se utilizava do material por ele mesmo produzido. Assim, cada queda que ele sofria, a resistência e segurança do material eram comprovadas. Em compensação, e sempre as compensações são problemáticas – lembremo-nos da história do pai e do filho conversando sobre a esposa e mãe… Quando íamos escalar a Pedra da Gávea, a Pedra Bonita ou os Dois Irmãos, a chance de sermos pegos no meio do fogo cruzado entre quadrilhas de traficantes rivais era inexistente. Não havia nada melhor do que pegar um ônibus na praça Rodrigo Otávio, saltar em São Conrado e subir a rua Iposeiras ou a Estrada das Canoas a pé e passar um dia inteiro escalando o paredão Jorge de Castro, XV de Novembro, Passagem dos Olhos e depois, no cume, comer um lanche feito de Pumpernickel, chocolate e água quente tirada de um cantil plástico. Gallotti, Secundo, Lagartão, Via dos Italianos eram coisa para uns poucos iluminados que tinham chegado a um estágio muito superior e que causava uma discreta inveja na ralé. Eram vias que só podiam ser feitas pelos Lionel Terray nacionais.

Não haviam ecologistas, ecologia política, política ecológica, direito ambiental ou qualquer um desses temas que falamos atualmente. A questão era muito simples: fazer escaladas, respeitar a natureza, trazer de volta o lixo que se levava e muita solidariedade entre os companheiros de cordada. Não há atividade esportiva que gere mais confiança e solidariedade entre as pessoas do que o alpinismo, pois cada um depende inteiramente do outro; principalmente naquele tempo em que não existiam telefones celulares, GPS, serviços de busca com helicópteros…

Foi praticando alpinismo que pude conhecer o Parque Nacional da Serra dos Órgãos – PNSO e desfrutar de uma das sensações mais marcantes de minha vida que foi escalar o Dedo de Deus. A primeira vez que lá fui foi no dia 27 de abril de 1975, conforme atesta um diploma que me foi conferido pelo CEC e que até hoje está pendurado na parede de minha biblioteca. Foi sensacional. Um grande grupo de jovens que foi para a Santinha na Rural do Fonfon. Saímos de casa por volta das 5 horas da manhã. Às 7 h estávamos na Santinha. Entramos mato a dentro e começamos a subir para a base da Face Leste. Depois de algumas duas horas caminhando em uma pirambeira danada, conseguimos chegar na base. Fizemos umas três ou quatro cordadas de duas pessoas, no máximo três e fomos nos enfiando pelas chaminés. Umas mais estreitas, outras mais largas, muitas inteiramente úmidas, algumas fazendo um calor insuportável. Arrasta as costas, empurra com as pernas. Cuidado para não machucar o joelho e o grupo ia serpenteando pelas entranhas da montanha, por dentro do Dedo de Deus, símbolo do alpinismo nacional. Depois de incontáveis chaminés, chega-se à base de uma escadinha de metal – não sei se ainda está lá. Subimos a escada e atingimos a glória. O Cume do Dedo de Deus. Lá existia uma caixa de metal na qual estava escrupulosamente guardado um caderno no qual cada um de nós escreveu o próprio nome. Tensing e Hillary nos protegiam. Aprendi que tão difícil quanto subir é descer. A primeira visão do Grande negativo é realmente apavorante. Um pequeno pêndulo e saímos do vazio absoluto para um plateau com um grampo de meia e “toca para baixo”. Imundos e cansados, chegamos na Santinha novamente, era quase seis horas da tarde.

As montanhas sempre exerceram um fascínio extraordinário sobre os seres humanos e nelas estão os momentos mais sublimes da humanidade. Foi em uma montanha que se disse: ´Bem aventurados os puros de coração, porque eles verão a Deus´ (Mt 5,8). Foi também em uma montanha que ocorreu a tentação de Cristo. A montanha nos leva à reflexão mais profunda sobre o sentido da vida e sobre o nosso papel no mundo. Montanhas são locais destinados à contemplação e ao auto-conhecimento. Devido ao fato de estarem elevadas, nos colocam mais próximos de Deus. A verdadeira benção que esta cidade recebeu de ter tantas e tão lindas montanhas, lamentavelmente, tem sido negligenciada por nossos governantes. Que eles saibam respeitar nossas montanhas, quem já compartilhou com elas a graça de viver, saber a importância que elas têm.

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