Muitos setores “ecologistas” afirmam que a Bíblia e, portanto, as religiões que nela se inspiram, estão fundadas em uma concepção antropocentrista e voltada para a “dominação” da natureza. Certamente, grande parte das pessoas que defendem tal forma de pensar jamais leu a Bíblia ou qualquer documento explicativo das idéias cristãs sobre as relações entre o meio ambiente e os seres humanos.
Recentemente, o Pontifício Conselho “Justiça e Paz” tornou público o Compêndio de Doutrina Social da Igreja (1). Em tal trabalho existe um capítulo especialmente voltado para expor a doutrina da Igreja Católica sobre o meio ambiente (capítulo X, Salvaguardar o ambiente). Dada a importância do tema, permito-me transcrever alguns trechos que julgo relevantes do mencionado capítulo.
Quanto ao papel desempenhado pelos seres humanos no interior da criação divina, como obras de Deus: “A natureza, obra da criação divina, não é uma perigosa concorrente. Deus fez todas as coisas, viu que cada uma delas (…) era boa” (Gn 1, 4.10.12.18.21.25). No ápice de Sua criação, como “muito bom” (Gn 1, 31), o Criador coloca o homem. Só o homem e a mulher, entre todas as criaturas, foram queridos por Deus “à sua imagem” (Gn 1,27): a eles o Senhor confia a responsabilidade sobre toda a criação, a tarefa de tutelar a harmonia e o desenvolvimento (cf. Gn 1, 26-30). O liame especial com Deus explica a privilegiada posição do casal humano na ordem da criação.
Em relação ao progresso científico, tecnológico e econômico: “Nesta perspectiva, o Magistério tem repetidas vezes sublinhado que a Igreja Católica não se opõe de modo algum ao progresso, antes considera a ciência e a tecnologia (…) um produto maravilhoso da criatividade humana, que é dom de Deus, uma vez que nos fornecem possibilidades maravilhosas, de que nos beneficiamos com ânimo agradecido”. Efetivamente, “a técnica poderia constituir, com uma reta aplicação, um precioso instrumento útil para resolver graves problemas, a começar pelos da fome e da enfermidade, mediante a produção de variedades de plantas mais progredidas e resistentes, e de preciosos medicamentos”. Contudo, é importante reafirmar o conceito de “reta aplicação”, porque “nós sabemos que este potencial não é neutro: é ser usado tanto para o progresso do homem como para a sua degradação”.
Efetivamente, “já se verificou que a aplicação de algumas dessas descobertas, no campo industrial e agrícola, a longo prazo produzem efeitos negativos. Isto pôs cruamente em evidência que toda e qualquer intervenção numa área determinada do ecossistema não pode prescindir da consideração de suas conseqüências em outras áreas e, em geral, das conseqüências no bem-estar das futuras gerações”.
Quanto às relações Homem-ambiente: “Uma correta concepção do ambiente, se por um lado não pode reduzir de forma utilitarista a natureza a mero objeto de manipulação e desfrute, por outro lado não pode absolutizar a natureza e sobrepô-la em dignidade à própria pessoa humana. Neste último caso, chega-se ao ponto de divinizar a natureza ou a terra, como se pode facilmente divisar em alguns movimentos ecologistas que querem que se dê um perfil institucional internacionalmente garantido às suas concepções”.
Quanto à questão específica do antropocentrismo: “O Magistério tem motivado a sua contrariedade a uma concepção do ambiente inspirada no ecocentrismo e no biocentrismo, porque se propõe eliminar a diferença ontológica e axiológica entre o homem e os outros seres vivos, considerando a biosfera como uma unidade biótica de valor indiferenciado. Chega-se assim a eliminar a superior responsabilidade do homem, em favor de uma consideração igualitária da ‘dignidade’ de todos os seres vivos”.
“O ser humano veio a considerar-se alheio ao contexto ambiental em que vive. É bem clara a conseqüência que daí decorre: ‘A relação que o homem tem com Deus é que determina a relação do homem com os seus semelhantes e com o seu ambiente. Eis por que a cultura cristã sempre reconheceu nas criaturas, que circundam o homem, outros tantos dons de Deus que devem ser cultivados e guardados, com sentido de gratidão para com o Criador. Em particular, as espiritualidades beneditina e franciscanas têm testemunhado esta espécie de parentesco do homem com o ambiente da criação, alimentando nele uma atitude de respeito para com toda a realidade do mundo circunstante’. Há que se ressaltar principalmente a profunda conexão existente ente ecologia ambiental e ‘ecologia humana’”.
“Esta perspectiva reveste uma particular importância quando se considera, no contexto dos estreitos liames que unem vários ecossistemas entre si, o valor da biodiversidade, que deve ser tratada com sentido de responsabilidade e adequadamente protegida, porque constitui uma extraordinária riqueza para a humanidade toda”.
“A sua destruição, também através de inconsiderados incêndios dolosos, acelera o processo de desertificação com perigosas conseqüências para as reservas de água e compromete a vida de muitos povos indígenas e o bem-estar das gerações futuras. Todos, indivíduos e sujeitos institucionais, devem sentir-se comprometidos a proteger o patrimônio florestal e, onde necessário, promover adequados programas de reflorestamento”.
“O conteúdo jurídico do ‘direito a um ambiente são e seguro’ é fruto de uma elaboração gradual, requerida pela preocupação da opinião pública em disciplinar o uso dos bens da criação segundo as exigências do bem comum e em uma vontade comum de introduzir sanções para aqueles que poluem. As normas jurídicas, todavia, por si sós não bastam; a par destas devem amadurecer um forte senso de responsabilidade, bem como uma efetiva mudança nas mentalidades e nos estilos de vida”.
“Toda atividade econômica que se valer dos recursos naturais deve também preocupar-se com a salvaguarda do ambiente e prever-lhe os custos, que devem ser considerados como um item essencial dos custos da atividade econômica”.
“Nos últimos anos, impôs-se com força a questão do uso de novas biotecnologias para fins ligados à agricultura, à zootecnia, à medicina e à proteção do ambiente. As novas possibilidades oferecidas pelas atuais técnicas biológicas e biogenéticas suscitam, de um lado, esperanças e entusiasmos e, de outro, alarme e hostilidade. As aplicações das biotecnologias, sua liceidade do ponto de vista moral, suas conseqüências para a saúde do homem, seu impacto sobre o ambiente e sobre a economia, constituem objeto de estudo aprofundado e de vívido debate. Trata-se de questões controversas que envolvem cientistas e pesquisadores, políticos e legisladores, economistas e ambientalistas, produtores e consumidores. Os cristãos não são indiferentes a estas problemáticas, cônscios da importância dos valores em jogo”.
“A visão cristã da criação comporta um juízo positivo sobre a liceidade das intervenções do homem na natureza, aí inclusos também os outros seres vivos, e, ao mesmo tempo, uma forte chamada ao senso de responsabilidade. De fato, a natureza não é uma realidade sacra ou divina, subtraída à ação humana. É, antes, um dom oferecido pelo Criador à comunidade humana, confiado à inteligência e à responsabilidade moral do homem. Por isso, ele não comete um ato ilícito quando, respeitando a ordem, a beleza e a utilidade de cada ser vivente e da sua função no ecossistema, intervém modificando-lhe algumas características e propriedades. São deploráveis as intervenções do homem quando danificam os seres viventes ou o ambiente natural ao passo que são louváveis quando se traduzem no seu melhoramento”.
“Todavia, não se deve cair no erro de crer que a mera difusão dos benefícios ligados a novas tecnologias possa resolver todos os urgentes problemas de pobreza e de subdesenvolvimento que ainda corroem tantos países do planeta”.
Julgo importante trazer aos leitores este breve resumo do capítulo anteriormente mencionado, visto que ele traz um conjunto de idéias extremamente relevantes e que merecem ser conhecidas, independentemente do juízo de valor que alguns possam fazer. Recomendo firmemente a leitura completa do livro, dada a sua importância nos dias de hoje.
1 – PONTIFÍCIO CONSELHO “JUSTIÇA E PAZ”. Compêndio de Doutrina Social da Igreja. São Paulo: Paulinas. 2005. 527 pp.
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