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Omissão inconstitucional

O pacto federativo atrapalha mais do que preserva o meio ambiente. Impede os estados de legislarem e tarda soluções simples para áreas abandonadas pela União.

9 de setembro de 2005 · 19 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Conforme é do conhecimento de todos, um dos principais problemas para a implementação das normas de proteção ao meio ambiente no Brasil é a grave questão do chamado pacto federativo. Por pacto federativo tem sido entendido um amplo acordo entre os entes federados quanto ao exercício das competências de cada um. Para a implementação de tal pacto, chegou-se a criar “comissões tripartites” nas quais estão representados o Ibama, os órgãos estaduais de meio ambiente e os órgãos municipais. Tanto as comissões tripartites, quanto o chamado pacto federativo são engodos que visam fazer com que a centralização se fortifique e são verdadeiros atentados contra a ordem jurídica democrática. O pacto federativo está contido na Constituição Federal e só nela. O que é urgente, em meu ponto de vista, é o dúplice reconhecimento do Estado de Direito e do Federalismo de forma que possamos sair do verdadeiro atoleiro no qual patina a implementação do federalismo ambiental no Brasil.

Por diversas vezes já tive a oportunidade de me manifestar neste mesmo O Eco sobre a necessidade de que o Congresso Nacional elabore as leis necessárias à adequada articulação entre os diferentes entes federativos naquilo que se refere ao exercício das competências concorrentes. Para entendermos a matéria é necessário que se examine, em conjunto, alguns artigos constitucionais. Em primeiro lugar há que se observar que o artigo 24 da Constituição Federal, em seus quatro parágrafos [1] estabelece que cabe à União produzir a legislação geral e que a competência geral da União não suprime a competência suplementar dos estados. Acrescenta a Constituição que, na inexistência de norma federal sobre normas gerais, os estados exercerão a competência plena e que, na superveniência de lei federal sobre normas gerais, cessa a eficácia da norma estadual naquilo que contrariar a lei federal sobre normas gerais. Nestes quatro parágrafos está a essência do chamado “federalismo cooperativo”. Entretanto, no estágio em que a matéria se encontra, de fato, não podemos falar em um federalismo cooperativo, pelo simples fato de que não existe uma lei federal sobre normas gerais. O que se tem verificado é uma forte tendência da união em criar “políticas nacionais”, nem sempre com amparo constitucional e que, não raras vezes, tais “políticas nacionais” têm sido recebidas pelo ordenamento jurídico como se “normas gerais” fossem. Na verdade, as “políticas nacionais” implicam, do ponto de vista prático e, sobretudo, político na submissão dos estados à “política federal” vigente.

Como já foi visto, há a necessidade constitucional de que se elabore uma lei sobre normas gerais para que as competências concorrentes possam ser exercidas de forma harmônica e conforme o desejo do legislador constituinte. O artigo 61 da Constituição Federal [2] determina a titularidade ativa para a iniciativa de Lei que, no caso concreto, está deferida a qualquer membro do Congresso Nacional e ao Presidente da República. Entretanto, passados 20 anos da elaboração da “Constituição Cidadã”, nem o Poder Legislativo, nem o Poder Executivo usaram do seu poder-dever de dar iniciativa a projeto de lei versando sobre tema tão crucial para a nossa combalida federação. Na verdade tal iniciativa não é exercida, pois implicaria em uma real diminuição dos poderes federais, o que não atende aos interesses seja do Executivo, seja do Legislativo.

Em regime federativo, como se sabe, cabe ao Poder Judiciário decidir as questões relativas às inconstitucionalidades de leis e atos normativos federais e estaduais em face da Constituição Federal e daquelas dos Estados. Ao Supremo Tribunal Federal é atribuída a elevada atribuição de ao declarar as inconstitucionalidades em face da Constituição Federal, estabelecer o perfil jurídico constitucional da relação entre os diversos integrantes da Federação, fazendo com que ele seja o ponto de equilíbrio da própria União. Isto pode ser feito por diversos meios dentre os quais se destaca a Ação Direta de Inconstitucionalidade, seja por ação ou omissão [3].

Qualquer pessoa que se dedique a examinar as muitas matérias compreendidas na competência concorrente entre Estados, União e Distrito Federal verá que existe uma tendência à centralização que, sem dúvida alguma, tem sido sustentada pelo Supremo Tribunal Federal em função do fato de que “não há em nosso ordenamento jurídico” uma lei federal sobre normas gerais o que acaba acarretando que, na prática, toda e qualquer lei federal seja considerada uma “lei geral”. De fato, não tem havido um questionamento efetivo quanto aos limites impostos ao poder de legislar da União e, principalmente, de invadir a competência dos Estados. São praticamente inexistentes as declarações de inconstitucionalidade de leis federais por “invasão da competência dos estados”, muito embora a possibilidade teórica exista.

Se formos ao artigo 24, VI da Constituição Federal veremos que legislar sobre florestas é matéria que integra a competência concorrente dos Estados, do Distrito Federal e da União. Neste sentido, o Código Florestal tem sido considerado, na prática, como uma lei geral e aos estados tem sido atribuída a competência para dispor suplementarmente sobre matéria florestal. Entretanto, a compreensão que o STF tem dado à capacidade dos estados de suplementar a legislação federal é muito restritiva, limitando-se a admitir o preenchimento de lacunas relativas às realidades locais, o que me parece um conceito muito abstrato [4] e centralizador. O STF, evidentemente, só pode julgar com base no quadro normativo vigente e, efetivamente, inexistindo a norma sobre normas gerais – aliás a ser produzida pela União – , devem ser consideradas gerais aquelas que a União entender que gerais sejam. Há alguns poucos exemplos nos quais as leis estaduais foram mantidas, liminarmente, com base no exercício da competência concorrente [5].

Uma das possíveis soluções para o grave problema apontado é o ajuizamento perante o STF de uma ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Tal mecanismo jurídico, ainda que relativamente recente em nosso direito constitucional, tem se revelado extremamente importante para a solução de várias querelas constitucionais. Entretanto, até onde é de nosso conhecimento, ainda não foi acionado para as questões ambientais ou de competência concorrente de forma mais ampla. Permito-me trazer ao conhecimento dos leitores alguns trechos de decisão do STF sobre a relevante questão da inconstitucionalidade por omissão. Com efeito, na ADI 1442 QO/DF, Relator o Sr Ministro Celso de Mello, julgada em 03/11/2004 o tribunal entendeu que: “A insuficiência do valor correspondente ao salário mínimo – definido em importância que se revele incapaz de atender as necessidades vitais básicas do trabalhador e dos membros de sua família – configura um claro descumprimento, ainda que parcial, da Constituição da República, pois o legislador, em tal hipótese, longe de atuar como sujeito concretizante do postulado constitucional que garante à classe trabalhadora um piso geral de remuneração digna (CF, art. 7º, IV), estará realizando, de modo imperfeito, porque incompleto, o programa social assumido pelo Estado na ordem jurídica. – A omissão do Estado – que deixa de cumprir, em maior ou menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional – qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade jurídico-política, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também compromete a eficácia da declaração constitucional de direitos e também impede, por ausência de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental. – As situações configuradoras de omissão inconstitucional, ainda que se cuide de omissão parcial, refletem comportamento estatal que deve ser repelido, pois a inércia do Estado – além de gerar a erosão da própria consciência constitucional – qualifica-se, perigosamente, como um dos processos informais de mudança ilegítima da Constituição, expondo-se, por isso mesmo, à censura do Poder Judiciário.” De fato, o que se vem observando em matéria de proteção ao meio ambiente, com a crescente centralização e a inércia dos Executivos e do Legislativo é um verdadeiro escândalo constitucional, neste país no qual não existem escândalos. Efetivamente, os Governadores dos estados possuem legitimidade para o ajuizamento da ação direta de inconstitucionalidade e, no particular, até onde é do conhecimento deste autor, não o fizeram e, portanto, acabam agindo de forma a contribuir para a crescente diminuição das competências estaduais e subalternizando o próprio papel dos Estados para os quais foram eleitos como dirigentes máximos. Assim, e cada vez mais, o legislador estadual se transforma em um legislador de ninharias sem relevância nenhuma, como o caso dos pitbulls no Rio de Janeiro, matéria que poderia ser disciplinada por uma portaria do Chefe de Polícia, sem qualquer problema.

É neste quadro de amplo avanço da centralização e da sucupirização das leis estaduais que avança o direito ambiental brasileiro que, cada vez mais, se transforma no direito ambiental federal. Grande parcela de culpa deve ser atribuída aos próprios estados que, em função de recursos econômicos escassos, acabam aceitando o jogo proposto pelos poderes federais que é o de afunilar tudo para Brasília, com a decretação da supremacia dos órgãos federais sobre os estados.

Os resultados nefastos de tal política centralizadora podem ser identificados no dia – a dia de qualquer cidade brasileira. Atualmente no Rio de Janeiro estamos vivendo problemas bastante concretos sobre tais “federalizações”. Vejamos a questão da reorganização de quiosques nas praias que estão prestes a serem federalizadas, quando em realidade são questões tipicamente locais. Por favor, eu bem sei que as praias são bens de propriedade da União. A Floresta da Tijuca é um Parque Nacional. A grande pergunta é: isto protege mais a Floresta da Tijuca?

Seria muito importante que um dos legitimados à propositura da Ação Direta de Inconstitucionalidade fosse ao Supremo Tribunal Federal questionar a inconstitucionalidade por omissão no que se refere à lei sobre normas gerais. Sabemos que o STF não terá condições de compelir, seja o Legislativo, seja o Executivo a agirem. Entretanto, a simples declaração de mora poderá surtir um efeito extraordinário, assim como se poderá, em tese, permitir que os estados legislem sem que fiquem submetidos a que se tenha por norma geral algumas metragens estabelecidas por leis federais, como tem sido feito.

[1] Art. 24 – …………… § 1º – No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais. § 2º – A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados. § 3º – Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades. § 4º – A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário.

[2] Art. 61. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

[3] Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I – processar e julgar, originariamente: a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal;…………. p) o pedido de medida cautelar das ações diretas de inconstitucionalidade; q) o mandado de injunção, quando a elaboração da norma regulamentadora for atribuição do Presidente da República, do Congresso Nacional, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, das Mesas de uma dessas Casas Legislativas, do Tribunal de Contas da União, de um dos Tribunais Superiores, ou do próprio Supremo Tribunal Federal…………………Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade:….. § 2º – Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias.

[4] ADI 1086 MC / SC – SANTA CATARINA MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO Julgamento: 01/08/1994 Órgão Julgador: TRIBUNAL PLENO Publicação: DJ 16-09-1994 PP-42279 EMENT VOL-01758-02 PP-00435

Ementa EMENTA: CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA. LIMINAR. OBRA OU ATIVIDADE POTENCIALMENTE LESIVA AO MEIO AMBIENTE. ESTUDO PREVIO DE IMPACTO AMBIENTAL. Diante dos amplos termos do inc. IV do par. 1. do art. 225 da Carta Federal, revela-se juridicamente relevante a tese de inconstitucionalidade da norma estadual que dispensa o estudo previo de impacto ambiental no caso de areas de florestamento ou reflorestamento para fins empresariais. Mesmo que se admitisse a possibilidade de tal restrição, a lei que poderia viabiliza-la estaria inserida na competência do legislador federal, ja que a este cabe disciplinar, através de normas gerais, a conservação da natureza e a proteção do meio ambiente (art. 24, inc. VI, da CF), não sendo possivel, ademais, cogitar-se da competência legislativa a que se refere o par. 3. do art. 24 da Carta Federal, ja que esta busca suprir lacunas normativas para atender a peculiaridades locais, ausentes na espécie. Medida liminar deferida.

[5] ADI 1278 MC / SC – SANTA CATARINA MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO Julgamento: 18/05/1995 Órgão Julgador: Tribunal Pleno Publicação: DJ 14-06-2002 PP-00126 EMENT VOL-02073-01 PP-00123

Ementa AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – LIMINAR. O deferimento da liminar na ação direta de inconstitucionalidade pressupõe o sinal do bom direito e o risco de manter-se com plena eficácia o ato normativo impugnado, requisitos reveladores da relevância da matéria versada na inicial. Isto não ocorre relativamente à Lei do Estado de Santa Catarina de nº 1.179/94, no que disciplinou a pasteurização do leite de cabra. A competência para legislar sobre proteção e defesa da saúde é concorrente – inciso XII do artigo 24 da Constituição Federal.

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