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Tanto mar

Os confusos processos de regularização fundiária em unidades de conservação já fizeram a União comprar e desapropriar seus próprios bens sem se dar conta.

3 de março de 2006 · 19 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

O Ibama anunciou recentemente a possível desapropriação dos hotéis situados no Parque Nacional do Itatiaia (PNI). Um deputado estadual, sem mais o que fazer, rapidamente se antecipou e está propondo uma “audiência pública” para tratar do assunto, de forma que os “proprietários” dos hotéis não sejam prejudicados com as medidas extremas que o órgão ameaça tomar. Sua Excelência andou calada nos últimos anos, enquanto os companheiros dirigiam o meio ambiente federal. Do mesmo modo, já haviam dirigido o estadual – em governo curto, porém marcado em nossa história de forma indelével, diante da grande contribuição para o aperfeiçoamento de nossas instituições democráticas com o lançamento dos companheiros Waldomiro Diniz e Marcelo Sereno em nível nacional, demonstrando que o Rio de Janeiro está mesmo na vanguarda do país.

Este O Eco, por várias vezes, tem tratado de assuntos referentes a parques nacionais e se dedicado especialmente ao Parque Nacional de Itatiaia. Sem querer ensinar vigário a rezar Pai Nosso, parece-me relevante trazer alguns pontos à análise do gentil leitor. Em primeiro lugar, como sabemos, só existe parque nacional em áreas públicas. Se a área for privada, a única solução é a sua desapropriação. Aqui é que, em meu ponto de vista, reside o problema.

Desapropriar os hotéis e pousadas para entregá-los à administração pública, em princípio, não me parece uma boa idéia. Quem duvidar que dê uma olhada no Hotel das Paineiras, situado na estrada do mesmo nome no Rio de Janeiro. Posso afirmar, sem medo de errar, que a administração de hotéis não é uma vocação do Ibama ou de qualquer órgão público “deste país”.

Mas, certamente, existe uma preliminar: o que fazem os hotéis no interior do PNI? Bem, todo o problema reside em uma premissa básica: a regularização fundiária do PNI. Mesmo sendo o parque nacional mais antigo do Brasil, ele ainda não teve a sua situação fundiária claramente definida. Isto é fundamental para que não caiamos em uma esparrela. É necessário que se identifique claramente quem é o dono de quê. A União, também conhecida como “viúva”, já comprou e desapropriou muitas vezes bens de sua própria propriedade.

Exemplos

Para não ficarmos em alegações vazias, nada melhor do que examinar a decisão do Tribunal de Contas da União em Tomada de Contas Especial (Acórdão 149/2002 – Plenário) sobre parques nacionais existentes no Rio de Janeiro, relator o Sr. Ministro Guilherme Palmeira. Por seu intermédio, veremos que até o mar já foi desapropriado!!!!

“Tomada de Contas Especial. IBAMA. RJ. Aquisição irregular de terras para composição do Parque Nacional da Serra da Bocaina (…) Falta de realização do levantamento fundiário do Parque da Serra da Bocaina (…)”

O resumo do caso é o seguinte: “Processo de Denúncia convertido em Tomada de Contas Especial por força da Decisão nº 145/93 TCU – Plenário. IBAMA. Irregularidades na aquisição de terras para compor o Parque Nacional da Serra da Bocaina (…) Ato de gestão ilegítimo dos responsáveis pela aquisição dos imóveis. Justificativas de alguns responsáveis insuficientes para elidir as irregularidades (…).”

O resumo do relatório do Ministro Guilherme Palmeira é como se segue: “Cuidam os autos de Tomada de Contas Especial de responsabilidade dos seguintes servidores do IBAMA: X, Y, Z, W, K e L. A TCE foi instaurada para apurar (i) irregularidades na aquisição de terras para compor o Parque Nacional da Serra da Bocaina e (…) O processo originou-se de denúncia sobre possíveis irregularidades na aquisição de terras e em outros assuntos administrativos na Superintendência Estadual do Ibama no Rio de Janeiro.

Para apurar os fatos, foi realizada Inspeção Especial na Entidade, no período de 02/02 a 02/04/91, que, em síntese, constatou impropriedades nos processos de aquisição de terras inseridas nas áreas demarcadas para os parques nacionais das Serras dos Órgãos e da Bocaina (…).

Os fatos continuaram sendo apurados e, após exame minucioso das informações encaminhadas ao Tribunal pelo Ibama, o processo foi novamente submetido à apreciação do Plenário, que, na Sessão de 28/04/1993, mediante a Decisão nº 145/93 (Ata nº 15), resolveu: 8.1. determinar ao IBAMA a adoção de medidas visando à execução de levantamento fundiário no Parque Nacional da Serra da Bocaina, de forma a definir as áreas e respectivas confrontações, relativamente às fazendas adquiridas pelo ex-IBDF, fixando-lhe prazo de 180 dias para a apresentação dos resultados; 8.2 determinar ao IBAMA a instauração de Comissão de Inquérito, com vistas a apurar as possíveis irregularidades na aquisição das terras que compõem o Parque Nacional da Serra dos Órgãos, em especial a Fazenda Jacob, fixando-lhe um prazo de 120 dias para apresentar um posicionamento final e conclusivo (…)

8.6. determinar a audiência prévia, com vistas à imposição de multa, nos termos do art. 12, inciso III, da Lei nº 8.443/92, do Sr. (…), responsável pela compra da Fazenda Guebetiba para compor o Parque Nacional da Serra da Bocaina, cuja proposta fora mandada arquivar em exame prévio, continuando o processo à revelia do Departamento de Parques, além de irregularidades como falta de exame cauteloso do inventário do espólio vendedor sob risco de anulação pelo Ministério Público Federal, sobreposição de títulos, assim como divergência das dimensões constantes da escritura com o efetivamente levantado pelo mapa cadastral do Parque que constatou estar um terço da área da fazenda submersa no Oceano Atlântico;

8.7. determinar a audiência prévia, com vistas à imposição de multa, nos termos do art. 12, inciso III, da Lei nº 8.443/92, do Sr. (…), responsável pela compra das Fazendas Itapicu, São José e São Vitorino, para comporem o Parque Nacional da Serra da Bocaina, sem ouvir o Departamento de parques nacionais, constatando-se irregularidades como propriedade registrada em nome diferente da pessoa que assinou como titular, escritura sem elementos e descrição indispensáveis para caracterização do imóvel, impossibilitando obtenção de registro pelo então IBDF, além de conflito dominial da Fazenda Itapicu com as de nome Porto Grande e Laranjeir (…) I – à CISET/MMA: que informe, nas contas do IBAMA referentes ao exercício de 1997, o resultado das providências adotadas pela Entidade no sentido de proceder ao levantamento fundiário no Parque Nacional da Serra da Bocaina (PNSB) e da Serra dos Órgãos (PNSO), bem assim o que resultou dos trabalhos da Comissão de Processo Administrativo Disciplinar instaurada para apurar irregularidades na aquisição de terras do PNSB, conforme informado no Ofício GP/IBAMA nº 150/94, e da Comissão de Inquérito instituída pela Portaria nº 458/93-P com vistas a apurar as irregularidades na compra de terras do PNSO (subitens 4.1 e 6.3) (…)

Irregularidades

Quanto às irregularidades na aquisição de terras dos parques nacionais da Serra da Bocaina e da Serra dos Órgãos, objeto das determinações dos subitens 8.1 a 8.3 e da audiência do subitens 8.6 e 8.7, todos da Decisão Plenária nº 145/93, em síntese, a Unidade Técnica ponderou o seguinte: “Antes de efetuar o referido exame, entendeu-se pertinente (ante o tempo decorrido e a ausência de decisão do Tribunal acerca da proposta contida na instrução de fls. 597-603, quanto ao acompanhamento, nas contas do IBAMA, referentes ao exercício de 1997, das ações relativas ao levantamento fundiário nos parques nacionais da Serra de Bocaina e da Serra dos Órgãos, à punição dos responsáveis pelas irregularidades verificadas na aquisição das terras e ao ressarcimento dos prejuízos) realizar diligência à Entidade solicitando informações que possibilitassem apurar o cumprimento das determinações contidas nos subitens 8.1 a 8.3 (1ª parte) da Decisão TCU – Plenário nº 145/93 (fls. 309-10).”

“Conforme informado pelo Chefe do Departamento de Unidades de Conservação (fl. 687), foi incluída na programação orçamentária do ano 2000 a quantia de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais) para a execução dos referidos trabalhos. (…) Nota-se, em face das várias diligências efetuadas por esta Secretaria (item 4 da instrução de fls. 597-603), descaso por parte do IBAMA no cumprimento das determinações indicadas, objeto de decisão do Tribunal datada de 28/04/93, prejudicando, inclusive, o ressarcimento dos prejuízos advindos das irregularidades verificadas na aquisição das terras que compõem os parques nacionais da Serra de Bocaina e da Serra dos Órgãos.”

Vejamos agora alguns trechos do voto: “No saneamento dos presentes autos, originários de denúncia, foi realizada Inspeção Especial e foram exaradas as Decisões Plenárias nºs 053/92 e 145/93, sendo que nesta última o processo foi convertido em Tomada de Contas Especial (…) Tomadas as providências pertinentes para verificar o cumprimento pelo Ibama dos itens 8.1 a 8.3 da Decisão Plenária nº 145/93, a Unidade Técnica destaca que a Entidade concluiu os trabalhos de demarcação e o levantamento fundiário no Parque Nacional da Serra dos Órgãos. Todavia, quanto ao Parque Nacional da Serra da Bocaina, informa-se que os referidos trabalhos não foram realizados em razão de contingências orçamentárias. Ademais, a 6ª Secex noticia, também, que o IBAMA não concluiu as apurações das irregularidades praticadas nas transações fundiárias no Parque Nacional da Serra da Bocaina (…)”

“Quanto ao fato de o IBAMA não ter concluído as apurações das irregularidades, penso que esta não é uma condição necessária e suficiente para deixar de aplicar a multa. Se assim fosse, o Tribunal não teria prolatado a Decisão Plenária nº 145/93 que determinou as audiências. Com efeito, no Voto que conduziu à tal Decisão o emérito Ministro Fernando Gonçalves já tinha observado a morosidade do IBAMA. Transcrevo, por oportuno, o trecho do Voto que trata da questão: “A apuração das responsabilidades tem se desenvolvido de maneira morosa, desde que, em 24/08/89, o então Presidente do IBAMA, sucessor do IBDF, determinou a instauração de uma Comissão de Sindicância para averiguar as denúncias de irregularidades.

Confusão

O comentário do Analista da 6ª IGCE às fls. 231 é elucidativo: “Nestes 33 longos meses o IBAMA conheceu cinco diferentes Presidentes e o assunto mereceu a atenção de seis Comissões instauradas pelas Portarias de nºs 462 (24/08/89); 767 (03/10/89); 149 (19/02/90); 347 (14/03/90); 804 (29/05/90) e 707 (02/04/92). A sucessão exaustiva destas Comissões, desencadeada por motivos diversos, tais como: pedidos de substituição de membros já indicados, falta de recursos financeiros e tentativas de obstrução dos trabalhos, logrou êxito em confundir, ainda mais, um assunto polêmico, beneficiando, de forma óbvia, os infratores, pois, até a presente data, não há um posicionamento conclusivo do Ibama acerca das denúncias de irregularidades”.

Mesmo em face de tal constatação, o emérito Relator alvitrou e o Tribunal acatou a proposta de audiência dos responsáveis. Resta, portanto, verificar se, realmente, as razões de justificativas apresentadas pelos responsáveis afastam as irregularidades a eles atribuídas na audiência. Para tanto, inicialmente, reproduzo mais um trecho do citado Voto: “As irregularidades de variada gama, sobejamente comprovadas nos autos, praticadas por servidores do extinto IBDF, por ocasião da compra de terras inseridas nas áreas demarcadas para os parques nacionais das Serras dos Órgãos e da Bocaina, indicam a liberalidade viciosa no trato dos dinheiros públicos. Veja-se, como exemplo, o processo de aquisição da fazenda Guebetiba, eivado de falhas historiadas pela Comissão de Inquérito. Avulta o fato de que cerca de 3.000 hectares da fazenda, ou seja, 1/3 de sua área adquirida para formar o Parque Nacional da Serra da Bocaina, jaz “irremediavelmente submersa no Oceano Atlântico? (fls. 576). Causa indignação à Sociedade Brasileira, assim como ao Analista que estudou minuciosamente os autos e a qualquer cidadão que se preocupa com o destino das verbas públicas, o caráter omisso, imprudente e, até mesmo, criminoso das ações perpetradas pelos servidores do extinto IBDF, por ocasião da aquisição dos imóveis aqui examinada. Se não, vejamos: a) como é possível a aquisição de um imóvel sem a anterior adoção de medidas visando o levantamento de seus limites e confrontações? (…)”

“Portanto, considero que tais conclusões são suficientes para caracterizar o que foi destacado pelo Relator da mencionada Decisão, ou seja o “caráter omisso [e] imprudente (…) das ações perpetradas pelos servidores do extinto IBDF, por ocasião da aquisição dos imóveis”…

Assim, antes de qualquer medida é necessário e até mesmo imprescindível que se verifique a situação fundiária do PNI para que não compremos gato por lebre, pois como sempre “a Viúva paga”.

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