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A solução é vender o Brasil

Rechaçar a proposta de privatização da Amazônia com o velho argumento da soberania nacional é usar um conceito fraco para defender uma região frágil e cercada de problemas.

1 de novembro de 2006 · 18 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

O falecido Raul Seixas, em música que foi censurada pelo regime militar, apregoava que a solução para os nossos problemas era vender o Brasil. Não é que muitos anos depois a proposta foi levada a sério e na reunião do G8 um gaiato fez a proposta? Refiro-me a uma proposta que circulou mas que não foi assumida por ninguém, visto que filho feio não tem pai, mediante a qual haveria uma grande “privatização” da Amazônia como instrumento para protegê-la. Rapidamente, a comunidade nacionalista se levantou e a proposta foi rechaçada sob argumentos de que “soberania não se vende”, “a Amazônia é nossa” e toda uma lista de slogans e declarações que, por vazias, não resolvem os problemas reais que enfrentamos na região amazônica.

O Direito Internacional demonstra que a concepção soberania absoluta não atende necessariamente aos interesses dos chamados países em vias de desenvolvimento. Já em 1895, o México protestou contra tomadas de água feitas pelos Estados Unidos no Rio Grande, pois no entendimento do país latino, os Estados Unidos estavam causando danos ao México. A chamada doutrina Harmon, defendida pelos norte-americanos, sustentava que o México não podia questionar medidas adotadas por um país em seu próprio território, em função da soberania nacional. Assim, como se vê, a soberania ilimitada é, claramente, um abuso de direito que, não raras vezes, é praticado contra as partes mais frágeis[1]. Coerentemente com tal concepção, a Constituição Brasileira, de forma inequívoca admite que a soberania brasileira é limitada, visto que exercida em harmonia com os demais países e não de forma unilateral[2]. Sobre o tema assim se pronunciou o Ex-Presidente da Corte Internacional de Justiça Manfred Lachs[3]: “O crescimento do corpus jurídico e seu desenvolvimento modificaram de forma considerável o conceito de soberania do Estado, e este é fenômeno bem conhecido. Hoje, noção de uma soberania ilimitada do Estado está completamente prescrita. Ser-me-iam necessárias inúmeras exposições para apresentar-lhes os setores onde a soberania do Estado viu-se limitada, a exemplo de quando me referi ao domínio dos direitos do homem ou das telecomunicações.” Há, ainda, o famoso caso Trail Smelter, no qual se estabeleceu que um País não tem soberania a tal ponto que chegue a causar danos para terceiros: ”The Tribunal finds that under the principles of international law, as well as the law of the United States, no state has the right to use or permit the use of its territory in such a manner as to cause injury by fumes in or to the territory of another or the properties or persons therein, when the case is of serious consequence and the injury is established by clear and convincing evidence.” [4]

Muito embora parte significativa da Amazônia seja parte significativa do território brasileiro, existe um interesse comum da comunidade internacional em sua proteção. Como aliás, é reconhecido pelo Brasil na Convenção sobre Diversidade Biológica, cujo artigo 3 tem a seguinte redação: “Os Estados, em conformidade com a Carta das Nações Unidas e com os princípios de Direito internacional, têm o direito soberano de explorar seus próprios recursos segundo suas políticas ambientais, e a responsabilidade de assegurar que atividades sob sua jurisdição ou controle não causem dano ao meio ambiente de outros Estados ou de áreas além dos limites da jurisdição nacional.” (grifei). A grande pergunta é: o que temos feito pela Amazônia? Muito pouco. À exceção das forças armadas, nenhum outro órgão do Estado Brasileiro tem uma presença amazônica que se possa dizer significativa. As próprias forças armadas, com os reduzidos orçamentos que dispõem, têm sido muito prejudicadas em suas atuações. Na verdade, a Amazônia brasileira é uma espécie de queijo suíço, em cujos buracos tudo passa. Não devemos nos esquecer do imenso movimento que foi feito contra o SIVAM, que é um dos passos mais importantes para que se possa exercer minimamente a “soberania” sobre a Amazônia.

Não se pode desconhecer, igualmente, fortes campanhas que propugnam por uma pretensa incompatibilidade entre a presença militar nas áreas de fronteiras e as terras indígenas. Sustentam os seus corifeus que os militares são uma presença que prejudica os indígenas, quando na verdade, o exército dá emprego a muitos indígenas e serve de um poderoso instrumento para que os indígenas não se sintam marginalizados por poderem integrar uma importante instituição nacional. Todas as questões acima indicam que, efetivamente, o Brasil não tem um projeto de relacionamento da Amazônia com as demais regiões do País. Isto é claramente percebido no exterior que, volta e meia, retorna com o papo. O governo Brasileiro, apesar de sua retórica nacionalista, contudo, pouco tem feito para assegurar a nossa presença no território.

Parte da chamada “privatização” da Amazônia já começou com as concessões florestais. Provavelmente, no novo contexto político que se avizinha, a privatização avançará, pois os interesses tradicionalmente vinculados ao dinâmico setor madeireiro da Amazônia estarão muito bem representados. Mas não se fale só dos madeireiros, pois a concessão para as chamadas comunidades não é, nada mais, nada menos do que uma outra forma de privatização.

Um dado certamente alvissareiro é a anunciada queda na taxa de desmatamento da Amazônia brasileira. Tal dado demonstra que é possível a redução do desmatamento legal e, até mesmo, a sua inteira supressão. Para tal se faz necessário que o governo abandone a Política Ping-Pong (Parceria pública indivíduos não-governamentais e organizações não-governamentais) e dê muita força ao setor público. É verdade que a atual administração tem se esforçado muito em contratar novos servidores para o Ministério do Meio Ambiente e para o IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis. O importante, agora, é ampliar a base dos órgãos públicos e não as cabeças diretivas. Uma boa idéia seria a transferência da maioria dos DAS para as regiões do interior, para os Parques e Unidades de Conservação em áreas de difícil acesso.

Enfim, para que o discurso da venda da Amazônia possa ser respondido de forma efetiva, é necessário muito trabalho, perseverança e dedicação.

[1] Alexandre Kiss, Droit International de Lènvironnement. Paris: Pedone. 1990. p.71.
[2] Constituição Federal: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; (…) Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: I – independência nacional; II – prevalência dos direitos humanos; III – autodeterminação dos povos; IV – não-intervenção; V – igualdade entre os Estados; VI – defesa da paz; VII – solução pacífica dos conflitos; VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX – cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X – concessão de asilo político. Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações. Art. 5º – (…) 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. § 4º O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão.”
[3]Manfred Lachs, O direito Internacional no alvorecer do Século XXI http://www.scielo.br/pdf/ea/v8n21/07.pdf, capturado aos 19.10.2006 [4] http://www.jura.uni-muenchen.de/einrichtungen/ls/simma/tel/case8.htm, capturado aos 19.10.2006

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