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Antes cedo do que nunca

Cingapura começou a cuidar de suas florestas urbanas quando não restava quase nada, e hoje é exemplo de preservação. Lição para nós: agir antes que seja tarde.

7 de janeiro de 2005 · 20 anos atrás

A ilha de Cingapura é uma cidade-estado. Isto é, uma cidade que é um país. Os limites do município são também fronteiras nacionais. É como se o prefeito de São Paulo fosse presidente e, além de cuidar (ou não) do saneamento, educação e asfaltamento das ruas, também tivesse que se ocupar de previdência social, defesa, política econômica e relações exteriores.

Ao analisarmos Cingapura tanto como cidade, quanto como país, nos deparamos com índices invejáveis. Sobre seus 641 quilômetros quadrados vive uma comunidade economicamente próspera, culturalmente diversa e socialmente estável. Com uma população de 3,6 milhões de habitantes e um PIB de US$ 84 bilhões, que dá uma renda per capita anual de US$ 30.170, a ilha é um dos países mais ricos do mundo (para efeito de comparação, a renda per capita do Brasil é de US$ 2.845 e a da cidade do Rio de Janeiro é de US$ 4.250).

Cingapura é marcada por prédios modernos de arquitetura arrojada com projetos de desenho inovador. Ao turista, para se deleitar, bastaria sentar-se à beira do rio Cingapura (completamente despoluído entre os anos de 1977 e 1987) e voltar a face ao céu para admirar a bela linha dessas construções dos séculos XX e XXI. Mas há muito mais: as ruas são limpas, o trânsito civilizado, o sistema de transportes coletivos eficiente, os restaurantes provedores de saborosa mesa. Caminha-se pela área urbana sem medo de assalto ou dissabores, mesmo com a câmera digital ostensivamente pendurada ao peito. De fato, há muito o que fotografar, sejam as construções coloniais do Clarke Quay, antigo porto fluvial, hoje transfigurado em lojas e restaurantes, ao estilo do Porto Madero em Buenos Aires, sejam as diversas obras de arte ao ar livre que amiúde decoram a cidade. Esbarra-se com um Botero aqui, um Dali acolá. E a cultura não fica por aí, não. É imperioso visitar o Museu das Civilizações Asiáticas, cujo pujante acervo faz repensar a história que aprendemos nos bancos escolares por uma perspectiva simplificadora, etnocêntrica e ocidentalizante.

(A essa altura o leitor deve estar se questionando se abriu a página cibernética correta. Não deveria eu estar tratando de Meio Ambiente? Não se preocupe o leitor, estás no O Eco. Já, já chegaremos lá.)

Cingapura não foi sempre este belo país de primeiro mundo, organizado, limpo e bom de se viver que é hoje. Há menos de 50 anos, os prédios hoje bem alinhados e bonitos de se ver eram favelas fétidas e violentas; o rio límpido onde é possível nadar era uma cloaca mal-cheirosa e purulenta; a riqueza e a prosperidade eram inexistentes – a renda per capita dos cingapueranos em princípios da década de 1960 era de escassos US$ 1.300. Desde 1819, quando foi transformada em entreposto inglês por Stanford Raffles, Cingapura cresceu em torno do comércio, cuja linguagem única era o dinheiro rápido e fácil. Financistas britânicos, trabalhadores braçais chineses e comerciantes indianos juntaram-se aos malaios locais para construir o maior porto do sudeste asiático, ao tempo em que vorazmente destruíam a mais verdejante floresta tropical primária que cobria a quase totalidade da ilha.

Tamanho foi o descaso pela natureza que, em 1880, apenas 10% da mata original continuava de pé, o que causou sérios problemas, sobretudo no que toca ao abastecimento de água potável. Para solucionar a escassez, o governo local pediu ao então superintendente do jardim botânico de Cingapura, Nathaniel Cantley, para preparar um plano de preservação dos últimos remanescentes naturais. As recomendações de Cantley subsidiaram a criação de diversas reservas florestais em 1883. Analogamente ao Brasil, contudo, o fato de estarem legalmente protegidas não impediu que as áreas florestais continuassem a ser exploradas. A caça continuou a correr solta; de 1898 a 1927, o Sultão Ibrahim, de Johor, no lado malaio do estreito de Cingapura, abateu 35 tigres, 20 elefantes e um sem-número de búfalos, antílopes e outros animais de menor porte. O último tigre da Ilha foi morto a tiros em 1926.

Também seguiu célere o desmatamento para dar lugar ao suposto progresso. Como resultado, em 1937 apenas cerca de 300 hectares de mata primária restavam em toda Cingapura. A este remanescente, em 1951, foram adicionadas outras áreas contíguas e esparsas de matas secundárias e capoeiras, para formar o sistema de Unidades de Conservação de Cingapura, que totaliza hoje meros 2.800 hectares, protegendo 840 espécies vegetais e 500 espécies animais. Ainda assim, é pouco, muito pouco. A título de comparação, o município do Rio de Janeiro, cuja área total é de 1.261 km², quase o dobro de Cingapura, tem dois Parques — um estadual, a Pedra Branca com cerca de 12 mil hectares, e outro nacional, a Floresta da Tijuca, recentemente ampliada para quase 4 mil hectares. Isso sem levarmos em consideração a Reserva Biológica de Guaratiba, a Serra do Mendanha, o Pão de Açúcar, a Reserva do Grajaú, entre outros.

A distância que separa as duas metrópoles na extensão da área protegida é, todavia, compensada pelo manejo, quase inexistente nas matas cariocas, muito presente nas florestas cingapureanas. Desde que ficou independente em 1965, Cingapura empreendeu organizado esforço para sair do subdesenvovimento e, como pode se depreender dos primeiros parágrafos dessa coluna, logrou seu objetivo. Dá gosto caminhar pelos 25 km de trilhas sinalizadas da viçosa e rara floresta da ilha. Os sinais de uma administração cuidadosa e pensada para utilizar as Unidades de Conservação urbanas como um grande centro de educação ambiental são evidentes. Segundo o presidente do Departamento de Reservas Naturais de Cingapura, Tan Keong Choon, “foi feito um esforço consciente para transformar as reservas naturais de Cingapura em uma sala de aula viva em que as crianças possam aprender como vivem as criaturas e plantas que não podem sobreviver nas ruas de uma cidade moderna”.

Com efeito, existe um programa sistemático de visitas escolares às Unidades de Conservação. Em sala de aula e na natureza é discutido o processo que levou à devastação da ilha e suas conseqüências. Durante o aprendizado, as crianças são estimuladas a pensar formas de minorar os danos dos erros passados.

Um dos intrumentos de mitigação largamente utilizado pelo Governo é a arborização urbana. Em Cingapura há profusão de árvores em toda parte. Muitas vezes tem-se a impressão de não estar em uma das maiores metrópoles do planeta. Mas essas árvores não são plantadas sem método. Muito pelo contrário, houve grande preocupação em ligar todos os remanescentes de Cingapura por corredores de mata. De certa forma, o fato de o Serviço de Parques Nacionais e a Fundação Parques e Jardins locais serem a mesma instituição ajudou em muito. A arborização urbana é planejada — e implementada — de modo a prover ligações de habitat para que a fauna possa transitar de bolsão em bolsão florestal, maximizando a pouca cobertura vegetal da ilha. Graças a esse manejo bem executado, esquilos, lemures, tamanduás, morcegos, primatas e felinos, além de inúmeros pássaros, conseguem transitar das reservas de captação de água de Mac Ritchie e Upper Pearce à reserva natural de Bukit Timah. Em todo lugar podem ser avistadas tropas de Kera (Maca fascicularis), única espécie de macaco existente na ilha.

Também o lazer está entre os objetivos de manejo do que restou das matas cingapureanas. As trilhas são bem sinalizadas e há painéis interpretativos em muitos lugares. O objetivo é trazer a população para o mato, não afastá-la. Até os praticantes de “mountain bike” estão contemplados com uma trilha de 6 km somente para eles, feita em terreno plano e manejada de modo a evitar a erosão. O resultado é evidente. Os cidadãos cingapureanos têm hoje um comportamento diametralmente oposto ao que originou o desmatamento da Ilha. Voluntariam-se em grandes números para projetos de reflorestamento ao redor da ilha e estão entre os maiores freqüentadores dos parques da vizinha Malásia, de cuja “Malayam Nature Society”, criaram uma sucursal na Ilha, para a qual contribuem com vultosas somas.

Tanto esforço e comprometimento após a independência, resultaram em um sistema de manejo excelente, que deveria servir de exemplo para outras metrópoles do mundo. De fato só há um senão ao modelo de manejo cingapureano: não ter sido iniciado antes.

Ao Brasil, país repleto de metrópoles ricas em áreas naturais das quais Rio, São Paulo, Belém, Florianópolis, Natal, Brasília, Belo Horizonte, Fortaleza, Ouro Preto e Teresópolis são apenas alguns exemplos, fica o alerta. Caminhamos a passos céleres para nos transformarmos em Cingapura. Nossas florestas urbanas estão encolhendo às expensas das favelas e do suposto progresso. Segundo estudos da UFRJ, a Floresta da Tijuca, apenas para citar o que nos é paradigmático, perde cerca de 100 hectares por ano. Em 20 anos, do ponto de vista da preservação, será tão irrelevante quanto os Parques de Cingapura.

Se o segredo da educação está em aprender com os erros dos outros, Cingapura tem duas lições a nos ensinar: manejar nossas áreas verdes urbanas como Cingapura faz hoje, para que não as devastemos como Cingapura fez ontem.

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