Colunas

Síndrome do escorpião

Uma das trilhas mais famosas e freqüentadas do Rio, a da Pedra da Gávea, foi destruída por vândalos. Arrancaram degraus e placas e lhe deixaram sem segurança.

22 de setembro de 2005 · 19 anos atrás

Nas duas últimas colunas, me detive sobre o estado do meio ambiente na Malásia, em uma série que era para ser contada em três capítulos, cuja conclusão prometi para esta semana. Infelizmente, contudo, vou quebrar a promessa pois tomei conhecimento de um fato desagradável que me sinto no dever de denunciar imediatamente. Trata-se de mais um ato de vandalismo inexplicável, em tudo semelhante ao que Maria Tereza de Pádua relatou em “Fogo Parte 2”, aqui em O Eco.

No domingo seguinte ao que concedeu a entrevista publicada em O Eco, ao ir dar continuidade ao paciente trabalho de manuntenção que tem feito na trilha da Pedra da Gávea, Ivan Amaral deparou com um cenário de destruição. Sinalização roubada, degraus destruídos, canais de drenagem arrebentados, fechamento de atalhos rompidos.

Segundo palavras do próprio Ivan “alguém foi a Pedra da Gávea e retirou 80% de todos os degraus e drenagens feitas com madeira que fizemos no período de 2 anos. Os fechamentos de atalhos foram destruídos junto com as estacas, bambus, troncos e etc…
Pensei, isto é crime ambiental contra o patrimônio público. Nunca vi nada igual em todos estes anos de montanhismo, fiquei perplexo.”

Diante de tamanha insanidade, Ivan sentou-se no chão e deixou escorrer as lágrimas, mas não desistiu, passou a semana aboletado no telefone, arregimentando voluntários e incitando fornecedores a apressar a entrega de material que o permitisse consertar o estrago.

Entrou o sábado, estava lá ele novamente, à frente de combativo grupo de “terralimpas”. Enxada para cá, arame para lá, pá, martelo, suor e dedicação preencheram os dias em que a maioria da população dedica ao descanso sancionado pelo Todo Poderoso. Quando entrou o crepúsculo de domingo, grande parte do estrago havia sido recuperado. Ivan e os voluntários que o apóiam dormiram o sono dos justos.

Mas não valeu a pena. A horda voltou. No domingo seguinte, o trabalho refeito estava novamente desfeito, arrasado. Triste sina. Ivan garante que o esforço gasto em destruir não foi obra para poucos minutos. Pelo contrário, para alcançar a magnitude que atingiu, várias horas terão sido necessárias. Além disso, há sinais claros de que ferramentas pesadas como foices e facões foram usadas na demolição.

Dessa vez o ato atingiu mais do que a Pedra da Gávea. O próprio Ivan acusou o golpe: “Sinceramente, não estou mais com vontade de voltar à Pedra da Gávea.Pela primeira vez na minha vida estou me sentindo inseguro em voltar a esta trilha. O lugar está muito abandonado e não temos a quem recorrer. Na noite após a última ida à trilha, tive pesadelos e dormi mal e o sentimento que me vem ao lembrar do que vi não é nada agradável. A destruição foi bem grande. Não vou abandonar o trabalho, tenho um compromisso com as pessoas que depositaram confiança em mim e não quero desapontá-las. Na verdade o que me incomoda mais é o sentimento de impotência e saber que não temos apoio da entidade responsável pelo Parque.”

Com o vandalismo, foram-se as placas de sinalização que mantêm excursionistas inexperientes na trilha, evitando que se percam. As placas são mais importantes do que se imagina. Antes de serem instaladas em 1999, uma média de 100 pessoas se perdiam anualmente nas matas da Tijuca. Como Bernardo Collares, Presidente da FEMERJ-Federação de Montanhismo do Estado do Rio de Janeiro- bem lembrou em recente carta a O Eco: “Desde então não temos mais notícias de pessoas se perdendo dentro do Parque Nacional da Tijuca”. Os estragos do ato grotesco não param por aí. Os canais de drenagem e os degraus feitos pacientemente pela ong Terralimpa, presidida por Ivan, foram arrebentados. Eles serviam para minimizar o impacto da erosão que já está comendo trechos críticos do acesso à Pedra da Gávea. Agora, uma das trilhas mais freqüentadas do Rio e Janeiro volta a ficar completamente exposta à degradação acelerada. Também os fechamentos dos atalhos foram reabertos pela malta vândala. Pena, a intervenção de Ivan induzia o caminhante a percorrer o caminho menos erosivo e, por extensão, menos impactante ao meio ambiente. Fechados, os atalhos regeneram-se naturalmente. Com o tempo, a mata atlântica volta a nascer nos trechos íngremes e lixiviados. Abertos, o trânsito contínuo de excursionistas e a água torrencial das chuvas de verão combinam-se para reduzir progressivamente a cobertura de terra que cobre o caminho. Em alguns anos, os atalhos transformam-se em grosseiras voçorocas.

É difícil entender o raciocínio da pessoa, ou mais provavelmente pessoas, que cometeram o mesmo crime insano por duas vezes seguidas. Em ambas ocasiões com muito gasto de tempo e energia. Quem teria feito isso? Porquê? Quem sabe o monitoramento por satélite que a diretoria do Parque Nacional da Floresta da Tijuca quer instalar (vide minha matéria “Onisciência e Onipotência” aqui em O Eco) seja capaz de descobrir. Enquanto isso, talvez um pouco de fiscalização e presença institucional pudessem ajudar a preservar os bens públicos. É inadmissível que um Parque que não faz o manejo de suas trilhas como deveria fazer, tampouco proteja o que é feito por outrem. Preparar uma rotina de fiscalização é tarefa fácil que não demanda caras atualizações do Plano de Manejo, nem contratos de milhares de dólares. O que falta para o Parque Nacional da Tijuca proteger o que pertence a todos os brasileiros?

Em tempo: semana que vem prometo concluir a saga da Malásia.

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