Desde pequeno percebi que meus olhos eram muito menos sensíveis do que os da minha irmã e de minha mãe. Enquanto o espectro das cores para mim ia pouco além de branco, amarelo, verde, azul, cinza, roxo, vermelho e rosa, as mulheres sempre me surpreendiam com a capacidade de identificar cores das quais eu sequer conhecia os nomes. Em teoria aprendi com elas que bordô, lilás, tijolo e vinho não são a mesma coisa. Sequer se confundem com o grená do meu Fluminense. Branco, creme e gelo também são diferentes e grafite não é cinza. À medida que os anos foram passando, entretanto, procurei educar minha percepção. Um truque que aprendi foi o de buscar a cor na sua origem. Por esse método ficou fácil identificar amarelo manga e diferenciar o verde bandeira do verde oliva. Por outro lado, só recentemente percebi que azul marinho não é a mesma coisa que azul turquesa. Foi preciso visitar as praias idílicas do país de Attaturk para saber que o adjetivo não se refere às águas transparentes do Pacífico Sul ou do Caribe, mas ao mar Mediterrâneo que banha Efeso, Tróia, e Galipoli. Essas águas, com efeito, são de um azul tão intenso, límpido e único que só poderiam ser chamadas de turquesa.
Infelizmente, a cor serve para identificar o mar mas não os rios turcos, aqueles que fornecem a água potável, fonte de toda vida. Hoje está difícil saber a cor dos rios daquele país pela simples razão de que estão secando. As barragens turcas esvaíram-se a índices para lá de alarmantes. Em fins de Setembro estavam com menos de 4% de sua capacidade. No último verão as torneiras da capital, Ancara, literalmente secaram durante diversos dias. No resto do país foi adotado um racionamento que, embora severo, não evitou prejuízos da ordem de três bilhões de euros com quebras nas safras de cereais, arroz, algodão e leguminosas.
O problema atingiu patamares tão sérios que o meio ambiente finalmente entrou na agenda política nacional. Pela primeira vez o Governo turco considera ratificar o Protocolo de Quioto e participar ativamente das discussões sobre o tratado que o sucederá. Enquanto isso, medidas emergenciais de curto prazo como o combate ao desmatamento estão sendo tomadas.
O quadro mostra que não é só no Brasil que o homem tem memória curta. Se há um país que poderia ensinar ao mundo a importância de uma política consistente de conservação para garantir o suprimento de água esse país é a Turquia. No tempo em que Istambul, sua maior cidade, era capital do Império Romano e se chamava Constantinopla aquela região do mundo se encontrava à frente do resto do planeta em práticas de captação e conservação de água. No longínquo ano de 532 DC, Istambul já contava com cerca de 60 cisternas, cuja capacidade assegurava o consumo de seus habitantes durante meses, bem como um intrincado sistema de aquedutos que levavam a água dos rios próximos a diversas fontes e chafarizes na área urbana. Até hoje o imponente aqueduto construído pelo imperador romano Valens no século IV continua de pé no centro de Istambul e a multi-centenária cisterna de Yerabatan, com seus 140 metros de comprimento, setenta de largura e oitenta mil metros cúbicos de capacidade, está tão bem conservada que é uma atracão turística.
A construção das cisternas e aquedutos foi feita em paralelo à proteção das nascentes e das matas que garantiam o brotar, fluir e a qualidade das águas. Uma das primeiras florestas a serem preservadas em todo o mundo foi a Beograd Ormani, na atual área urbana de Istambul. Tratada com cuidado e esmero desde o tempo dos romanos, a Floresta foi oficialmente protegida no século XVI pelo sultão otomano Suleyman. A partir da primeira metade do século XVIII, com o aumento da população, novas represas foram construídas em Beograd Ormani. Mas o mesmo excedente populacional cuja sede saciava, também exercia novas e crescentes pressões sobre a floresta. Assim, no século XIX, foi necessário tomar medidas adicionais de proteção. Em 1894, houve uma completa proibição de abate e corte árvores e a vila de Beograd, que havia emprestado seu nome à floresta, mas que estava poluindo as fontes hídricas, foi removida.
Após a primeira guerra mundial novas obras de infra-estrutura foram realizadas e a água de Istambul passou a vir de outras fontes mais longínquas. Com isso, Beograd Ormani deixou de ser a fonte principal de suprimento de água para a cidade e hoje capta apenas o equivalente a dois dias de seu consumo. As benfeitorias em outras fontes certamente melhoraram o abastecimento de água, mas levaram para longe da cidade e dos tomadores de decisão um grande exemplo prático de uma das principais razões que se impõem para que para que conservemos a natureza.
É certo que Beograd Ormani ainda tem grande importância para a preservação de um pequeno trecho do ecossistema da Bacia do Mediterrâneo, considerado como um hotspot ambiental dos mais ameaçados. Apesar de diminuta a Floresta é habitat para 71 espécies de pássaros e 18 de mamíferos. Também é fato que Beograd Ormani, com suas trilhas, churrasqueiras e mirantes, é um significativo equipamento de recreação para a densamente urbanizada Istambul.
Por outro lado, para quem não é ambientalista nem gosta de se divertir no mato, nada disso é importante. Beber água, entretanto, nos é a todos imprenscindível. Nesse sentido, o exemplo de Beograd Ormani, fundamental para Bizantinos, Romanos e Otomanos, deixou de ser seguido. Pelo país afora, florestas foram desmatadas, rios assoreados, matas ciliares suprimidas. Hoje há escassez de água na Turquia.
No Brasil, temos uma história semelhante no Rio de Janeiro. A nossa Beograd Ormani é o hoje Parque Nacional da Floresta da Tijuca. As cisternas de Istambul têm paralelo no Rio nos diversos chafarizes, como a Bica da Rainha e o já desativado chafariz da Carioca. O nosso aqueduto de Valens é conhecido pelos cariocas como Arcos da Lapa. Apesar das dezenas de represas ainda existentes na Floresta, assim como Beograd Ormani é hoje desimportante para o abastecimento da cidade turca, a Tijuca também transformou-se em fonte menor para os habitantes do Rio.
Com isso esquecemos que a Tijuca é uma Floresta plantada pelo homem a partir de 1861 com o intuito de garantir à então capital do Brasil o abastecimento de água límpida e pura. O empreendimento deu tão certo que o então Ministro do Império Barão do Bom Retiro sugeriu que fosse replicado para outras cidades do país.
A clarividência do futuro Visconde ficou na verbalização da idéia. No Brasil de hoje continuamos a ter dificuldade de compreender que a preservação de ecossistemas tem razões que extrapolam o amor à natureza e o apreço pelo canto dos pássaros. Na maioria, teimamos em ignorar que as florestas são a fonte de grande parte dos remédios e das essências, que são garantidoras do clima e que asseguram a limpidez da água que bebemos.
Hoje o mesmo Rio de Janeiro que reflorestou à Tijuca só consegue beber as águas que coleta do Guandu, após o adicionamento de doses cavalares de cloro. Situação similar vivem São Paulo e outras metrópoles desse país que já foi visto como dono de uma natureza infinita. Com isso muita gente se recusa a beber a água que jorra das torneiras de sua casa, filtrando-a, fervendo-a, ou no caso dos mais abonados comprando água mineral. Têm razão. O líquido que chega pelos encanamentos públicos já não é inodoro e tampouco insípido. Cada vez mais misturado ao cloro, vai acabar por não ser também incolor. Para que não fique marrom, há de virar verde piscina.
Mas pouca gente parece preocupada com isso. Afinal o que pode significar incolor ou azul turquesa em um país cuja Serra das Araras não tem (mais) araras, onde a Boca do Mato está (agora) urbanizada e onde o rio Bonito há muito tempo precisa de uma operação plástica?
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