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Portugal, país onde o homem fez o toucinho do céu e plantou o Paraíso

Independente de quem criou as primeiras reservas, Portugal é um dos países com mais experiências em conservação. Em Coimbra, uma floresta é protegida há quase 400 anos.

8 de fevereiro de 2008 · 17 anos atrás

Convenciona-se aceitar que o movimento conservacionista nasceu nos Estados Unidos e que o primeiro Parque Nacional do mundo foi Yellowstone, criado em 1876. Verdade ou mentira? Mentira não há de ser mas, como tudo na vida, há outras versões para essa verdade. Ter nome “Parque Nacional” desde sua criação não basta para dar a Yellowstone a primazia entre as unidades de conservação do mundo. Os americanos, com seus rios de dinheiro e sua imensa máquina de propaganda cultural, já convenceram meio mundo que os inventores do transporte aéreo são os irmãos Wright. Deixaram Santos Dumont a ver aviões. Também forçam uma barra para entronizar Yellowstone. Nesse sentido, como bom carioca que sou, gosto de pensar que a Floresta da Tijuca, decretada área protegida por iniciativa do Barão do Bom Retiro e manejada com esmero por Manuel Gomes Archer desde 1862, é mais antiga que qualquer Parque estadunidense. Ainda assim, mesmo sabendo que a Tijuca é protegida a mais tempo que o parcão que tanto encantou John Muir, não caiamos na tentação de achar que ela é a primaz das unidades de conservação. Já nos basta nos ufanarmos do fato da Tijuca ser a maior floresta urbana do mundo, quando ela não é sequer a maior floresta urbana do Município do Rio de Janeiro.

De fato, quando o assunto é tempo de janela, o pequenino Portugal é um dos países que mais tem experiências em conservação. Junto à diminuta vila de Luso e próximo à quase milenar Universidade de Coimbra, existe uma floresta que é protegida há quase 400 anos. Trata-se da Mata Nacional de Buçaco. Desde o século VI da Era Cristã a área de Luso era ocupada por monges beneditinos que aparentemente não tinham uma relação muito sustentável com o ambiente que os cercava. A partir de 1628, contudo, uma ordem de carmelitas descalços passou a ocupar a área e se auto impôs a tarefa de empreender o reflorestamento de cerca de 105 hectares, que haviam sido bastante degradados por seus predecessores.

Na época não existia o conceito de que áreas protegidas devem evitar a disseminação de espécimes de fauna exótica. Assim, o reflorestamento orientou-se pela máxima da beleza. A turma da batina rasgou trilhas poéticas ao longo de regatos, desviou rios para produzir cascatas e, além de 400 espécies nativas, plantou outras 400 espécies de árvores e arbustos de tudo exótico que lhes caiu nas mãos e lhes pareceu belo. Aproveitou-se do fato que as navegações portuguesas estavam em seu auge e encomendou mudas dos quatro cantos do mundo, desde o cedro do Líbano até o eucalipto australiano, passando pelo cipreste da Califórnia e pelo pinheiro do Paraná.

Não demorou para que a mata reflorestada atraísse diversas espécies de fauna nativa em busca de abrigo. Atrás delas vieram caçadores. Para guarnecer sua obra contra esses predadores humanos, os monges construíram ao redor de Buçaco um muro com um perímetro de quase seis quilômetros. Não contentes com a cerca, pediram a proteção de Deus, que veio com a roupagem de uma bula papal. Em 1643, Urbano VIII decretou a excomunhão sumária de qualquer cristão flagrado impactando a floresta de Buçaco.

Mesmo com as bênçãos do papa e a guarida concreta de um muro de pedras, os beneditinos não ficaram coçando o Buçaco. Colocaram-se a trabalhar na construção de um belo mirante guarnecido por um cruzeiro e de uma via-sacra composta de pequenas capelas decoradas com esculturas inspiradas no Novo Testamento. Suas trilhas, pensadas para ligar o nada a lugar nenhum pelo caminho mais bonito possível, objetivavam permitir ao caminhante integrar-se à natureza e sentir-se mais próximo da obra divina na Terra. Em termos de paisagismo, estavam muito a frente de seu tempo. O estilo aplicado em Buçaco, apesar do esforço do Mestre Valentim no Passeio Público carioca, só chegaria a sério ao Brasil na década de 1870 com o Barão de Escragnolle e, mais tarde com Glaziou e John Tyndale, este último projetista dos jardins do Parque Lage. Mesmo as aléias panorâmicas do Bois de Boulogne parisiense, do Central Park nova iorquino e do Hyde Park londrino são posteriores a Buçaco.

Em 1834, houve troca de guarda. Todas as ordens religiosas portuguesas foram dissolvidas e a supervisão divina foi substituída pela administração do Estado. Desde então, a Mata do Buçaco, que agora é Monumento Nacional, tem sido freqüentada por toda sorte de amantes da natureza. Não foram poucos os poetas e estudantes de Coimbra que lhe dedicaram versos e prosas. Em 1907, um palácio real em estilo neo-manuelino foi construído no seio da floresta. Hoje abriga o hotel do Buçaco, lugar bucólico cujas portas parecem franquear a entrada para o céu.

Por indicação de Henrique Guerreiro, engenheiro florestal do Instituto Chico Mendes, visitei o Buçaco recentemente. Fiquei impressionado com sua beleza e história. Cheguei mesmo a questionar os valores técnicos que nos levam a definir o que é uma área protegida e que, por seu anacronismo, valorizam mais Yellowstone do que Buçaco ou do que a Floresta da Tijuca. Entendi o espírito que se apoderou dos monges carmelitas. Buçaco é uma prova viva de que verde perto a natureza é um caminho espiritual que encurta a distância entre a Terra e o Deus Todo Poderoso.

Ao fim da visita, lendo um exemplar de O Expresso em uma pequena hospedaria de Luso, fiquei sabendo que o Papa Bento XVI pretende lançar uma Encíclica sobre o Meio Ambiente. Se o resultado for uma versão moderna de Buçaco, sou capaz até de começar a freqüentar a missa dominical.

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