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Os ecos do mar

São necessários mais estudos sobre os efeitos das atividades humanas que causam poluição sonora no ambiente marinho, em especial a indústria petrolífera

18 de fevereiro de 2005 · 20 anos atrás
  • Frederico Brandini

    Oceanógrafo e líder Avina que participou de várias expedições do Programa Antártico Brasileiro. Trabalhou como Professor do C...

Sabe-se, com certeza, que peixes, baleias e golfinhos podem detectar ondas mecânicas que viajam pela água oriundas de todas as direções. Foto: Pixabay.

Poluição ambiental é qualquer produto antropogênico que, direta ou indiretamente, prejudica a estrutura e o funcionamento de um ecossistema. O termo está normalmente associado a produtos químicos ou sólidos (e o plástico é o campeão) cujo grau de contaminação pode ser imediatamente avaliado pelos nossos sentidos, até onde podemos ver, cheirar e ouvir. Mas nossos sentidos valem muito pouco abaixo da superfície do mar. Necessitamos de instrumentos sofisticados para detectar ‒ diga-se de passagem, com excelente grau de precisão ‒ os níveis de contaminação química. Podemos medir a temperatura da água com um simples termômetro e avaliar a abrangência de uma pluma térmica causada por uma estação termoelétrica em uma baía fechada. Podemos, também, aumentar nossa capacidade de enxergar no mar através de fotografias, vídeos submarinos ou sondas acústicas, e contar quantos pneus e sandálias havaianas decoram a paisagem submarina do mar brasileiro.

Entretanto, a avaliação da poluição sonora subaquática ‒ e seu impacto no ecossistema marinho ‒ ainda é uma questão controvertida, cheia de incertezas e especulações. Infelizmente, ainda não inventaram sensores para confirmar se “esse peixe ou golfinho escuta, aquele não” ou “esse peixe ou golfinho passou mal com o tiro do canhão de ar da Petrobras, aquele não”. O problema é complexo demais para ser medido com apenas um sensor.

Peixes e mamíferos marinhos são os principais alvos de avaliação do impacto da poluição sonora. São vertebrados que “ouvem” alguma coisa. Mas, apesar do empenho de empresas internacionais que nos últimos 10 anos acumularam dados experimentais e informações sobre essa questão, o tema continua muito controvertido. Quanto menos se sabe, mais se especula. E, no vácuo do princípio da precaução, o IBAMA exige, os pescadores reclamam e os ambientalistas denunciam.

Está faltando um pouco mais de informação técnica no âmbito desses julgamentos. O ((som)) é o resultado de ondas mecânicas que se propagam com velocidades diferentes por onde passam: no ar (340 m/s), na água (1.500 m/s) e no ferro (5.000 m/s). Ou seja, quanto mais denso o meio, maior a velocidade das ondas mecânicas que, no final das contas, terminam por vibrar nossos tímpanos, nossa micro oficina auditiva e nossos nervos amplificadores. Como o ((som)) viaja 4 vezes mais rápido na água do que no ar, pode-se dizer que, em comparação com o ar, o mar é um domínio mais sonoro do que visual ou olfativo. O mar está repleto de ((sons)) naturais produzidos por animais, impactos de ondas, atritos de correntes com lajes e rochas submersas, terremotos que produzem ondas sísmicas, ultrassons diversos, etc.

“Não se sabe ao certo como é a percepção acústica dos pequenos e dos grandes vertebrados marinhos, sejam peixes, aves, anfíbios, répteis ou mamíferos. Se eles tivessem orelhas, ouvidos internos e sistema nervoso como os nossos, certamente ouviriam o que nós ouvimos. Mas eles não têm.”

Não se sabe ao certo como é a percepção acústica dos pequenos e dos grandes vertebrados marinhos, sejam peixes, aves, anfíbios, répteis ou mamíferos. Se eles tivessem orelhas, ouvidos internos e sistema nervoso como os nossos, certamente ouviriam o que nós ouvimos. Mas eles não têm. Portanto, não ouvem como nós. Isso não quer dizer que não detectem ou não processem a vibração mecânica do meio para outras finalidades fisiológicas. Sabe-se, com certeza, que peixes, baleias e golfinhos podem detectar ondas mecânicas que viajam pela água oriundas de todas as direções. Os animais, de acordo com a espécie, respondem de maneiras diferentes a níveis mínimos de vibração “sonora”, variando conforme a intensidade em decibéis ou frequência em Hertz. O ouvido dos peixes é um órgão interno, sem comunicação com o meio externo, isto é, com a água. Ele fica localizado junto à cabeça e é formado por canais laterais revestidos por células ciliadas que percebem as vibrações mecânicas do meio quando estas penetram diretamente através das escamas e pele do animal. Baleias e golfinhos têm ouvidos mais sofisticados, protegidos por ossos e caixas sonoras, que se comunicam com o meio exterior através de um pequeno orifício. É como se o tímpano estivesse exposto, no mesmo nível da pele.

Golfinhos usam vibrações de alta frequência, com poder de ecolocação, isto é, de avaliação do meio ao redor através da emissão e captação do ((som)), que retorna após ser refletido por qualquer obstáculo. O mecanismo é semelhante ao dos morcegos, mas muito mais sensível e com maior alcance, já que o ((som)) viaja mais rápido na água do que no ar. Golfinhos e baleias também emitem ((som)) de baixa frequência que nós podemos ouvir; é aquele ((som)) característico do “Flipper”, golfinho personagem do seriado televisivo.

Mas a transmissão do ((som)) no mar tem inúmeras outras funções no sistema biológico. A percepção de vibrações mecânicas é usada para comunicação, equilíbrio, localização, busca de alimento, proteção contra o predador ecolocalizador, acasalamento, etc. Os grandes cardumes pelágicos usam esse mecanismo para manter o sincronismo da formação. Seus órgãos internos, formados por tecidos epiteliais e cílios vibratórios, evoluíram em função do regime acústico natural ao seu redor. Quando esse regime é contaminado com vibrações mecânicas acima do normal, esses órgãos internos podem ser seriamente avariados.

Ruído não incomoda só você. Foto: Pixabay.

O som produzido pelos canhões de ar utilizados para prospecção geofísica viaja em todas as direções, mas o que interessa é a penetração da energia sonora no assoalho marinho. As ondas sonoras atravessam camadas geológicas com características e densidades distintas e, consequentemente, com reflexão e velocidades também distintas. É a análise desses registros que revela um perfil vertical de camadas geológicas diferentes e a ocorrência ou não de camadas menos densas (p.ex., água, petróleo, gás). É graças à propagação das ondas sísmicas produzidas por terremotos que se tem uma ideia da composição geológica do nosso planeta.

A propagação do ((som)) no mar também tem aplicações tecnológicas que nos são extremamente úteis. A primeira delas foi o uso de sensores hidro acústicos em barcos para medir a profundidade local (ecobatímetro). Nos estudos oceanográficos usam-se sensores hidro acústicos para medir velocidade e direção das correntes, detecção de cardumes de peixes, características do fundo marinho usando sonar de varredura lateral, uma espécie de tomógrafo que reproduz imagens quase perfeitas do relevo submarino e tudo o que está sobre ele. Foi com esse equipamento que localizaram o “Titanic” a 3 km de profundidade no Mar do Norte. Além disso, a aplicação da acústica marinha é fundamental para se estudar os perfis geológicos da crosta terrestre, através da análise de ondas sísmicas produzidas por terremotos.

Todos os animais com habilidade de detectar as vibrações mecânicas produzidas por ultrassons e canhões de ar também “ouvem” e podem ser seriamente prejudicados. Recentemente, começou uma preocupação generalizada com os canhões de ar da prospecção petrolífera. Experimentos feitos com peixes submetidos a vários regimes sonoros, com intensidades e frequências diferentes, revelaram destruição do tecido epitelial dos órgãos auditivos internos, que pode ser reversível ou não, dependendo do grau e tempo de exposição ao ((som)). Nesses experimentos foram utilizados os tais canhões de ar (canhões hidro acústicos) empregados na procura de petróleo.

“No entanto, o que mais me preocupa é o efeito crônico de ruídos de motores, hélices e ultrassons usados diariamente, desde a invenção da máquina a vapor até hoje, por cada uma das centenas de milhares de navios e milhões de embarcações de pequeno e médio porte, navegando em todas as direções desse mar global, costeiro e oceânico, tropical e polar.”

No entanto, o que mais me preocupa é o efeito crônico de ruídos de motores, hélices e ultrassons usados diariamente, desde a invenção da máquina a vapor até hoje, por cada uma das centenas de milhares de navios e milhões de embarcações de pequeno e médio porte, navegando em todas as direções desse mar global, costeiro e oceânico, tropical e polar. E a coisa pode ter piorado ainda mais quando entrou em cena o ultrassom antropogênico, com a invenção do ecobatímetro e do sonar. Quem pode avaliar a confusão que passa nos centros de percepção dos vertebrados marinhos? Sempre ouço a notícia de baleias e golfinhos que encalham na praia e, mesmo quando acudidas e libertadas em águas mais profundas, tornam a virar na direção da praia. E acabam morrendo. É intrigante esse comportamento aparentemente suicida. E há muita especulação sobre os motivos. Podem ser causas naturais, mas (o Truda que me corrija) quem me garante que a poluição sonora atual do meio marinho, que navega no mar profundo milhares de quilômetros em todas as direções não afeta cetáceos e golfinhos?

Mas, como o que está em julgamento atualmente são os canhões de ar das empresas petrolíferas, minha sugestão é a seguinte: as empresas deveriam incluir em seu planejamento estratégico plurianual estudos de impacto ambiental prévios em áreas supostamente ricas em petróleo. Tudo se baseia na determinação do que chamamos de “nível de efeito”, ou seja, o nível mínimo de ((som)) no qual uma determinada mudança no comportamento animal ocorre. Quando isso for determinado para cada espécie, ou pelo menos para aquelas dominantes, analisa-se o campo de propagação do ((som)) com medidas de intensidade e frequência em cada posição ao redor da sua origem. Em linguagem simples, precisa-se saber se, aonde o peixe está, o ((som)) vai chegar com a intensidade acima ou abaixo do nível mínimo de intensidade que o afeta.

Um estudo multidisciplinar, como em qualquer EIA-RIMA que se preze, deve incluir um conjunto de medidas físicas, geográficas, hidro acústicas, biológicas e sociais na área afetada, para se determinar no mínimo (i) a densidade da água; (ii) a velocidade com que o ((som)) se propaga; (iii) o grau de atenuação do ((som)); (iv) o alcance da onda sonora; (v) a sensibilidade auditiva de cada uma das centenas de espécies de peixes e mamíferos que habitam o local; (vi) a densidade populacional de cada espécie e (vii) o efeito que isso tem na pesca e em outras atividades socioeconômicas da região.

É bom lembrar que, para avaliar o efeito dos canhões de ar sobre a fauna marinha, é preciso travar uma verdadeira batalha naval para obter um número suficiente de dados estatisticamente confiáveis para chegar a algum resultado. Talvez o número de disparos necessários para encontrar petróleo seja bem menor (?) do que o necessário para os experimentos sobre o impacto do ((som)) dos canhões sobre os peixes. Portanto, os trabalhos de prospecção sísmica têm que ser feitos simultaneamente com o estudo de impacto ambiental. Não há outro jeito. Imaginem fazer inúmeros experimentos com canhões de ar e usar os dados apenas para analisar seus efeitos nos peixes. E depois de avaliar o impacto ambiental, pagar a conta das medidas mitigadoras e compensatórias e voltar ao mesmo local para reiniciar a saraivada de canhões e achar (se achar) petróleo. Seria dinheiro jogado fora e impacto ambiental dobrado. Ou, alternativamente, os experimentos poderiam ser em laboratório, simulando as condições naturais, o que seria bem mais caro.

O custo da análise do impacto sobre a fauna seria, portanto, mínimo se comparado com os custos tecnológicos, humanos e ambientais com que frequentemente essas empresas têm que arcar para extrair petróleo. O que representa um ou dois milhões de reais para essas empresas? Absolutamente nada comparado ao desgaste social e aos prejuízos ambientais e econômicos quando ocorrem vazamentos. Sem contar com os gastos com soluções mitigadoras ou compensatórias totalmente paliativas, apenas para apaziguar os ânimos da mídia e saciar a voracidade da “corretagem ambiental” que se vê por aí.

Só após os estudos é que se irá dispor de uma base mínima de dados para se diagnosticar, com um certo grau de credibilidade, o que o ((som)) com intensidade acima dos ruídos naturais provoca no comportamento das espécies locais. Talvez, após mais alguns anos de pesquisa, sejamos capazes de alimentar um modelo de computador e simular, sobre a mesa do escritório, o verdadeiro impacto ambiental de determinada atividade sísmica em um local específico. É o único meio de acabar com as especulações e os “cabos de guerra” entre a indústria petrolífera, ambientalistas e pescadores artesanais.

 

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