Visto do espaço através por satélites, que didaticamente conseguem colorir a velocidade das correntes marinhas, a imagem mais marcante que se tem da circulação na superfície dos oceanos é a de cinco grandes giros planetários em torno das latitudes dos 30° Norte e Sul. Dois no sentido horário no Hemisfério Norte (HN), sendo um no Atlântico Norte e outro no Pacífico Norte, e mais três no sentido anti-horário no Hemisfério Sul (HS), um em cada oceano. Esses giros só existem não apenas porque a Terra também gira, mas também porque ela é redonda. Veja bem… quem estiver na linha do Equador, cuja latitude é 0°, percorrerá 40 mil quilômetros em 24 horas, certo? Sua velocidade em relação ao espaço é de aproximadamente 1660 Km/h. Mas quem estiver exatamente no Pólo Sul, ou no Pólo Norte, vai dar uma volta em torno de si mesmo respectivamente no sentido horário, ou anti-horário, durante as mesmas 24 horas. Vai se mover menos do que um caracol, com e mesma velocidade do ponteiro que marca as horas nos relógios. Qualquer coisa que se locomove em escala planetária (p.ex., ventos, correntes marítimas, foguetes, mísseis e o Super-Homem) invariavelmente muda de latitude e sofre esse desvio pra direita (=horário) no HN ou pra esquerda (=anti-horário) no HS.
As correntes marítimas sofrem esse mesmo desvio a cada latitude que cruzam, até se fechar completando o giro. Teoricamente, giros não deveriam ter começo, meio e nem fim. Mas pode-se dizer que o início desse processo está no Equador e está fortemente relacionado com a presença dos continentes. A zona equatorial de nosso planeta é a mais quente porque está mais perto do sol. Aí o ar se aquece e se expande tornando-se mais leve, subindo como um gigantesco balão de ar. Forma-se então um cinturão equatorial de baixa pressão que atrai os ventos alíseos de modo a preencher o espaço vazio deixado pelos ventos ascendentes. Os alíseos do Nordeste e do Sudeste se chocam na altura do Equador e o vento resultante sopra a água da superfície do mar na direção Oeste, formando correntes marinhas equatoriais. Transoceânicas.
Se não houvesse continentes…. davam a volta na Terra! Mas os continentes representam barreiras naturais. Por causa deles as águas quentes tropicais acumulam-se do lado esquerdo das bacias oceânicas, escorregam para o Norte e Sul, e “giram” para o lado oposto, formando correntes de deriva Leste que acabam por retornar a água de volta para o lado direto das bacias oceânicas. Veja a circulação geral da superfície dos oceanos na figura na qual estão representadas as correntes regionais (Stommel, 1958). Os giros planetários ocupam cerca de 60% da superfície dos oceanos, que com suas “correntes de contorno” circundam uma massa de água quente e mais salgada que se acumula na altura da latitude dos 30 graus.
Os oceanógrafos chamam esses sistemas oceânicos de giros anti-ciclônicos subtropicais. O termo anti-ciclônico significa “ao contrário do movimento de rotação da Terra”, enquanto que os giros ciclônicos têm o mesmo sentido de rotação da Terra. Veja que os giros planetários subtropicais do HS são anti-horários e, portanto, anti-ciclônicos porque a Terra gira no sentido horário no nosso hemisfério. E vice-versa.
Mas o que importa mesmo, depois de toda essa explicação sobre a origem e os mecanismos de formação, é que os giros são mecanismos hidrodinâmicos muito eficientes de retenção de águas tropicais, pobres em nutrientes, sob regime permanente de alta pressão atmosférica. Ventos e chuvas são raros no centro dos giros. Existem peixes e vida marinha em geral. Mas extremamente diluída nessa massa de água parada, transparente e azul quase rocha. A vida se concentra em torno de ilhas vulcânicas e atóis dominados por recifes de corais e de algas calcáreas.
Então os giros planetários aprisionam a água no centro? Sim. Na verdade, tudo o que bóia no mar pode acabar no centro dessas zonas de calmaria oceânica, uma situação desesperadora pra milhares de navegadores de antes da era do navio a vapor que tiveram o azar de perder o rumo, apesar dos ventos alíseos pela popa, quando navegavam pra Oeste. Ou na volta pra Leste quando orçavam por mais tempo do que o necessário, caindo direto na armadilha mortal da calmaria tropical. Um beco sem saída. Pra que servem velas sem vento? Poderia levar meses até a última gota de água dos barris de madeira e a morte inevitável, uma vez que os galeões e caravelas tinham espaço limitado e nem tanta autonomia de água potável. A mesma agonia dos náufragos esquecidos. Morriam, portanto, mais de sede e menos de fome uma vez que os cavalos desidratados e semi-mortos, que podiam virar churrasco, eram lançados sem dó nem piedade pela borda dos navios. Por isso a região ficou conhecida como a Latitude dos Cavalos, inicialmente restrita ao giro anti-ciclônico do Atlântico Norte, à direita do Mar do Caribe. Um redemoinho gigante, lento e traiçoeiro que ameaçava a passagem dos navegadores europeus rumo às Índias Orientais. Pode ser visualmente detectado pela grande quantidade de algas de cor amarelo pardo ou marrom, formando um tapete vegetal flutuante, também conhecida por Mar dos Sargaços com cerca de sete milhões de Km2.
Sargaço é um gênero de algas pardas dos mais abundantes no litoral brasileiro, crescendo fixo nos costões rochosos. Em geral domina e deixa sem graça a paisagem submarina nos costões de baías da região Sudeste. Uma alga pouco atraente entre os turistas de máscara e snorkel, até o momento em que descobrem aquelas bolinhas de ar. Pequenos flutuadores que sempre acabam esmagados entre dedos curiosos. Flutuadores eficazes, cuja principal função é manter a sustentação da planta (algas não têm caule) enquanto submersas na maré cheia ou permanentemente submersas no infra-litoral. A sustentação e a distensão do talo aumentam a eficiência de captação da luz e nutrientes, mantendo taxas de fotossíntese suficientemente elevadas para compensar as perdas pela “pastagem” de invertebrados herbívoros.
Sargassum natans e Sargassum fluitans são espécies abundantes na costa Leste americana, constantemente arrancadas pelos furacões do Caribe que atingem o Sudeste dos Estados Unidos. Os flutuadores mantêm a alga boiando enquanto são levadas pela Corrente do Golfo para uma voltinha anti-ciclônica. Muitas terminam caindo no centro do giro e nunca mais saem, mantendo o crescimento vegetativo do talo. Se morrerem é pela decomposição lenta que pode levar séculos, dependendo das condições ambientais. A longevidade dessas algas é uma das maiores dentre os seres vivos, talvez perdendo apenas para algumas árvores de clima frio que vivem milhares de anos. Hoje é teoricamente possível ver talos de Sargaço que foram literalmente atropelados pelos galeões de Cristóvão Colombo e outros navegadores europeus que tentavam alcançar as Índias Orientais e acabaram por encalhar nesse amontoado vegetal. Mas isso é coisa do passado. Hoje, todo velejador experiente sabe evitar a região e pegar os atalhos dos ventos intercontinentais. E os navios a motor podem ir onde querem sem vento.
Esse tapete flutuante forma um bioma único em nosso planeta que além da importância histórica, tem importância ecológica e sócio-econômica. O Mar dos Sargaços abriga mais de 60 espécies de peixes e invertebrados marinhos (muitas endêmicas) que evoluíram camuflados entre os talos das algas. Veja as imagens impressionantes de mimetismo. Juvenis de tartarugas marinhas encontram abrigo, proteção contra predadores e alimento farto entre as algas flutuantes. Além disso, o Mar dos Sargaços é o único local de reprodução da enguia européia (Anguilla anguilla), um recurso que rende E$300 milhões/ano na economia pesqueira da Europa e dá emprego e renda a cerca de 25 mil pescadores artesanais.
A enguia é um peixe anfihalino, ou seja, tem uma etapa de sua vida na água salgada do mar e outra na água doce dos rios da Europa. É como o salmão, só que enquanto o salmão se acasala e desova nos rios, a enguia européia faz o contrário. Reproduz-se exclusivamente no mar, especificamente no dos Sargaços. Seus ovos ficam aderidos aos talos das algas e suas larvas protegidas. Desenvolvem-se até serem levadas para a Europa pela Corrente do Golfo. Daí espalham-se, cada uma por si e Deus por todas, até encontrarem bocas de estuários. Sobem o rio e alteram suas condições fisiológicas para se adaptar a água doce. Quando decidem reproduzir tornam-se novamente resistentes à alta salinidade, retornando ao mar para reproduzir no Mar dos Sargaços, fechando o ciclo.
Apesar de sua importância, o Mar dos Sargaços esta sendo explorado pela indústria de fertilizantes agrícolas e de produção de alginatos, um polissacarídeo precursor de inúmeros produtos usados na indústria de alimentos e cosmética. São toneladas de algas retiradas da superfície do mar com toda a biodiversidade acompanhante que, evidentemente, morrem. Eu confesso que nunca pude imaginar que até nos confins dos oceanos tropicais, onde pouco se tem pra explorar a nível comercial, o homem descobriu um recurso fácil com valor de mercado e que vale a pena garimpar, de preferência até acabar. É mais um bioma da Terra ameaçado de extinção.
Como eu disse, são cinco giros em nossos oceanos. O do Atlântico Norte é revelado pela abundância de algas; os outros pela abundância de lixo. Principalmente lixo plástico. O giro do Oceano Pacífico é o maior deles, do tamanho da África. Suas águas vistas por James Cook e Darwin, em suas “naveganças” entre as ilhas do Pacífico, eram limpas e de um azul índigo ininterrupto que hoje é interrompido por lixo sólido, 90% plástico, que se acumula cada vez mais. Essa região é um verdadeiro lixão global escondido. O do Pacífico é do tamanho do Texas. Mantém-se incógnito, alheio a quase toda atividade humana. Navios evitam, pois preferem as correntes pra ganhar tempo. Velejadores evitam obviamente porque não tem vento. Pescadores evitam porque não tem peixe em escala comercial. Lá só tem lixo boiando e atrapalhando a vida marinha.
Pesquisadores americanos estimaram uma densidade recorde no giro do Pacífico, de 334.271 peças plásticas por Km2, oriundas de vários países da Ásia e América do Norte. A biomassa de lixo é 6 vezes maior do que a de plâncton, que são os organismos da base da teia alimentar marinha. Pedaços de plástico que se fragmentam em pequenos pedaços e invariavelmente acabam no estômago de animais seduzidos pelo odor de bactérias, microalgas e outros organismos incrustantes. Pedaços grandes são substratos para organismos e acabam pesados e vão para o fundo. Pedaços menores têm pouca capacidade de suportar animais incrustantes, mas tem poder mortal contra a fauna marinha. São altamente eficientes em concentrar por adsorção contaminantes orgânicos como pesticidas e metais pesados. A poluição sai da água e se concentra milhões de vezes no material sólido.
E, como se sabe, isso tudo pode acabar no estômago de aves, tartarugas e mamíferos marinhos. No Pacífico, qualquer coisa não biodegradável que flutua e é jogado ao mar, pode atingir o centro dos giros em 12 anos. Nos outros giros menores leva menos tempo.
Antes usados como cemitério de cavalos, hoje os giros anti-ciclônicos são o lugar ideal para se avaliar a contaminação química e visual de nosso planeta. O end-point geográfico de toda a porcaria que a ignorância humana lança ao mar diariamente, com aquela ingênua ilusão de que vão desaparecer atrás do horizonte. Infelizmente, as futuras gerações têm um encontro marcado com as conseqüências dessa contaminação.
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