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Corações e pulmões

Não é coincidência que direitos humanos e meio ambiente limpo andem juntos. A China, país que hospedará as Olimpíadas de 2008, tem histórico vergonhoso de desrespeito a ambos.

20 de março de 2008 · 17 anos atrás
  • Eduardo Pegurier

    Mestre em Economia, é professor da PUC-Rio e conselheiro de ((o))eco. Faz fé que podemos ser prósperos, justos e proteger a biodiversidade.

O ar da China ficou um pouco mais difícil de respirar depois que as autoridades reprimiram com violência os protestos por independência no Tibete. O país que vai hospedar as Olimpíadas de 2008, a maior festa de confraternização mundial, tem um histórico lastimável tanto na proteção dos direitos individuais quanto do meio ambiente. O governo chinês pretende maquiar o problema, desligando fábricas e limitando outras fontes de poluição para melhorar a situação durante os jogos. Será vergonhoso se as Olimpíadas transcorrerem nesse clima de ilha da fantasia, num local onde o ar é irrespirável e os dissidentes do regime são mortos e presos.

Não há motores nas provas das olimpíadas. O ar é o combustível dos jogos e a força motriz os pulmões e músculos dos atletas. Sabendo disso, Haile Gebrselassie, 34 anos, potencial favorito para vencer a maratona, vai adaptar sua participação nos jogos e competir na prova de 10 mil metros. O atleta etíope que é detentor do recorde mundial da prova sofre de asma. “A poluição na China é uma ameaça a minha saúde e isso, para mim, tornaria difícil correr 42 km nas condições em que me encontro”, diz.

Os 11 milhões de habitantes de Beijing sofrem com a poeira fina resultante do uso maciço de carvão, usado para aquecimento e geração de energia. “A fumaça de Beijing se realimenta. Quando a cidade periodicamente desaparece em uma névoa marrom amarelada, o tráfego fica ainda pior. Os afortunados que possuem um carro deixam as bicicletas em casa. Escolhem o ar-condicionado ao invés do coquetel de fumaça de carvão, poeira e ozônio no ar”, conta Hilmar Schmundt, jornalista do Spiegel.

O governo chinês está gastando muito dinheiro para minimizar o problema. Em parte, vai exportá-lo, realocando siderúrgicas e outros grandes poluidores para locais mais distantes. Vai também desligar fábricas e usinas de energia poluidoras durante os jogos. Alguns analistas do mercado financeiro atribuem à China a forte subida dos preços das commodities nesse início de ano. A razão seria estocar e acelerar a produção agora, para poder parar fábricas durante o evento. Por fim, algumas medidas boas estão sendo tomadas, como a transformação de carvão para gás dos aquecedores domésticos.

Claro, outra medida de impacto para “reduzir” a poluição é a propaganda. O governo chinês jura que está fazendo tudo certo. Parece que até a Wikipedia, a enciclopédia participativa, não escapou. É suspeito o conteúdo do verbete “Environment in China”. De cima a baixo, parece chapa-branca. “Depois da conferência Meio ambiente e Desenvolvimento das Nações Unidas, em 1992, a China foi um dos primeiros países a formular e perseguir uma estratégia de desenvolvimento sustentável”, começa o texto com jeito de press release. Acima do verbete, a própria enciclopédia avisa, “Esse artigo não cita referências ou fontes”.

Já o New York Times publicou uma matéria aterradora sobre a situação na China, contando que a poluição tornou o câncer a maior causa de morte no país; perto de 500 milhões de pessoas não tem acesso a água potável; apenas 1% dos 560 milhões de chineses que vivem em cidades respiram ar de qualidade decente. A poluição do ar mata 400 mil pessoas por ano, em geral, de ataque cardíaco e câncer de pulmão. A boa notícia é que a China tem uma eficiência energética muito abaixo da média dos países industrializados. Por exemplo, gasta quatro vezes mais água por unidade produzida e número semelhante se aplica ao uso de energia. Cálculos de cientistas chineses apontam que a poluição custa 3 pontos percentuais do PIB. Ou seja, o crescimento chinês de 10%, na realidade é de 7%. Em alguns municípios, esse PIB verde é igual a zero. O valor dos estragos ambientais come todos os outros ganhos. Enfim, existe muito incentivo econômico e espaço tecnológico para buscar melhorias. A péssima notícia é que, apesar das declarações de preocupação, o governo central chinês não tem tido capacidade ou interesse de mudar o rumo. Vários experts de fora e dentro do país concordam que “a China não vai ser verde sem mudanças no regime”.

Não é coincidência que direitos humanos e meio ambiente limpo andem juntos. Países autocráticos não respondem às queixas de seus cidadãos, seja quando eles exigem um meio ambiente são ou quando clamam por democracia. Nesse sentido, as olimpíadas abrem uma oportunidade de pressão sobre o governo chinês. Valerá aqui o equilíbrio. A prosperidade da China depende do mundo. E o mundo se beneficia da prosperidade da China, que também pavimentará o caminho para a sua abertura política e gerará os recursos para comprar tecnologia limpa. Os jogos vão acontecer, mas atletas, governos e cidadãos mundo afora devem usá-los para protestar.

Está tudo programado para que os jogos funcionem como uma grande propaganda da ascensão chinesa, escondendo os porões onde mofam os dissidentes e fingindo que está tudo verde. Vamos permitir que seja fácil assim? Como diz um dito popular, é preciso um par para dançar.

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