“Nem tudo que é torto é errado, veja as pernas do Garrincha, e as árvores do Cerrado”. Os famosos versos do poeta e ambientalista Nicolas Behr, que já se tornaram um clássico da cultura alternativa brasiliense, manifestam com humor e ironia um protesto contra o desprezo de que tem sido objeto o segundo bioma mais importante, em termos de extensão, na composição do território brasileiro. Um desprezo ignorante, fruto de uma impressão superficial e enganosa sobre a “pobreza” do Cerrado em contraste com a grandeza da Floresta Tropical.
Alguns anos atrás, por exemplo, durante um debate sobre o futuro da Amazônia no Congresso Nacional, ouvi de um funcionário de carreira do Ministério de Agricultura, responsável pela coordenação de importantes programas de desenvolvimento agrícola, uma afirmação que me chocou por ser absurda e, ao mesmo tempo, absolutamente “realista” (do ponto de vista do senso comum medíocre que domina o debate sobre o planejamento territorial no Brasil). Segundo aquele funcionário, o mundo havia convencido o Brasil da importância de preservar a Floresta Amazônica. Mas não havia motivo para o agronegócio preocupar-se com isso, já que existiam de imediato 50 milhões de hectares prontos para serem desmatados e convertidos para agricultura no Cerrado!
Uma das causas desse tipo de mentalidade, talvez a mais essencial, é a névoa de obscuridade com que o Brasil Central continua sendo percebido por grande parte da opinião pública. Os 200 milhões de hectares do Cerrado são vistos como um vazio cultural e ecológico. Um território privado de grandeza histórica própria, que apenas pode ser valorizado através da chegada de uma fronteira externa de civilização e progresso. A própria semântica latina de Sertão, que domina a visão do Cerrado desde os primórdios da nossa formação histórica, origina-se na ideia de desert(ã)o, de lugar marginal onde se escondem os desertores (desertum), de espaço de pouca utilidade por ser embrulhado e trançado (sertanum).
O esforço de superação desta imagem preconceituosa passa por uma tarefa intelectual que ainda está longe de ter sido realizada. É preciso produzir um conhecimento vivo e renovado sobre o Cerrado enquanto tal, que revele a sua importância intrínseca em termos ecológicos, culturais e históricos. Apesar dos pesares, o melhor antídoto contra a ignorância continua sendo o conhecimento. A construção de uma nova imagem do Cerrado, que supere condicionamentos seculares, requer um esforço conjunto de ciência, educação e debate político.
Enciclopédia do Cerrado
Um passo importante nessa direção foi dado recentemente com a corajosa publicação, pela Editora Autêntica (Belo Horizonte), do primeiro volume da obra enciclopédica de Ricardo Ferreira Ribeiro, intitulada Florestas Anãs do Sertão: O Cerrado na História de Minas Gerais. Alguns de nós que já conheciam a qualidade do trabalho – originado de uma tese de doutorado com mais de mil páginas defendida na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – temíamos que ele não viesse a ser publicado comercialmente devido ao seu tamanho. Na qualidade de membro da banca avaliadora da tese, porém, posso garantir que a dimensão do trabalho não deriva de blá-blá-blás e repetições. São mil páginas de informações acuradas, análises inteligentes e, diferenciando-se de tantos trabalhos acadêmicos produzidos hoje em dia, muita paixão.
Estava escrito nas estrelas, tão visíveis nos espaços abertos do Cerrado, que Ricardo Ribeiro acabaria escrevendo uma enciclopédia sobre a região. Apesar de, ironicamente, ter nascido no Rio de Janeiro, mudando-se ainda criança para Minas, as veredas da vida o levaram a trabalhar em vários projetos de desenvolvimento local sustentável nas regiões do Jequitinhonha e do São Francisco. Há décadas que convive intensamente com as populações sertanejas, tornando-se, por adoção consciente, um típico exemplar de Homo cerratensis. Mais tarde, sem perder sua identidade anterior, tornou-se também um pesquisador obsessivo da história ambiental e da etno-ecologia da região, garimpeiro de documentos escritos e de informações orais sobre tudo o que se refere ao universo ambiental e cultural das Gerais. É a combinação das várias identidades do autor – de ciência, ação e paixão – que torna o livro tão rico e interessante.
Lendo este primeiro volume, que vai até a virada do século XIX para o XX, é possível conhecer uma história do Cerrado Mineiro escrita de dentro para fora, revelando uma dinâmica “cheia” e viva que desmonta o mito do “espaço vazio”. Saint-Hilaire já havia observado, em sua Viagem à Província de Goiás, que ao falar em “áreas despovoadas do interior do Brasil” estava se referindo a ausência de “habitantes civilizados, pois de gentios e animais bravios está povoada até em excesso”. Ou seja, a imagem do (de)sertão depende do ponto de vista, daquilo que se quer ou não se quer ver. Um olhar externo e preconceituoso pode fazer com que as populações do sertão, humanas ou não, se tornem invisíveis. Para um olhar mais íntimo e profundo, que avalia cada bioma e região cultural a partir de sua realidade intrínseca, o Cerrado é cheio de história e natureza.
Pode-se afirmar, como um fator limitante, que o autor se concentrou apenas na região do Cerrado que hoje se situa no estado de Minas Gerais. Trata-se, obviamente, de uma opção realista, considerando a dificuldade de se fazer uma análise histórica do Cerrado como um todo. Ela permite, além disso, um fecundo diálogo comparativo com futuros trabalhos que, com o mesmo grau de abrangência, abordem outras regiões do bioma. De toda forma, ao longo do livro, o recorte não se apresenta de maneira rígida, pois o Cerrado Mineiro compartilha muitos componentes essenciais com o conjunto do Centro-Oeste brasileiro, não podendo ser abordado de forma totalmente isolada.
Paleo-indígenas
Para dar uma ideia, mesmo que muito sintética, do escopo do trabalho, basta dizer que ele começa discutindo a história natural da formação do grande bioma do Brasil Central – na verdade um mosaico de pelo menos 11 grandes tipos fitofisionômicos – a partir dos intensos movimentos biofísicos ocorridos na Terra ao longo dos últimos 225 milhões de anos (desde o início da desagregação do grande continente da Pangeia, com a constituição do oceano Atlântico).
Na sequência analisa a antiguidade da presença humana na região, que pode remontar a 15 mil anos, fazendo um inventário das culturas paleo-indígenas – desde a Tradição Taparica, que teve seu clímax por volta de 10 mil anos antes do presente – e das culturas indígenas encontradas pelos neo-europeus a partir do século XVI, dominadas por povos do Tronco Linguístico Macro-Jê, como os Guaianás, Kayapós, Bororos e Xacriabás (tratando inclusive de povos que foram totalmente extintos, tornando-se nebulosos na memória histórica e antropológica, como os Araxás e Cataguás). A resistência agressiva desses povos ao avanço dos colonizadores ajudou a criar, durante o Brasil colonial, a mística dos Tapuia (povos bárbaros e violentos que se distinguiriam dos Tupi do litoral). O autor mostra como muitos elementos básicos da atual cultura regional, como é o caso do consumo do pequi, advêm de longínquas heranças paleo-indígenas.
Os capítulos seguintes tratam da sociedade mestiça constituída a partir da lenta e heterogênea ocupação neo-europeia do Centro-Oeste. Relata o espanto dos primeiros viajantes ao conhecer o ambiente dos Campos Cerrados – também chamados de Carrasqueiros ou Florestas Anãs (na expressão posterior de Saint-Hilaire) – tão diferente do domínio das grandes árvores do litoral. Detalha a maneira pela qual os bandeirantes paulistas, eles mesmos caboclos em sua maior parte, adotaram inúmeras técnicas e práticas de sobrevivência oriundas das populações indígenas locais. Uma seção importante do capítulo 4, no entanto, intitulada “a reciprocidade não aprendida”, mostra como a sociedade colonial importou muitas tecnologias nativas sem incorporar, na mesma medida, as práticas e tabus conservacionistas que faziam parte do manejo cotidiano dos recursos naturais locais, muitos dos quais acabaram sendo retomados, por motivos culturais e de sobrevivência, pelas populações pobres que sobreviveram na região através do extrativismo e da pequena agricultura.
Os capítulos 5 e 6 analisam o contexto do século XVIII, quando o aparecimento da economia mineira, com grandes levas de novos imigrantes europeus, começou a modificar radicalmente a história do Brasil Central. A oeste do cinturão urbano das Minas da Serra do Espinhaço, no entanto, veio se conformando uma sociedade sertaneja híbrida e diversificada do ponto de vista socioeconômico, na qual conviviam: as fronteiras dispersas de mineração; uma pecuária de distintas dimensões; a caça e a coleta; a produção de aguardente; as plantações de cana, tabaco e algodão; a fabricação de tecidos; as hortas e pomares de diferentes qualidades.
Ou seja, uma sociedade em grande parte autárquica e autossuficiente, apesar de em muitos aspectos ser também tributária do mercado consumidor das Minas e do litoral. Uma sociedade, por outro lado, pouco controlada e demarcada pelo poder central da colônia, formando um verdadeiro “sertão rebelde”, cheio de conflitos e motins. Uma ordem onde as grandes propriedades coexistiam com comunidades mais ou menos independentes de agricultores livres, quilombolas e índios. Um caldeirão social que acabou produzindo, no contato com a diversidade ecológica regional, uma civilização própria, rústica e criativa.
“Bárbaras gentes”
O capítulo 7, por fim, trata do século XIX, quando o olhar dos cientistas e administradores públicos, despertados pelo potencial mineralógico desenvolvido no século anterior, começa a penetrar de forma mais intensa e consistente nos sertões do Oeste brasileiro. Esse processo provoca um duplo movimento. De um lado, para alegria dos historiadores, produz um grande aumento na documentação e literatura sobre a região. As informações preciosas dos naturalistas viajantes, luso-brasileiros ou estrangeiros, ajuda a visualizar com muito maior perfeição a natureza daquela sociedade e de suas relações com o meio ambiente. Algumas das características conformadas nos séculos anteriores poderão ser observadas de forma bem mais detalhada.
O outro lado da moeda, porém, foi o crescente desenvolvimento de uma mentalidade de negação do sertão, confrontando-o com o modelo exógeno do mundo europeu e, em menor escala, das cidades do litoral brasileiro. Nas palavras do autor, “este deslumbramento dos homens de Ciência com as riquezas naturais do Cerrado marcará várias outras descrições posteriores, sempre com a mesma visão profética de um futuro afortunado para os seus habitantes a contrastar com a sua situação miserável no presente. Anos e décadas se passavam, as imagens paradisíacas se sucediam, mas as promessas não se concretizavam, e os naturalistas sempre acabavam por concluir que as ‘bárbaras gentes’ eram o principal entrave ao futuro majestoso escrito na própria natureza do lugar. E, assim, mais receitavam integrar o Sertão Mineiro ao ‘mundo civilizado’, para sacudir e acordar seu povo com um ‘choque de progresso’, pouco importando se ele o desejava, ou quais seriam suas expectativas de futuro”.
Em outras palavras, começam a aparecer aqui as sementes ideológicas dos grandes projetos de desenvolvimento do século XX, cujas consequências muito discutíveis e profundamente graves, do ponto de vista ambiental e social, serão abordadas no volume 2 do trabalho, que espero não demore a ser publicado.
É uma coincidência significativa o fato de esta verdadeira enciclopédia histórico-ecológica do Cerrado estar sendo publicada na mesma época em que comemoramos os 50 anos de publicação do “Grande Sertão: Veredas” de Guimarães Rosa, que foi fundamental para revelar e reinventar, o que no fundo dá no mesmo, a grandeza espiritual intrínseca de uma terra pretensamente vazia de cultura e humanidade. Que o novo livro sirva também para lançar luz sobre a grandeza histórica do mesmo sertão Rosiano, ajudando a despertar na opinião pública brasileira a preocupação e o remorso, ou melhor ainda a resistência, diante de sua possível destruição final, submergido como em grande parte já se encontra por oceanos de soja.
Todos os amigos do Cerrado, especialmente os que guardam da juventude a lembrança imperecível dos seus vastos espaços, torcem para que Rosa esteja certo quando diz que “todos que malmontam no sertão só alcançam de reger em rédea por uns trechos; que sorrateiro o sertão vai virando tigre debaixo da sela”.
*Editado às 20h50, do dia 01/04/2019, para melhoria da diagramação e recorte de fotografias. O texto não foi alterado.
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