Conhecer alguém como Tio Guedes não faz parte de um currículo convencional de formação profissional. Mas é um curso por si só, um manual humano para entender a Amazônia. Não apenas pela pessoa singular que nos salta aos olhos logo nos primeiros minutos de conversa, mas também pelo lugar em que vive, na zona de amortecimento do recém criado Parque Nacional Campos Amazônicos, no Amazonas. O “cerrado” amazônico é uma região especial, mas desconhecida por muita gente e, por isso, vista com pouca importância. Chegar até lá não é para qualquer um. Saindo de Humaitá você tem que estar disposto a enfrentar três horas de Transamazônica, com direito a centenas de “crateras”, claro, regado a muito balanço, para depois chegar na ainda pior Rodovia do Estanho, onde mais oitenta quilômetros de chão significam aproximadamente três horas de solavanco.
Mas o que o Tio Guedes tem de tão interessante para nos levar até lá? A fazenda que ele “cuida” já foi uma grande plantação de soja e arroz, com criação de gado, numa área aberta para gerar “desenvolvimento” econômico. A empresa de mineração Paranapanema foi para a região na época da construção da Transamazônica, no tempo do milagre econômico dos anos 70, para explorar o estanho. O gaúcho Tio Guedes foi junto, e para ficar. Hoje, seu maior desejo é que a falida fazenda seja transformada em área de conservação. Ele mesmo diz “pra mim, fecha tudo isso aqui e fica só preservando, não tem que mexer em mais nada disso aqui, nem ter mais ninguém e eu cuido de tudo, conheço tudo aqui”.
Não é o que pensa o madeireiro de uma serraria no caminho para o Tio Guedes. A serraria é uma das dez que estão recém instaladas no famoso “km 180” da Transamazônica, uma localidade conhecida como Santo Antônio do Matupi, que já é dentro do município de Manicoré. Carlos chegou na região há 3 anos e na época cortava madeira a 10km de distância da serraria. Hoje, ele (e certamente os seus colegas) estão tirando madeira da floresta a uma distância de 150km do local. Isso mostra como os madeireiros estão abocanhando a floresta amazônica. Mas ali ele não fica muito tempo. “Acho que fico aqui só mais uns três anos depois vou para Rondônia, a madeira aqui não é tão boa”, diz, com o parque da serraria repleto de madeiras nobres entre elas a acaricoara-roxa, que pode chegar a 800 anos e é muito usada para também fazer postes de luz. Perguntei até onde ele vai para tirar madeira e ele foi enfático: “Não tem limite, a gente vai até onde precisar”.
Cortando a Transamazônica, também passamos pela Reserva Indígena Tenharim – Marmelos. Ali, os índios vivem à margem da rodovia, aberta em 1972. Observamos algo incomum: o pedágio indígena. Em vários pontos existem cancelas feitas de madeira que são fiscalizadas por índios que fazem turnos de 24 horas. Segundo Jurandir Tenharim, colega que possibilitou a nossa visita à aldeia, a arrecadação pode chegar a R$50 mil mensais, que é dividida entre as várias aldeias das duas etnias daquela região. Fomos recebidos com os rituais tenharim e aprendemos como eles se adaptaram à chegada dos brancos depois da abertura da rodovia. A história deles não é diferente de outras etnias, a população deles quase acabou, mas hoje eles conseguiram repovoar as aldeias.
Na beirada destas histórias está o Nelson, paranaense que foi para a cidade de Humaitá para explorar a madeira. Explorou, mas resolveu investir no outro lado da moeda. Hoje ele tem uma área de 280 hectares dos quais 160 estão reflorestados com frutíferas e quatro espécies de árvores, principalmente a teca. Para isso, ele investiu cerca de R$ 2 milhões. Ele já chegou a ter quase duzentos empregados e hoje tem apenas cinco. Ele está com dificuldades para legitimar a área como elegível para obter créditos de carbono e ainda tem problemas com a regularização do local.
Sem a experiência de Nelson e sem saber ler nem escrever, Gerônimo mora há duas horas de barco subindo o Rio Madeira, no entorno da Floresta Nacional de Humaitá. Ele dá um exemplo de um sistema agroflorestal. Lá, tem árvore da espécie mulateiro na várzea com oito anos e tamanho bem considerável para sua pouca idade. Na parte seca tem café consorciado com mogno e outras espécies que estão dando bastante certo ali. A organização comunitária, liderada pelo Romildo, também reflete o sucesso do trabalho do Gerônimo, que hoje pode escoar sua produção para Humaitá depois da aquisição de dois barcos somente para este fim.
Eu, co-autora desta coluna, não estava sozinha quando conheci todas estas histórias e nem teria sido a mesma coisa se estivesse, talvez não teria chegado até eles. Eu estava com um grupo de mais dezenove pessoas que trabalham e são apaixonadas por meio ambiente. Eu era uma das alunas do curso Princípios Ecológicos para Tomada de Decisões na Amazônia, realizado pelo INPA – Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, coordenado por Rita Mesquita, José Luis Camargo, Domingos Macedo e apoio logístico de Isaac. Uma experiência única, quase totalmente prática e com uma logística muito bem pensada, considerando todas as condições desafiantes que Amazônia impõe.
Mas só soube deste curso porque estava em outro, seis meses antes. O Curso de Mudanças Climáticas, realizado pelo IEB – Instituto de Educação do Brasil, foi o primeiro que fiz e aconteceu em Manaus (AM). Foi bastante teórico, tivemos aulas com os melhores especialistas brasileiros no assunto, antes mesmo dele ter caído no gosto da mídia e do povo. Ali, com a ótima logística coordenada pelo Henyo Barreto, Márcia Côrtes e Carlos Klink, percebi o quanto esta experiência é valiosa e como fazemos contatos que vamos levar para sempre nesta luta para preservação do meio ambiente. Também tive o prazer de estar em uma Oficina de Jornalismo Ambiental, oferecido pela Aliança de Conservação da Mata Atlântica, em Porto Seguro (BA). Lá fiquei quatro dias com mais dezenove jornalistas que foram convidados para compartilhar o mesmo objetivo: aumentar a escala de notícias ambientais na mídia nacional e, principalmente, analisar a qualidade das notícias que circulam na imprensa.
Estas experiências são importantes para descobrirmos de perto os motivos que nos levam a defender com unhas e dentes a floresta em pé e a quantidade de serviços ambientais que ela nos presta. O próximo curso que irá acontecer é o de Ferramentas Econômicas para Conservação – IEB.
*Carlos Eduardo Young é economista, professor de Economia do Meio Ambiente da UFRJ e Doutor em Economia pela University College London.
*Priscila Geha Steffen é paranaense, jornalista ambiental e também colunista de música brasileira do Jornal do Estado, no Paraná.
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