“Logo após o choque inicial, imaginei uma escalada difícil onde algo havia dado errado e provavelmente algum engano na informação. Surpresa maior veio depois com a confirmação: a garota, que havia enfrentado tanto perigo em incontáveis paredes ao redor do mundo, havia mesmo perdido a vida, e não em meio a um mar de rocha e sim em um banal acidente de carro,” escreveu André Neves, editor do site de escalada Via Crux.
No dia 18 de julho de 2007 fez um ano que Roberta Nunes se foi. Um acidente de automóvel em uma estrada americana, no Utah, tirou a vida desta que era talvez a mais promissora escaladora de rocha que o Brasil já viu. Fazia na parede o que não conseguiu fazer em uma estrada…
Neste momento de tristeza, me vem à memória a menina de olhos azuis, animada, se plantando na minha frente durante uma Adventure Sport Fair, em São Paulo, e se apresentando. Uma paixão comum, a montanha, nos permitiu trocar idéias como velhas conhecidas. Eventos ligados ao montanhismo nos uniu mais algumas vezes, incluindo a última, quando nos encontramos em uma noite do Banff World Tour, o festival de filmes de montanha que tem ido todo ano para o Rio de Janeiro. Era 2004, eu ainda morava no Brasil, Roberta tinha uma vida que parecia com a que eu levei anos atrás, quando viajava pelo mundo, apesar de ainda ter um endereço fixo. Eu já estava casada, no meio do processo para emigrar para o Canadá e as expedições estavam suspensas por um tempo. Filho já fazia parte do meu sonho, quase tanto quanto um cume.
Lembro do rosto dela, com o forte sotaque paranaense, me dizendo que queria ter um filho, um dia. Não deu tempo. Foi embora levando tudo: sua habilidade em escalar tanto as grandes paredes quanto as pequenas (mas nem por isso menos difíceis) e seus sonhos não realizados. Roberta nasceu em junho de 1972 – tinha acabado de completar 34 anos, portanto, e começou a escalar em 1993, apenas dois anos depois de mim. O balé clássico ajudou Roberta a ser uma escaladora excepcional: “Foi o primeiro contato com a montanha e eu fiquei impressionada com as pessoas escalando naquele dia: o controle mental delas e a capacidade de enfrentar aquele desafio. Isto me estimulou a conhecer a atividade e o balé facilitou a minha adaptação ao alpinismo”, disse Roberta.
Em 1998, começou a fazer projetos pela Argentina, Chile e Brasil já com patrocínio e se formou no Curso de Escalada em Gelo ministrado pelo Clube Andino Bariloche, pelo conhecido alpinista argentino Sebastian de La Cruz. Em 1999 foi para a Patagônia,na Argentina, e tentou algumas escaladas sérias na região de El Chaltén, como agulha Mermoz (2.754m) por uma via nova e uma cordada feminina na agulha Guillaumet (2.593m), com a suíça Barbara Regli. Não chegou ao cume de nenhuma das duas agulhas, mas se tornou ‘rata’ da Patagônia, um dos lugares mais extremos da Terra para escalada em rocha, voltando no ano seguinte e escalando as agulhas Inominata, Media Luna e Cerro Solo, sendo a Media Luna a primeira ascensão feminina brasileira. No mesmo ano viajou por seis meses pelos EUA e destaca-se a subida dos 850 metros da via regular do Half Dome (graduação: 5.10C, A2 ou 5.12B), com o venezuelano José Pereyra, no Parque Nacional de Yosemite, em apenas 7 horas o ponto alto da viagem.
Em abril de 2001, repetiu a via Crazy Muzungus (graduação VI, A2+), no Garrafão, no Parque Nacional da Serra dos Órgãos, Rio de Janeiro, com Marius Bagnati, em três dias para vencer os 700 metros de parede. Neste mesmo ano, se tornou a primeira mulher a atravessar um abismo de 300 metros de altura por 10 de comprimento em cima de uma corda-bamba (slack line) no Rostrum, em Yosemite. A slack line é muito usada por alpinistas (a poucos centímetros do chão, é verdade!) para melhorar o equilíbrio e a concentração.
Em 2002 faz a primeira tentativa feminina brasileira de escalar o Fitz Roy (3.342m), na Patagônia Argentina. Não fez cume, mas fez muito, repetindo pela primeira vez em 20 anos a via Afanassief (graduação: V+, 7B, A2+ em 1.300 metros de desnível). Seu parceiro de escalada foi novamente o José Pereyra e ficaram a 300 metros do cume. Cinco dias depois, voltaram ao Fitz e tentaram a via Franco Argentina (graduação: VI, 7B, A2+). Abriram uma variante de 500 metros e ficaram a apenas 20 minutos do cume. Uma tempestade de neve os impediu de seguir adiante. Roberta ainda fez a agulha Saint Exupery (2.548m), via Chiaro di Luna (graduação: V+, 7C em 850 metros de parede).
Em 2003, sentiu o gostinho da altitude escalando o Vallecitos (5.500m) como aclimatação para o Aconcágua (6.962m), que subiu até o cume pela via normal. No mesmo ano, foi para a Espanha treinar com Cecilia Buil. O projeto? Abrir uma via nova na Groenlândia (Thumbnail), com aproximação de três dias em caiaque oceânico (80km). Abriram, em seis dias de escalada, a via Hidrofilia (graduação francesa: VI, 7A, A2+ em 1620 metros de parede, 31 enfiadas), a maior via aberta por mulheres no mundo e a primeira ascensão da montanha.
Em 2004, escalou em Cochamó, no Chile, com Karina Filgueiras, Dálio Zippin Neto e Maurício Tonto. Esta região possui paredes entre 500 e 1000 metros de altura e Roberta e Karina fizeram a primeira cordada feminina da região. Em fevereiro de 2006 escalou as agulhas Mermoz e Guillaumet, na Patagônia Argentina, novamente, em uma cordada com seu namorado americano Sean Leary, que estava com ela no dia do acidente, mas nada sofreu. Roberta vivia dos patrocínios que conseguia nos projetos que realizava escalando pelo mundo. Também fotografava e participava de filmes e documentários, como o da expedição à Groenlândia, que virou um belíssimo filme espanhol chamado Hidrofilia.
Sean Leary levou as cinzas de Roberta para o Brasil, algum tempo depois do acidente, e lançaram do cume do Morro do Anhangava, em Curitiba, Paraná, cidade natal de Roberta e a montanha onde ela começou a escalar. Que os ventos levem a sua paixão pelas montanhas a cada um de nós…
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