A praça é do povo assim como o céu é do condor, dizia o velho provérbio. Será que a praça, que hoje é gradeada e precisa ser fechada à noite, ainda é tão do povo como costumava ser? Não estou tão certo. Mas pelo menos o céu, lá na imensidão dos Andes, ainda é do condor.
Será?
O que pode ser mais típico e representativo dos Andes do que Machu Picchu? Desfiladeiros vertiginosos, florestas tropicais e rios caudalosos lá embaixo, índios peruanos em roupas coloridas, ruínas incas nos interrogando após um sono de quinhentos anos. A nenhum céu mais do que a esse pertence um condor. Machu Picchu representa a essência dos Andes, do que a humanidade percebe como sendo os Andes. Esta essência, claro, inclui os condores.
No entanto, eles não estão mais lá. Se você for a Machu Picchu, e como eu, vasculhar o céu, esperançosamente, à procura de um condor, você vai se decepcionar. Pergunte pelos condores, e vão lhe dizer que eles desapareceram por ali por volta do ano 2000. A causa da extinção aparentemente foi que os místicos que visitavam a famosa cidade perdida dos incas criaram um mercado para trajes cerimoniais que incluíam plumas de condor. Isso motivou uma intensa perseguição às aves, apesar de protegidas por lei. Há uns poucos anos, você ainda poderia ver a cena majestosa do vôo do condor sobre as antigas ruínas e os imensos desfiladeiros.
Hoje, esta visão está perdida no tempo. Caminha para ser companheira, no esquecimento, daqueles que viveram suas alegrias e suas dores naquelas casas. Minha sensação de perda, de algo incompleto e mais pobre, foi imensa, quase violenta. Uma sensação impossível de se descrever, mas possível – e essa é minha esperança – de se compartilhar.
Espaço limitado
A essa altura, cabe lembrar que os condores andinos, como um todo, não estão extintos. Mesmo no Peru não estão. No entanto, o que eu não sabia é que hoje só há um lugar, em todo o Peru, onde ainda é possível ver condores. É um cânion isolado, com pouca interferência humana, perto de Arequipa, a segunda maior cidade do país. Os condores podem ser vistos em excursões meticulosamente organizadas. Os turistas acordam de madrugada para poder estar empoleirados nas rochas certas antes do nascer do sol. Um punhado de condores ainda resta por lá, e eles devidamente levantam vôo e pairam sobre os desfiladeiros ao alvorecer, sendo recebidos com suspiros de admiração e espocar de flashes.
Então, eles ainda existem. Mas ver um condor, espontaneamente, sem que seja preciso fazer uma operação de busca para encontrá-lo, isso não existe mais. A minha ilusão, que também podia ser sua, de que condores ainda seriam um elemento mais ou menos comum, trivial, da paisagem andina, essa está irremediavelmente perdida. O maior clássico da música tradicional peruana, popularizado por Simon e Garfunkel, está desatualizado. No céu sobre quase todos os Andes, el condor no pasa más.
O condor de Machu Picchu, como de tantos outros lugares, é um representante de um fenômeno que é característico do mundo moderno, mas cuja importância subestimamos: a extinção local.
Extinção local de espécies
O zoólogo mexicano Gerardo Ceballos e o ecólogo norte-americano Paul Ehrlich publicaram em 2002 na Science – a mais prestigiosa revista científica do mundo – um elegante artigo intitulado Mammal population losses and the extinction crisis (“Perdas de populações de mamíferos e a crise de extinção”). Eles mapearam os locais, no mundo, onde 173 espécies de mamíferos eram encontradas no século XIX e onde as mesmas espécies são encontradas hoje. Essas são espécies para as quais se tem bons dados sobre sua distribuição geográfica nos dois momentos. Representando quase 4% do total global de 4650 espécies de mamíferos, são em sua maioria espécies de grande porte, para as quais dados deste tipo são mais disponíveis.
Ceballos e Ehrlich dividiram o mundo em quadrados de dois graus de latitude por dois graus de longitude, e simplesmente verificaram, para cada espécie, em quantos quadradinhos ela era encontrada há duzentos anos, e em quantos ela ainda é encontrada hoje. Como geralmente acontece em ciência, a elegância vem da simplicidade.
As conclusões foram perturbadoras. Quase três quartos das espécies (72%) já se extinguiram em mais de metade da sua área de ocorrência original. Em média, cada espécie perdeu 68% de sua área de distribuição. Essa porcentagem alcança em média 83% para os mamíferos asiáticos, 78% para os australianos, ou 72% para os europeus. O condor (que, claro, não é um mamífero), está longe de ser uma exceção. O sumiço da maior parte de sua antiga distribuição geográfica é uma característica de muitas espécies em nosso mundo moderno.
Ecossistemas reduzidos
Isso tudo se refere a quanto cada espécie perdeu, mas ainda mais preocupante é o outro lado da moeda: quanto cada ecossistema já perdeu. Se cada vez uma espécie existe em menos lugares, é tristemente óbvio que em cada lugar deve haver cada vez menos espécies. Assim é. No sudeste da Ásia, por exemplo, 57% dos quadrados de dois por dois graus tinham perdido entre 75 e 100% de suas espécies. Quer dizer, em muitos lugares já temos faunas extremamente depauperadas.
Se esses números já lhe parecem preocupantes, caro leitor, o pior ainda está por vir. É que a análise de Ceballos e Ehrlich claramente é muito conservadora. Afinal, dois por dois graus são quadrados gigantescos. Por causa da curvatura do planeta, seus tamanhos são variáveis, de acordo com as latitudes em questão. Mas podemos dizer que em média cada quadrado cobre uma área de cerca de 30 mil km2. Ora, uma espécie é registrada como sobrevivente em um quadrado se ela ocorre em uma única localidade que seja dentro de uma área tão imensa. No entanto, é muito provável que em várias outras localidades dentro do mesmo quadrado ela já tenha desaparecido. Ou seja, se Ceballos e Ehrlich tivessem usado quadrados menores, os números sem dúvida seriam muito piores.
Trocando em miúdos, o que isso tudo quer dizer para um leitor não especialista, mas preocupado com conservação da natureza?
Nada típicas
Um dos argumentos prediletos dos que dizem que as preocupações dos conservacionistas são exageradas é que há cada vez mais espécies consideradas ameaçadas de extinção, mas até agora relativamente poucas espécies parecem ter sido extintas pelo homem. Claro que isso é uma visão errônea, que não leva em conta as espécies extintas pelo homem na pré-história e na história, que tendem a ser ignoradas em nossa cultura. Também não leva em conta espécies pouco conhecidas e conspícuas, como de insetos, por exemplo, que certamente já extinguimos por destruição de seus hábitats, antes mesmo de serem descritas pela ciência.
Mas vamos considerar por um momento, apenas para efeito de discussão, que o homem tivesse de fato extinto poucas espécies até agora. Bom, isso tudo se refere a extinções globais. Uma extinção global ocorre quando uma espécie desaparece de todo o planeta. No entanto, os números de espécies já extintas não dizem nada sobre a quantidade de extinções locais (ou “perda de populações” no título de Ceballos e Ehrlich). Extinções locais são eventos nos em que uma espécie é perdida num determinado lugar. Ceballos e Ehrlich mostraram que extinções locais são extremamente comuns, acontecem aos montes no mundo de hoje. Muitas espécies ainda não estão extintas, mas já sumiram da grande maioria dos lugares onde antes viviam.
Vamos agora mudar o foco das espécies para os ecossistemas. O que isso quer dizer? Bom, onça, anta, queixadas e pacas são espécies típicas da Mata Atlântica, certo? Errado. Não mais. A esmagadora maioria das – poucas – localidades onde ainda há Mata Atlântica significativa não tem mais onças, antas, queixadas ou pacas. No caso da onça, uma ex-aluna minha, Peônia de Brito Pereira, levantou sua distribuição geográfica e concluiu que não há mais do que nove lugares na Mata Atlântica onde ainda há onças – quase todos em reservas de proteção integral.
Antas, pacas e queixadas não estão muito diferentes disso. Você pode conhecer uma bela área de Mata Atlântica e achar que esses bichos estão lá, mas é mais provável que não estejam. Eles podem ter sido vítimas de populações pequenas demais para persistir em matas isoladas por desmatamento. Podem também ter sido vítimas da caça, uma tragédia cotidiana e silenciosa. Ao contrário do que diz nosso hino nacional, nossos bosques não tem mais vida.
Conseqüências
Uma Mata Atlântica, sem esses bichos, não fica apenas mais pobre. Ela deixa de funcionar como Mata Atlântica. Pacas, por exemplo, alvos cobiçados dos caçadores, são excelentes dispersores de sementes. Carregam sementes das grandes árvores, enterram-nas, por vezes as esquecem. As sementes germinam e originam as novas árvores. Sem pacas e outros dispersores, muitas espécies de grandes árvores podem estar condenadas. As onças são predadores de topo, que têm um importante efeito de regular populações de várias outras espécies, impedindo que algumas delas se tornem monopolistas e, portanto, ajudando a manter biodiversidade.
Um ecossistema, hoje se sabe, é muito mais que uma coleção de árvores. Nele funcionam cotidianamente uma série de interações ecológicas, que fazem, tanto ou mais do que as espécies que estão lá, a identidade daquele ecossistema. Com a quebra desses processos, um ecossistema está condenado a seguir um caminho trágico de gradual degradação. Como disse o grande ecólogo Daniel Janzen, “o que escapa aos olhos é uma forma muito mais danosa de extinção: a extinção das interações ecológicas”.
Podemos pensar que a ausência do condor no céu andino seja apenas mais um elo que se perdeu em nossa ligação com um passado, cada vez mais distante, de um mundo ambientalmente mais saudável. Mas ela é muito mais que isso: simboliza, mais que tudo, quanto futuro está sendo perdido.
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