No dia 24 de junho, um pescador de 23 anos foi morto por uma onça-pintada, quando dormia em uma barraca, na beira do Rio Paraguai, nas proximidades da Estação Ecológica de Taiamã, no Pantanal. Ele estava acampado há vários dias no local, juntamente com seu pai, e juntos coletavam iscas para vender a pescadores-turistas, alojados em barcos-hotéis ancorados na região. Pelo relato de seu pai, o rapaz havia ficado dormindo no acampamento, enquanto ele saia para catar iscas, por volta das 19 h. Quando o pai retornou ao acampamento, cerca de 30 minutos depois, já escuro, chamou pelo filho, sem obter resposta. Ouvindo um barulho, direcionou sua lanterna para o local, e viu uma onça-pintada arrastando o corpo já inerte de seu filho. Como seus gritos não surtiram efeito no animal, o pai chamou por socorro pelo rádio portátil e cerca de 10 minutos depois, chegaram várias pessoas que se encontravam próximas e escutaram o pedido pelo rádio.
Fazendo bastante barulho, seguiram o rastro de sangue até encontrarem o corpo do rapaz, já morto e com ferimentos profundos, deixados por dentes e unhas do animal. Imediatamente, foi providenciado transporte para levar o corpo para Cáceres, onde ele foi necropsiado pelo legista Dr. Manoel Francisco de Campos Neto. Segundo depoimento do legista, em seus mais de 20 anos de vivência na região, ele havia visto vários casos de acidentes com piranhas e jacarés, mas nunca havia visto acidentes causados por onças-pintadas. Eu conversei sobre o caso com o biólogo Rogério Cunha de Paula, analista ambiental do Centro Nacional de Pesquisa para a Conservação de Predadores Naturais/CENAP (hoje pertencendo ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade , ICMBio), designado para atender à ocorrência, e com o chefe do centro, o veterinário Ronaldo Gonçalves Morato.
O centro, criado em 1994 como um centro especializado do IBAMA, é responsável pelo manejo e conservação dos mamíferos carnívoros do Brasil, que incluem desde os pequenos carnívoros (cachorros-do-mato, furões, iraras, quatis, etc.), passando pelos médios (jaguatiricas, lontras), até os grandes (lobo-guará, ariranhas, e as onças pardas e pintadas, essa última incluindo também a onça-preta, que é a mesma espécie). Esse caso chama a atenção por vários motivos. Primeiro, porque embora ataques a humanos por tigres, leopardos e leões ainda sejam relativamente comuns em países como Índia, Nepal, Rússia, Quênia e Tanzânia, ataques não-provocados de onças-pintadas (jaguar em Inglês ou tigre, em Espanhol) a pessoas são extremamente raros. A onça-pintada é o maior felino das Américas, sendo o terceiro em tamanho no mundo, perdendo apenas para o tigre e o leão, respectivamente.
Defesa de território
Na verdade, são conhecidos vários casos de ataques de pintadas, mas quase que exclusivamente em situações em que o animal estava sendo caçado e que, geralmente mal-ferido, se volta contra o caçador. Entretanto, como qualquer animal, desde o mais dócil, se ferido ou acuado pode contra-atacar para se defender, esses casos não podem ser usados como parâmetro para estatísticas. Em segundo lugar, a violência aparente do ataque e a ousadia do animal por ter retornado ao acampamento, depois do resgate do corpo do rapaz, e destruído várias coisas (entre elas, as barracas, recipientes para combustível, e latas de inseticida em spray), demonstram um comportamento extremamente atípico, aberrante, para a espécie. Segundo Rogério, que visitou o local e conversou com várias pessoas envolvidas na situação, a explicação mais plausível parece ser a de defesa do animal do seu território, por ter sido invadido pela presença do acampamento e das pessoas nele. Isso é corroborado por terem sido encontradas várias fezes de pintadas, de diferentes idades no local do acampamento, indicando um uso intenso da área, possivelmente por esse animal.
É sabido que as onças usam as fezes como marcação química, de efeito visual e olfativo, como um cartão de visitas ou um aviso para outros indivíduos da mesma espécie, significando que a área já tem dono. O outro fator, extremamente importante, é decorrente de um hábito que tem se difundido bastante no Pantanal, de cevar as onças com algum tipo de alimento, geralmente peixes, para que elas se habituem com a presença de pessoas e a re-utilizar determinados lugares repetidamente. Também é usado atrair animais, utilizando instrumentos que imitam a vocalização da espécie (chamada esturro). O pessoal local faz isso para depois levar turistas que pagam, às vezes muito bem, pela oportunidade de ver e fotografar o predador máximo desse ecossistema. O número de pousadas que em suas propagandas fazem referência à onça-pintada como um fator para atrair público, é um indicativo da popularidade da espécie.
Por outro lado, um estudo recente indicou uma recuperação significativa da espécie no Pantanal, comparada ao estado das populações ao final da década de 70, quando foram feitos os primeiros estudos sobre a espécie. O Cenap ainda está coletando informações sobre o caso e trabalhando com os atores envolvidos, a nível local e regional, para apurar as circunstâncias do ataque e descobrir suas causas, para poder melhor prevenir situações semelhantes. Segundo Morato, “foram realizadas reuniões com moradores locais, guias de turismo e pescadores. Para atingir os turistas, estamos trabalhando junto a mídia escrita e falada buscando informar aos que querem visitar o Pantanal que atrair onças pintadas pode ser arriscado, além de alterar o comportamento dos animais”.
Conclusões
Segundo o relatório oficial sobre o caso, algumas das propostas de ação indicadas são:
- Mudança de comportamento de turistas e pescadores para distanciamento e perda de habituação das onças;
- desestimular o uso das margens do rio para acampamentos (substituição dos acampamentos por uso de barcos-dormitórios);
- se absolutamente necessário o uso de acampamento, tomar medidas efetivas de segurança, como cercas, luzes, e vigilância, para diminuir a probabilidade de ataques, desencorajando a aproximação de onças no local;
- uma investigação sobre demografia e ecologia da onça-pintada, em pontos críticos do Pantanal;
- monitoramento no local do ataque através de armadilhas-fotográficas, para um levantamento dos animais residentes na área e a possível identificação do animal responsável, para remoção.
Ainda segundo Morato, “é preciso enfatizar que esse não é um comportamental normal da onça pintada e que, portanto, as pessoas não devem entrar em pânico nem tampouco saírem caçando onças indiscriminadamente. Nosso objetivo é buscar uma convivência harmoniosa entre a natureza e o homem, respeitando as características sociais e culturais de cada região”.
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