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A apelação de uma contaminação

Colunista recomenda leitura de romance baseado em caso jurídico para o fim do ano. A ficção ensina como é complexo comprovar a culpa em casos de contaminação do meio ambiente.

22 de dezembro de 2008 · 16 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

O obscuro e fascinante mundo do litígio judicial tem gerado thrillers capazes de prender a atenção de platéias cinematográficas e leitores vorazes. Normalmente, as ações se passam em tribunais americanos e tratam de crimes contra a vida humana, sendo muito amplo o leque de artigos dos códigos penais que tem servido de fio condutor para as tramas narrativas. Recentemente foi lançado o livro O Recurso de John Grisham, cujo título original é The appeal (A apelação), inexplicavelmente traduzido para o recurso.  A apelação, tanto lá como cá é um recurso específico e não genérico como o título do livro pretende sugerir. Contudo, este é um aspecto irrelevante para o público leitor.  O importante a ressaltar é que o livro ingressa na seara dos danos pessoais (Tort Law), realçando  o aspecto de danos pessoais causados por contaminação hídrica, seguindo a tradição de  A Civil Action de Jonathan Harr que trata de uma história real, levada às telas por John Travolta  e cuja versão para o Português é por mim desconhecida.  Tomo a liberdade de sugerir que alguma editora promova a tradução da obra, pois ela é muito importante dentro do contexto do ensino jurídico norte-americano e, certamente, poderá ser útil no Brasil.

O cerne da trama é o sistema judiciário do estado do Mississippi e a elegibilidade – por voto popular – dos juízes da Suprema Corte do Estado.  De acordo com o enredo do romance, a Corte é muito dividida quando se trata do julgamento de casos envolvendo grandes corporações e danos pessoais. O fim do mandato de um dos membros do tribunal abre o período eleitoral e a possibilidade de que um novo magistrado venha a compor uma maioria conservadora e capaz de reverter julgamentos de primeira instância que sejam considerados “nocivos”.   Não temos em nosso sistema judiciário a figura do magistrado eleito, nem para a primeira, nem para a segunda instância. Todavia, a nossa Constituição consagra a figura do “quinto constitucional” que é um mecanismo mediante o qual os tribunais de segunda instância e os tribunais superiores têm um quinto de seus cargos de magistrados providos por indicação do Chefe do Executivo, a partir de listas encaminhadas pelo Ministério Público e pela Ordem dos Advogados do Brasil aos tribunais que as reduzem por votação e encaminham a nova lista ao executivo que, finalmente, indicará o novo juiz. O mecanismo é de origem getulista e tem passado incólume pelos mais diferentes regimes  e Constituições brasileiras. Diz-se que é uma forma de “arejar” os tribunais com visões distintas daquelas que, normalmente, os magistrados profissionais possuem.  Há uma crítica muito forte ao mecanismo por parte dos chamados magistrados de carreira, isto é, aqueles que ingressam na magistratura pela via do concurso público de provas e títulos. Desconheço se  as indicações do “quinto” se  processam tal como no caso relatado por O Recurso. Acredito que não, muito embora a política em tais casos seja muito presente. Provavelmente mais do que seria desejável.

É evidente que, ao se atribuir ao Poder Judiciário uma ampla competência para a revisão dos atos administrativos, a sua função política é implícita.  Aliás, qualquer poder do estado é, necessariamente, político.   O Judiciário, contudo, tem um caráter técnico que não pode ser afastado; sobretudo quando consideramos que o nosso sistema legal é baseado na lei escrita e não meramente em precedentes judiciais, como é o caso da Tort Law norte-americana. Restringir ao mínimo indispensável à discricionariedade judicial é um elemento fundamental para o regime democrático.

O autor sublinha de forma caustica algumas questões que são extremamente relevantes quando se trata de danos ambientais e algumas práticas que, se não são majoritárias, ainda ocorrem com muita freqüência e devem ser denunciadas vigorosamente.  “Bem, para início de conversa, nossa empresa montou uma instalação pesticida em Podunk, Mississippi, porque a terra e a mão-de-obra eram baratas, depois passamos os trinta anos seguintes jogando lixo químico no solo e nos rios ilegalmente, claro, e contaminamos a água potável até que tivesse gosto de leite estragado, que apesar de terrível ainda não é a pior parte, porque depois as pessoas começaram a morrer de câncer e leucemia. Foi isso, prezado patrãozinho e grande líder corporativo, foi isso que deu errado. Foi isso também o que Ratzlaff pensou e teve vontade de dizer, mas como estimava muito seu emprego, ficou quieto”  O caso é típico de um delito corporativo, pois a ação é continuada, sistemática e com o claro sentido de obtenção de lucros além daqueles que, legitimamente, poderiam ser auferidos. A hipotética empresa, deliberadamente e com o conhecimento de seus diretores praticou ilícitos. Aqui é necessário que se faça um parêntese, pois as empresas não agem independentemente da vontade de seus dirigentes. Há, entretanto, que se observar que o simples fato de que alguém seja o diretor de uma empresa delituosa não é suficiente para que essa pessoa seja considerada culpada de crime. O elemento subjetivo consistente em fraudar, obter lucros irreais e prejudicar terceiros é fundamental para que o tipo penal se perfaça.  No regime brasileiro, mesmo o crime corporativo demanda uma conduta subjetiva, o que já torna a situação bastante complexa para a persecução criminal.

Ao tratar da sustentação oral do apelo, Grisham aponta uma importante questão, com o costumeiro espírito mordaz, que é a produção de prova complexa. Aqui vale a pena recordar que no  sistema americano cabe ás partes arcar inteiramente com o custo da produção das provas.  Casos de poluição exigem provas técnicas complexas e caras que muitas vezes não podem ser produzidas de forma cabal.  No campo penal, como sabemos, a justiça norte-americana exige que a prova seja produzida “além de uma dúvida razoável”.1beyond a reasonable doubt adj. part of jury instructions in all criminal trials, in which the jurors are told that they can only find the defendant guilty if they are convinced “beyond a reason- able doubt” of his or her guilt. Sometimes referred to as “to a moral certainty,” the phrase is fraught with uncertainty as to meaning, but try: “you better be damned sure.” By comparison it is meant to be a tougher standard than “preponderance of the evidence,” used as a test to give judgment to a plaintiff in a civil (non-criminal) case”.

Vejamos o texto: “Cada parte tinha permissão para falar durante vinte minutos, e um cronômetro digital marcava os segundos. Um meirinho deu os avisos. Não se toleravam advogados que se estendiam além do tempo. Jared Kurtin falou primeiro e logo chegou ao cerne da apelação de seu cliente. A Krane sempre argumentou que não havia nenhuma ligação razoável e crível entre o BCL , e o cartolix encontrados na sua propriedade e os casos de câncer que atingiam tantos moradores de Bowmore. A Krane nunca admitiria que aconteceu tal despejo de produtos tóxicos, mas, hipoteticamente falando, mesmo se fosse provado que o lixo tóxico penetrou no solo e contaminou a água, ainda assim não havia “nenhuma conexão médica causal” entre os produtos químicos e os casos de câncer. Ah, certo, havia muita especulação. Vejamos o índice de câncer em Bowmore. Vejam quantos casos.  Mas os índices de câncer variam muito de região para região. E, mais importante ainda, existem milhares de substâncias cancerígenas no ar, na comida, na bebida, nos produtos de limpeza, e a lista continua. Quem pode dizer que o câncer que matou o pequeno Chad veio da água e não do ar? Como podemos excluir as substâncias cancerígenas encontradas nos alimentos processados que a sra. Baker admitiu que comeram durante anos? É impossível”. (GRISHAM, 2008: 330)              

O texto ficcional acima demonstra, com muita argúcia, a dificuldade para a produção de prova judicial em questões relativas a poluição, contaminação e proteção do meio ambiente e da saúde  humana. Como sabemos, em regra, o ônus da prova recai sobre o autor das ações judiciais. Na concorrência de muitas causas, ou alegadas causas, para a ocorrência de um dano, cria-se uma situação muito complexa para que se demonstre qual ou quais das concausas foi eficiente para a manifestação do prejuízo cuja compensação o Autor da demanda reivindica.  Aqui no Brasil, o nosso sistema é mais evoluído, na medida em que, conforme as circunstâncias, definidas na base do caso-a-caso, podemos admitir a inversão do ônus da prova, o que carrearia para o réu a obrigação de provar que a sua conduta não deu origem aos danos reivindicados pelos autores. Por outro lado, as indenizações que ordinariamente são deferidas pelos tribunais brasileiros atingem valores muito menores do que aqueles alcançados nas cortes norte-americanas. Os chamados “danos punitivos” ainda estão muito distantes de nossa realidade judiciária.

Recomendo fortemente a leitura de O Recurso,


Bom Natal


1 –  http://dictionary.law.com/default2.asp?selected=59, capturado aos 11.12.2008

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