A Guatemala, berço da civilização Maia – a mais avançada civilização pré-hispânica – é o país mais populoso e com economia mais dinâmica em toda a América Central. Também detém uma das maiores parcelas do patrimônio ambiental do istmo. Cerca de 28% de seus 109.000 km2 encontram-se protegidos em 162 unidades de conservação distribuídas em 15 categorias de manejo. Trata-se de um Sistema de Áreas Protegidas um pouco confuso, pois tem atribuições de proteger a natureza de maneira integrada com centenas de sítios arqueológicos maias, escondidos nas profundezas das selvas do país. Por isso o Sistema engloba alguns parques nacionais administrados pelo Conselho Nacional de Áreas Protegidas (Conap), outros manejados pelo Instituto Nacional de Bosques, mais alguns sob a jurisdição do Instituto de Antropologia e História e um punhado de biótopos (categoria similar à nossa Reserva Biológica) sob a égide da Universidade de São Carlos, entre outros órgãos. Como era de se esperar, o sistema tem seus altos e baixos. Alguns parques estão muito bem manejados, outros nem tanto.
Há áreas protegidas interessantes em toda a Guatemala, como o Parque Nacional Vulcão Pacaya, cujas lavas incandescentes são capazes de encantar até o mais blasé dos viajantes, e o Parque Nacional de Rio Dulce que tem paisagens de cair o queixo. Assim como no Brasil, contudo, a maior parte das áreas protegidas guatemaltecas encontra-se no norte do país, na selva tropical de El Petén que abrange também Belize e o sul do México. Ali estão os Parques Nacionais de Tikal, El Mirador, Laguna del Tigre e Yaxha Nakum Naranjo, que formam um mosaico garantindo uma extensa área protegida na fronteira com o México e Belize.
Protegida pelo menos no papel. No terreno a coisa é um pouco mais complicada. Carla Molina, presidente de uma ONG cujo objetivo é melhorar as condições de trabalho dos guardas-parques de El Petén, contou-me que as unidades de conservação têm sido usadas por narcotraficantes colombianos e guatemaltecos, que abriram diversas pequenas pistas de pouso clandestinas na selva, permitindo assim que pequenas avionetas carregadas de cocaína possam fazer escalas técnicas na América Central, a caminho dos Estados Unidos, seu destino final. Carla Molina vai mais longe. Diz ter provas de que os narcotraficantes abriram uma série de trilhas clandestinas que atravessam a fronteira entre a Guatemala e o México em meio à selva despoliciada e que estas picadas estariam sendo usadas por traficantes a pé. Ainda segundo a mesma fonte, o subsolo das três unidades de conservação seria rico em petróleo o que estaria acarretando um movimento bem orquestrado de sua invasão. Molina acredita que famílias ricas guatemaltecas estejam usando laranjas para financiar a migração de sem-terras do sul do país para a região fronteiriça com o México. O objetivo seria fomentar a grilagem e o desmatamento dos Parques, acarretando uma grande pressão popular para sua desafetação e abrindo caminho para a prospecção petrolífera.
Com ou sem petróleo, o fato é que os sem-terra já são um problema. Longe das selvas de El Petén, o Parque Nacional de Rio Dulce e o Biótopo Chocon Machacas que lhe é adjacente têm tido enfrentamentos com eles. No início do ano um grupo de sem-terras abordou uma patrulha ambiental, bateu nos fiscais e roubou a lancha que utilizavam para retirar as redes de pesca que impediam a movimentação dos peixes-boi, para cuja proteção o Biótopo foi estabelecido. Semanas depois, a sede de Chocon Machacas foi invadida, seus equipamentos quebrados e as paredes do Centro de Visitantes pixadas. Um dos grafites tem uma mensagem inequívoca: “fuera ambientalistas”.
Assim como no Brasil os defensores do meio ambiente na Guatemala têm enfrentado uma luta inglória. Santiago Billy que foi Diretor de Patrimônio Natural da Presidência da República guatemalteca no fim da década de 1980, depois trabalhou vários anos como diretor de Fauna e Flora do Ministério da Cultura e, antes de se aposentar, foi coordenador de projetos da Conservation International no país, conta que viu a floresta de Petén recuar em mais de 50% nesse período: “virou pasto”. Santiago explica que o resto da selva de Petén só resistiu por que o país enfrentou anos de guerra civil: “o norte do país estava ocupado militarmente e a população vivia amedrontada. Só por isso o Governo conseguiu criar um sistema de áreas protegidas tão amplo. Hoje estabelecer um sistema dessa magnitude seria impossível”.
Apesar da realidade dura, Santiago é otimista. Acredita que o novo Governo está disposto a preservar o que ainda resta de pé. Segundo ele há um projeto ambicioso de não criar nenhum incentivo fiscal nem sócio-econômico no norte do país, desestimulando assim a migração interna na Guatemala. Além disso, Santiago vê uma maior coordenação entre os diversos órgãos e ministérios encarregados de cuidar do meio ambiente na Guatemala. “Hoje há uma cooperação entre unidades de conservação contíguas, coordenação no planejamento e na fiscalização e padronização de manejo. As coisas estão no caminho certo.”
A realidade observada no Parque Nacional de Yaxha Nakum Naranjo corrobora parcialmente o pensamento de Santiago. Ali os manejos de diversos sítios arqueológicos maias e de 37.160 hectares de selva bem conservada estão sendo feitos conjuntamente pelo Conselho Nacional de Áreas Protegidas e pelo Instituto de Antropologia e História de Guatemala. O Exército guatemalteco também está envolvido. Um destacamento de 25 praças e dois oficiais da Primeira Brigada de Infantaria estão permanentemente aquartelados no Parque. Segundo o capitão Chonay, comandante do pelotão, seus homens patrulham a área protegida, coibindo invasões, caça e corte de madeira. Além disso, os militares, se comunicam com as forças de segurança belizenhas de modo a trocar informações sobre atividades ilícitas na fronteira e coordenar as atividades para que não haja descontinuidade na fiscalização.
Mas nem tudo são flores. Se o exército forneceu a tropa, o Conap que deveria prover equipamentos não tem feito sua parte. Em abril, quando o autor visitou Yaxha, patrulhas fluviais estavam supensas porque o órgão ambiental não tinha entregue coletes salva-vidas aos soldados. Tampouco o Instituto de Antropologia e História da Guatemala parece entender que as atribuições de um Parque Nacional implicam mais do que proteger as ruínas maias (fantásticas aliás) que alberga. Nakum está sendo restaurada por uma turma de quase 100 artesãos. O trabalho é coordenado por alguns arqueólogos que parecem apaixonados pelo que fazem e está ficando excelente. O problema é que essa gente está toda alojada em albergues coletivos provisórios, erguidos nas cercanias das pirâmides e, na hora de comer, o combustível utilizado na cozinha é a lenha (são dezenas de fornos). Ainda assim, Santiago Billy minimiza o contra-senso. Garante que os trabalhadores só usam galhos secos…
Pode ser que Santiago esteja sendo demasiado otimista, mas a verdade é que os atores envolvidos são unânimes em dizer que a situação está melhor. Com efeito, O Plano Regional para as Áreas Protegidas da Região Fronteiriça entre México, Belize e Guatemala, preparado em 2006 pela Nature Conservancy, parece estar saindo do papel. Entre outras coisas ele admite que “um dos maiores desafios da região é proteger o meio ambiente em uma área que é considerada uma das de maior densidade de sítios arqueológicos no mundo”. Entre outras medidas, o plano prevê que até 2015 o patrimônio cultural e o patrimônio natural sejam manejados de forma integrada nas quinze principais unidades de conservação da região. Nesse sentido, o pessoal de todos os órgãos envolvidos receberá treinamento em planejamento e manejo integrado de ambos os patrimônios, que terão suas diretrizes incorporadas aos respectivos planos de manejo; coordenações nacionais de manejo integrado deverão ser criadas, reunindo o pessoal dos diversos órgãos culturais e ambientais envolvidos e mecanismos de divisão equitativa de recursos advindos da visitação deverão ser estabelecidos.
É possível que dê certo, afinal se o Capitão Chonay contou que a situação de parques pouco visitados como Laguna del Tigre é crítica, tendo sido registrados até sequestros de pessoal do CONAP; em áreas de grande visitação, como o Parque Nacional de Tikal, o manejo e a conservação têm uma qualidade invejável. Ali os recursos advindos da visitação a uma cidade milenar que ocupava 1.600 hectares proporcionam a conservação de um Parque Nacional com 55 mil hectares. Mesmo em uma breve visita às ruínas de Tikal já se tem uma bela noção do que é a floresta do Petén. Mesmo junto às pirâmides pré-colombianas há uma profusão de fauna: macacos, tucanos, araras, quatis e cotias são visões corriqueiras. Os mais afortunados conseguem espreitar até mesmo onças pintadas, que volta e meia cruzam a estrada que leva à antiga metrópole maia. Na selva de Petén tanto a onça parda quanto a pintada estão em situação ecologicamente saudável e em quantidades viáveis para sua reprodução.
Ali a natureza mostra toda sua força. Em seu auge, por volta do ano 500 da Era Cristã, Tikal ocupava 30 km2 e tinha cerca de 100 mil habitantes, que viviam em 4.500 prédios. Hoje, a maioria desses edifícios está invisível ao olho leigo. Não passam de pequenos montes cobertos por frondosas figueiras, moitas e outras formas de vegetação tropical. Esses vestígios de civilização milenar precisam ser escavados para revelar todo seu esplendor. O desafio é levar essa tarefa a cabo de maneira a valorizar o patrimônio cultural, sem com isso comprometer a saúde de um dos ecossistemas mais bem preservados de toda a América. O resultado do processo vai revelar se meio ambiente também é cultura.
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