Se a medida da distância for o noticiário, o Brasil passou a semana muito mais perto de Nova York, onde a ONU fez um tímido ensaio geral para a conferência do clima em Copenhagen, que de Curitiba, onde rolava longe das manchetes o VI Congresso Brasileiro de Unidades de Conservação, da Fundação O Boticário.
Com isso perdem informações vitais até para a reconciliação de sua política externa com a agenda internacional da desordem climática, que podem ser recuperadas, pelo menos em grande parte, aqui mesmo neste site. Mas é urgete ouvir o que o historiador José Augusto Drummond contou, na segunda-feira, a um auditório com 1.200 pessoas, sobre a choradeira dos agricultores contra o despropósito das áreas protegidas. Porque esse é um assunto do dia a dia que ameaça amanhecer um belo dia encravado de uma vez por todas no futuro dos brasileiros.
Terra de sobra
Drummond coordena o Centro de Desenvolvimento Sustentatável da Universidade de Brasília. É um “consumidor” declarado de parques nacionais. Quer dizer, alguém que os visita regularmente. E por isso sabe, com base na experiência própria, que eles estão longe de ser um pedaço perdido do território nacional, como muita gente boa pensa ou pelo menos anda dizendo o ministro da Agricultura Reinhold Stephanes.
Stephanes toca há tempos uma campanha oficial de desobediência civil ao Código Florestal, papel certamente impensável num governo menos anárquico que o do presidente Lula. Já disse, entre outras apostas, que os agricultores no Brasil só conseguem produzir porque desobedecem ostensivamente essa lei de 1965, segunda versão de um regulamento ambiental de uso da terra que o país discute sem aplicar desde o começo do século passado. Só a indigestão de escândalos e gafes políticas pode explicar como a conspiração contra uma lei vigente por um ministro em exercício passa pela opinião pública como debate normal.
Se fosse normal, o ministro Stephanes não estaria na campanha que o governador André Puccinelli abriu esta semana contra o zoneamento proposto pelo Ministério do Meio Ambiente para conter os canaviais que avançam sobre o Pantanal Matogrossense. Puccinelli declarou que, se o ministro Carlos Minc pisasse no Mato Grosso do Sul, “iria correr atrás dele e estuprar em praça pública”.
Mas, felizmente, Stephanes não tem a seu lado só os Puccinellis da vida. Ele também se apoia em dados estatísticos que, em si, parecem sérios, senão incontroversos. Vêm carimbados por monitoramento de satélite. E trazem o selo respeitável da Embrapa. E isso merece ser discutido.
Dados da Embrapa
Faz tempo que esses dados circulam pelo país como verdade estabelecida, como tudo no Brasil que trazem números e percetagens como atestados de pedigree acadêmico. Mas Drummond mostrou em Curitiba que eles não passam da última versão de uma antiquíssima conversa fiada, que balança o berço esplêndido desde que desembarcou aqui com os europeus. No Novo Mundo, eles aproveitaram a fartura aparentemente inexaurível de terras virgens para reabilitar tecnologias neolíticas de agricultura.
Ou, mais precisamente, rebrotou em nosso clima um tipo de agricultura que já estava para lá de caduca na Europa, depois de devastar até a exaustão a orla do Mediterrâneo nos primódios da Idade do Bronze. Transplantada para este lado do Atlântico, ela cruzou com a coivara indígena para gerar uma política fundiária que, antes de mais nada, pretendia ocupar o máximo de espaço com o mínimo de imigrantes. E está aí até hoje, como o popular fogo no mato.
Na colonia, estorricar o solo depressa era um meio de furar a fila interminável dos candidatos a sesmarias. Terra esgotada era credencial para perpetuar o direito de queimar florestas nativas. O Brasil foi ocupado por fazendeiros que, segundo Sérgio Buarque de Hollanda, “mineravam” a terra, até exaurir seus recursos. Foi assim que, no século 19, os cafezais e outras culturas de exportação consumiram 25 mil quilômetros quadrados de mata atlântica só na serra fluminense, produzindo riquezas efêmeras e uma duradoura falta d’água na capital do império, que só melhorou com o reflorestamento das encostas no Alto da Boa Vista.
Esta história, Drummond conta muito bem contada em Devastação e Preservação Ambiental no Rio de Janeiro. Trata-se de desses grandes livros, de leitura indispensável, que infelizmente não vingaram no Brasil. Se mais brasileiros o lessem, talvez o ministro Stephanes não dissesse com tanta desenvoltura o que diz. Porque a história depõe contra seus argumentos. Como os sesmeiros portugueses, ele prega o atraso em nome do progresso. Lastreia-se em números gordos, até impressionantes, que parecer falar por si. Em parte porque foram com terras indígenas, quilombos e outras categorias frouxas de conservação, para dar a impressão de que o país é mais pródigo em áreas protegidas do que, cada vez menos, consegue ser, apesar dos milhões de hectares que se acrescentaram nos últimos anos ao escore da política ambiental.
Drummond botou os números do ministro em seu devido lugar – má companhia da depredação colonial. Para tanto, nem precisou desmentir as contas, pelas quais, juntando tudo, sobrariam menos de 30% para a agricultura brasileira. Ou mesmo “26%”. Usou-as para lembrar que elas podem afirmar o contrário do que parecem estar dizendo.
Para isso, discutiu o que vêm a ser mesmo, na prática, 26% de 8,5 milhões de quilômetros quadrados. É tanta terra que só a soja, dona atualmente de 2,49% do país, ocupa duas vezes e meia o espaço que cabe ao estado de Santa Catarina inteiro. A pecuária tem sob suas patas 20,23% do território nacional. Os assentamentos da reforma agrária, 5,5%.
Olhando assim, o que se vê, por todos os lados, mesmo nos números da Embrapa, não pode ser falta de terra. Deve ser então falta daquilo que outro historiador, Capistrano de Abreu, chamou de “vergonha na cara”. Mas isso, segundo Capistrano, não é assunto para reforma do Código Florestal. Era um artigo único de um projeto revolucionário da Constituição brasileira.
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