No volante do seu caminhão, em plena curva, o Zé viu uma bela galinha avermelhada bem no meio da estrada. Pensou rapidamente: freio? Será que dá? Não freio? Uma viradinha à direita? E se a galinha também vai à direita? Uma viradinha à esquerda? E se vem outro veículo? Que faço? Mas, já era muito tarde… A galinha estava sob a roda esquerda do caminhão carregado com sete toneladas de tijolos. O Zé nem achou bom parar para se desculpar, pois não viu ninguém lá por perto, exceto o carro que em sentido contrário provavelmente flagrou a morte da galinha. Quando dez quilômetros adiante ele foi detido pela polícia local, acreditou que era coisa de rotina e resignadamente pegou a sua carteira para pagar o pedágio habitual. Mas, não era.
O problema era a galinha atropelada. A polícia tinha recebido denúncia formal do atropelamento e foi exigido pelos denunciantes, gente com influência na justiça, aplicar a legislação vigente que protege os animais contra a crueldade humana. Assim os oficiais cumpriram a sua obrigação, vistoriando o caminhão. Não foi difícil confirmar o fato denunciado com base no sangue e nas penas ainda coladas na carroceria, testemunhos indiscutíveis do crime. Como manda a lei, o caminhão e o Zé foram levados à delegacia. Lá o Zé prestou depoimento e foi informado que o seu crime implica em prisão, pelo menos até que conseguisse um habeas corpus…. O que é isso?
Até este ponto, tudo bem. O Zé deveria mesmo ter detido seu caminhão após o atropelamento da galinha e procurar seu dono para acertar o dano. E, obviamente, o Zé também pode recorrer à legislação de trânsito veicular para pedir indenização pelo susto e risco, já que se supõe que as galinhas não devem procurar comida nas estradas. Mas, como o Zé descobriu com muita surpresa e total incompreensão, ele não tinha sido denunciado pelo proprietário do plumeiro ambulante, mas, pelo casal do automóvel e a acusação não era por danos ao proprietário do bicho, porém por crueldade com a galinha.
A história do Zé, que sobreviveu à sua miséria sem ser maltratado demais no cárcere, graças a um compadre que conhecia um advogado, que conhecia um deputado que também conhecia um juiz compreensivo, não é única. A legislação sobre maltrato aos animais é tão severa que um acidente como o descrito, ou qualquer defesa levemente brusca contra o cão raivoso que a vizinha solta na rua, pode acarretar conseqüências graves para essa nova onda de delinqüentes, que são um dos subprodutos de uma legislação sui generis.
“O mais interessante da legislação vigente sobre a fauna é que ela não distingue animais unicelulares microscópicos e um animal gigante como a baleia azul.” |
A morte ou o ferimento acidental ou proposital de um animal doméstico, que pode se caracterizar como violência interespecífica é assunto tratado, por uma corrente de interpretação da lei, com o mesmo ou maior rigor que eventos intra-específicos semelhantes em humanos, ou seja, crimes hediondos. Isso, de fato, parece um pouco desproporcional mais ainda quando a delinquência, ou seja, a violência entre os da nossa espécie campeia pelas ruas e campos. Felizmente, como tantas outras leis, esta ainda é pouco aplicada, apesar dos esforços dos defensores dos direitos dos animais. Embora seja evidente que a cada dia sua aplicação é mais freqüente, desigual e confusa, já que não faz diferença clara entre o maltrato proposital, e até a tortura de animais, com o adestramento necessário ao gato que faz recorrentemente xixi na melhor poltrona da sala. A legislação tampouco aceita a eliminação dos bichos quando suas populações excedem o que é razoável ou desejável. Neste caso, diz a lei, os bichos devem ser exterminados sem dor. O que a lei não explica é o que se faz com as centenas de gatos do meu bairro, com os que eu não tenho nenhuma vinculação familiar ou laboral e cujos proprietários nem pensam em alimentá-los. Em assim sendo eles saciam seu apetite diário com os passarinhos do meu jardim, especialmente com os pintinhos dos quero- queros que nos avisam dos intrusos. E, obviamente, quando isso não é suficiente atacam o meu lixo ou invadem a minha casa disparando a alarme em plena madrugada. Já me imagino capturando humanamente os gatos e pagando uma operação de castração para cada um deles, executada em clínica com médico veterinário licenciado e assistência de um anestesista competente. Logo deverei enfrentar os processos dos donos, tristes pelos seus gatos sem apetite sexual, que sem dúvida também solicitarão que eu cubra o custo da assistência psicológica decorrente do trauma.
O mais interessante da legislação vigente sobre a fauna é que ela não leva em conta que a sua definição (na Lei N° 5197-67 ou “Lei de Proteção à Fauna” e na Lei N° 9.605, conhecida como “Lei de Crimes Ambientais”) é muito geral, não distinguindo entre animais unicelulares microscópicos e um animal gigante como a baleia azul. Isto é correto na teoria, embora crie, na prática, situações um tanto absurdas e bastante cômicas, mais ainda quando se trata da aplicação de outros textos legais que proíbem expressamente os “maus tratos, ferir ou mutilar animais silvestres ou domesticados, nativos ou exóticos” (artigo 32 da Lei de Crimes Ambientais) ou a proibição de “impedir a procriação de fauna ou a de modificar, danificar ninhos, abrigos ou criadouros naturais” (artigo 29 da mesma Lei). O artigo 37 diz que não é crime o abate em estado de necessidade, para saciar a fome do agente ou de sua família; para proteger lavouras, pomares e rebanhos da ação predatória ou destruidora de animais, “sempre que legal e expressamente autorizado pela autoridade competente” ou por ser nocivo o animal, “desde que assim caracterizado pelo órgão competente”. Ainda mais específica e geradora de dúvidas é a Instrução Normativa 08 de outubro de 2010 do Ibama, cujo artigo terceiro textualmente diz “Ficam proibidos quaisquer atos de caça de espécies consideradas pragas, que afetem a agricultura, a flora nativa ou coloquem em risco a integridade humana, sem que estudos prévios e pesquisas assim o determinem”. Este último assunto foi amplamente discutido, neste mesmo veículo, por Maria Tereza Jorge Pádua especialmente com relação aos javalis.
A aplicação textual e estrita da legislação vigente, sob situações diversas como as que se mencionam a seguir resultaria teoricamente nas seguintes conseqüências, em geral perfeitamente tragicômicas:
1. A mais óbvia que já foi mencionada é que não se pode puxar a orelha do seu cachorro, nem bater no seu gato quando fazem o que não é apropriado. Tampouco se pode usar chicote, nem esporas no seu cavalo ou égua, nem pau no seu burro. Menos ainda se pode gritar, vociferar, fazer gestos obscenos ou insultá-los de qualquer forma. Isto, embora não mate nem ocasione danos visíveis ao bicho, configura tortura psicológica. Se fizer isto é bom identificar desde já um especialista em comportamento animal para resolver os traumas que sua atitude destemperada ocasiona a seus bichinhos. Você deve educá-los e, se não tem paciência para isso, pode contratar um personal trainer.
2.Não pode machucar a palmadas ou com a paleta a moscas, mosquitos, pernilongos e outros bichos voadores, nem pretender queimar os carrapatos e as sanguessugas com o seu cigarro, tampouco pode intoxicar com álcool canforado os micuins quando eles devoram a sua perna. Lembre-se da reação negativa mundial contra o Presidente Barack Obama quando ele massacrou com premeditação e regozijada crueldade uma mosca incômoda durante uma entrevista ao vivo na CNN quando discutia o assunto das torturas aos terroristas. Mas, se ele estivesse no Brasil naquele momento, a morte da mosca presidencial teria caracterizado um crime ambiental castigado com seis meses a um ano de detenção e multa e, por ter sido cometido durante a noite a pena seria acrescentada até em 50%.
3.Do mesmo modo não se pode envenenar com inseticidas ou outros praguicidas os insetos antes mencionados, nem as baratas, ratos e outros bichos repugnantes, nem aqueles que são sociais como as formigas e os cupins que invadem sua casa. Conforme a lei todos estes animais são parte da fauna brasileira nacional ou nacionalizada e antes de usar meios de destruição em massa contra eles previamente (Lei de Crimes Ambientais e Instrução Normativa de 2010) deve solicitar que o Ibama realize os estudos condizentes para declarar estes animais pragas e, logo, receber as instruções para a sua eliminação. Os requisitos são aplicáveis a todos os casos prévios e seguintes aqui mencionados.
4. O controle da dengue, como praticado pelas prefeituras de todo o país, é um tremendo crime, pois implica destruição de ninhos, abrigos e criadouros e configura “emprego de métodos ou instrumentos capazes de provocar destruição em massa”. O Ministério da Saúde e as prefeituras de todo o país devem deter de imediato suas campanhas contra a malária, a dengue e contra os insetos que propagam estas e outras enfermidades como a febre amarela e proceder conforme para solicitar permissão específica ao Ibama para executar as campanhas de extermínio, sem deixar de lado a preparação de um estudo de avaliação de impacto ambiental que justifique a licença ambiental respectiva, levando-se em conta seu impacto em espécies da fauna que não são objeto do tratamento principal. Assim mesmo deve se multar as empresas de televisão e os jornais pela transmissão de campanhas de ódio interespecífico (ou seja, algo assim como ódio racial) e até de extermínio dos animais protegidos da fauna nacional e exótica.
5. Os problemas são ainda mais sérios para o Ministério da Agricultura e agricultores de todo o país, especialmente para os dedicados ao agro business que saturam cultivos de soja, cana de açúcar, algodão e milho (cuidadosamente denominados de commodities), com milhares de toneladas de venenos tóxicos, os quais destroem parte das pragas (sempre é bom deixar alguns vivos, para que o negócio continue). Mas sem “querer querendo” também eliminam uma ampla gama de outros invertebrados e vertebrados que não são objeto da aplicação, incluindo os que são benéficos, ou seja, os predadores e parasitas das pragas. Esses agricultores que se cuidem, pois, de acordo com a legislação são passíveis das mais duras sanções. E quiçá mereçam mesmo, mesmo que isso provoque fome no planeta.
6.Quando no mato ou no jardim da sua casa você é atacado por uma jararacuçu (1) ou por uma surucucu ou por uma onça faminta, antes de pegar o pau, seu facão ou a sua espingarda, você deve preencher o formulário especial que, para essas ocasiões, prevê a legislação e que será resolvida em Brasília, em prazo peremptório. Lá, o assunto, conforme a legislação em vigor será sujeito a ponderações sérias que provavelmente resultarão numa decisão diretorial que autoriza vossa mercê a deixar cair o pau ou o facão ou a apertar o gatilho da espingarda.
7.Lembre-se que você não pode nem deve fumar perto dos animais, pois isso pode lhes provocar câncer ou outras complicações, as que estão descritas nos maços dos cigarros que você fuma. Seus cães e gatos são mamíferos como você e têm as mesmas enfermidades. Por esse motivo é recomendável você contratar um seguro médico veterinário para seus bichinhos de estimação. Câncer é uma enfermidade muito cara.
8.Obviamente está peremptoriamente proibido caçar, embora a legislação não o proíba concretamente. Apenas os muito cruéis gaúchos, separatistas eternos, imitando os gaúchos argentinos e os cidadãos de 180 dos 198 países do mundo também caçam. Também podem caçar os índios e os caboclos da Amazônia, diz que para comer (artigo acima mencionado) e, claro, vender o que sobrar. Finalmente, pele e couros não se comem.
Felizmente, como acontece também com tantas outras pecas da legislação ambiental, as que provocariam as conseqüências mencionadas não são mais aplicadas que aquelas que proíbem desmatar em determinados lugares, invadir unidades de conservação, construir casas nos morros, fazer barulho ou contaminar os rios. Mas elas são uma espada de Dâmocles para qualquer cidadão que seja visado por algum funcionário público, quer seja de uma agência ambiental, policial ou um procurador com pretensões reais ou aparentes de ser muito estrito ou, o que é mais comum, que responda as queixas insistentes de extremistas. Extremistas esses que acreditam beneficiar a humanidade defendendo os direitos animais, como ocorreu no caso do Zé da galinha.
Salvo erro ou omissão ou confusão ou provável exagero da parte do autor desta nota (sempre útil para chamar a atenção), parece importante que a definição legal de fauna seja revisada levando em conta os fatos mencionados. É preciso diferenciar claramente entre espécies da fauna nativa e aquelas que são exóticas; assim mesmo é preciso diferenciar entre espécies da fauna (desde os micróbios até os grandes cetáceos) que são benéficas e aquelas que são prejudiciais. Neste contexto deve se definir o que é uma praga (com apoio dos setores agropecuário e de saúde) e o que é apenas um bicho molesto, lembrando que às vezes até os animais em processo de extinção podem ser pragas ou localmente daninhos.
A legislação deve caracterizar claramente que grupos de espécies da fauna nativa ou exótica podem ser combatidos sem solicitar permissão ao Ibama e em quais circunstâncias. No caso de pragas que afetam a saúde pública (por exemplo, micróbios, ratos, baratas, mosquitos e outros transmissores ou vetores de enfermidades), a agricultura (por exemplo, lesmas, nematóides, insetos e, às vezes, aves e outros grupos), as decisões sobre o controle deveriam ser tomadas principalmente pelo setor respectivo, com participação do Ibama, pois existe uma ampla zona cinza ao redor do conceito de “praga”. Por exemplo, as campanhas para eliminar macacos e morcegos, dentre outros animais considerados focos de enfermidades, podem atentar contra a sobrevivência de espécies raras e valiosas. Ajudaria muito e não é difícil de fazer, se dispor de uma lista oficial de pragas, concertada entre vários dos setores da administração pública. O Ibama é a entidade encarregada de autorizar o uso de venenos na agricultura e na saúde, devido aos seus impactos ao ambiente.
A legislação deve caracterizar claramente que grupos de espécies da fauna nativa ou exótica podem ser combatidos sem solicitar permissão ao Ibama e em quais circunstâncias. |
Também deve se diferenciar entre a fauna selvagem, a fauna domesticada e a fauna domesticada que adquire hábitos selvagens. A fauna domesticada com fins agropecuários (bois, porcos, cavalos, galinhas, etc.) deve ser regida, obviamente, pelo Ministério da Agricultura e corresponderia a esse mesmo setor se ocupar dos casos de maltrato ou crueldade que, atualmente, estão na área ambiental. A fauna domesticada doméstica (gatos, cachorros e outras espécies quase todas exóticas) não deveria ser problema do Ibama nem da alçada do Ministério do Meio Ambiente. Trata-se de assunto de ética social, que deveria corresponder ao Código Civil e cuja aplicação deveria ser puramente municipal. Isso não tem nada a ver com uma Lei de Crimes Ambientais. Os animais domésticos são, em geral, daninhos ao meio ambiente. O maltrato aos animais selvagens é sim, assunto ambiental. O caso dos animais domesticados que assumem hábitos selvagens, como o porco-monteiro, corresponde obviamente à área ambiental, porém como problemas para serem administrados em pró de bem tutelado (fauna nativa) e não como bem tutelado em si.
A confusão legal em torno ao tema é conseqüência de dois fatos: O primeiro é que aqueles que prepararam a cinqüentenária Lei de Proteção à Fauna, pensaram em termos de espécies aptas para a caça comercial, esportiva ou para alimentação, ou seja, nas espécies da fauna selvagem ou silvestre que são susceptíveis de serem caçadas. Isso aconteceu em todos os países do mundo que, na verdade, possuíam leis que regulavam a caça. Quando a preocupação pela biodiversidade apareceu e quando o setor florestal e de fauna foi integrado aos temas ambientais, muito mais abrangentes, apenas mudou-se o termo “caça” pelo de “fauna” sem considerar que o senso dos termos é muito diferente. O outro fato foi a intromissão de temas de fauna domesticada e doméstica dentro da matriz de uma legislação florestal e de fauna, fato que também é decorrente da sua inclusão na temática ambiental.
Seja qual for a origem do problema, este existe e é melhor procurar corrigi-lo antes que o Zé da Galinha fique acompanhado de muitos outros violadores e infratores de uma legislação que não previu esta evolução da sua aplicação dentro de um contexto que era, mesmo, imprevisível.
(1) Sigam o meu exemplo. Eu fui “picado” por uma jararacuçu no nosso sítio em Goiás e, ao invés de massacrá-la, estabeleci um santuário para preservar a minha intimidade com ela. Fui visitar o local por primeira vez após um mês de horríveis sofrimentos decorrentes da overdose de veneno proteolítico que ela me injetou. E ainda nem existia a Lei de Crimes Ambientais.
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