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O litoral de São Paulo é pontilhado por diversas ilhas que estavam ligadas ao continente durante as várias glaciações (ou Eras do Gelo, se preferir) do Pleistoceno, quando o nível do mar chegou a até 120 m abaixo do atual. Durante os períodos de aquecimento do clima e degelo, o nível do mar subia e os morros que pontilhavam o que era uma vasta planície costeira tornavam-se ilhas, isolando populações de plantas e animais que ali existiam. O último destes episódios ocorreu a partir de 9 mil anos atrás.
Nestes ambientes particulares muitas espécies desapareceram (mamíferos terrestres estão ausentes de muitas ilhas paulistas) enquanto outras se adaptaram às novas condições. Um destes grupos é o das jararacas, bonitas serpentes peçonhentas com um permanente ar de mau humor combinado com um meio sorriso sarcástico que, no continente, alimentam-se principalmente de roedores.
Mas foi na Ilha da Queimada Grande (a 35 km de Itanhaém) que evoluiu uma das mais notáveis serpentes brasileiras, a loira e simpática Bothropoides insularis ou jararaca-ilhoa, encontrada apenas nesta ilha.
Ali, na ausência de roedores, as jararacas se tornaram predadoras de aves, escalando as árvores e aguardando um passarinho incauto, em geral algum migrante que pousa na ilha em busca de alimento. As principais presas são a guaracava Elaenia chilensis, oriunda do Chile e Argentina e presente apenas no início do ano, o sabiá-una Turdus flavipes e coleirinhas Sporophila caerulescens. As aves são possivelmente atraídas com movimentos da cauda de cor contrastante que imita um verme ou lagarta, e mortas com um veneno cinco vezes mais tóxico para aves que o das jararacas continentais.
Veja que fantástico. Uma população de serpentes originalmente terrestres evolui para aproveitar as ondas de aves migratórias – a principal vinda da Patagônia – que surgem durantes apenas algumas semanas, ou mesmo dias, no ano. A realidade é mais incrível que a ficção.
Por alguma razão as serpentes não parecem capturar espécies residentes, como as abundantes corruíras; a dieta de passarinhos é complementada com algumas rãs, lagartos e lacraias, comida das serpentes jovens e de menor porte, e mesmo outras serpentes.
As ilhoas não são a única espécie endêmica de Queimada Grande. A minúscula perereca Scinax peixotoi também ocorre apenas ali, vivendo no interior das bromélias que acumulam água em seu interior. Aparentemente restrita aos agrupamentos maiores de bromélias, é uma espécie bastante rara. Outras espécies, como as populações locais de alguns lagartos (Mabuya macrorhyncha e Colobodactylus taunay) e anfisbenas (Amphisbaena hogei e Leposternon microcephalus) aguardam estudos mais detalhados (especialmente genéticos) para definir o quão distintos são das populações do continente.
Desde que ouvi falar nas jararacas-ilhoas e na mítica “ilha das cobras” sempre quis visitar o lugar. Para um nativo do litoral paulista que podia ver a ilha à distância em um dia claro (quem desce para o litoral pela rodovia dos Imigrantes também pode vê-la) esta sempre foi uma daquelas pendências que incomodam.
Finalmente, depois de pedidos e tentativas frustradas e mais de 30 anos de espera (ser um mamífero de vida longa tem suas vantagens), recebi o convite para me juntar a uma expedição promovida pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), através da Área de Relevante Interesse Ecológico (ARIE) Ilha Queimada Grande e Queimada Pequena e do Centro de Répteis e Anfíbios, pela organização não-governamental Projeto Dacnis e Instituto Butantan. Como ornitólogo voluntário do grupo, minha missão era obter mais informações sobre a avifauna local.
Durante a estadia a equipe encontrou diversas ilhoas. Muitas eram velhas conhecidas que receberam microchips em viagens anteriores, como parte de um estudo de monitoramento da população. Também obtivemos novas informações sobre outros grupos, como as aves e anuros. Nossa estadia foi proveitosa, embora encurtada pela entrada de um forte vento leste que quase nos deixou mais tempo que o planejado na ilha.
As ilhoas são notavelmente abundantes nos 43 hectares da ilha. Em uma visita de apenas 2 dias e meio encontramos 34 exemplares, a grande maioria no solo (elas não são tão Tarzan assim). Mas sua população não é tão grande assim, tendo sido estimada em 2.134 exemplares em 2008, ou 50 serpentes por hectare. Shedao, uma ilha na costa da China, tem 200 Gloydius shedaoensis – outra comedora de passarinhos migratórios – por hectare.
Há indicações de que a população atual sofreu um declínio significativo, e a coleta para o tráfico de animais não deve ser descartada. Pescadores locais reportam a presença regular de “pessoas estranhas” na ilha. Mas também não é impossível que a coleta de cerca de 830 ilhoas pelo Butantan desde a década de 1920 tenha afetado negativamente a demografia da espécie. Restrita a uma pequena ilha e com uma população em declínio, a simpática jararaca-ilhoa é considerada criticamente em perigo de extinção.
Neste paraíso dos ofídios o Homem é a serpente que causa os problemas. Sucessivas excursões por pescadores e outros visitantes, incluindo a construção de um farol pela Marinha no início do século passado, trouxeram espécies invasoras como o capim-gordura e o sapé. Estas se deram bem nas áreas abertas e hoje formam capinzais altamente inflamáveis que ocupam 11,2 ha da ilha (comparados a 24,9 ha de florestas).
Além de alimentarem incêndios periódicos, estes capinzais são um habitat pouco ou nada utilizado pelas espécies endêmicas. Outro aparente invasor, o arranha-gato é uma liana que sufoca as árvores alterando a composição da floresta em detrimento das capororocas Myrsine spp. e outras espécies que atraem as aves das quais as ilhoas dependem. O resultado é uma floresta de menor qualidade para as espécies endêmicas. Isto talvez justifique a grande quantidade de ectoparasitas encontrados nas jararacas e o estado caquético de algumas delas.
Sugestões deste tipo causam urticária em alguns gestores ambientais, políticos, promotores e sociedades protetoras de animais (o que explica Fernando de Noronha continuar infestada por teiús e ratos). Mas a restauração de ecossistemas é uma tendência sem volta em um mundo onde o “natural” é cada vez mais difícil de se encontrar, quanto mais de se definir.
O mar ao redor da Queimada Grande é comparativamente rico, recebendo nutrientes das descargas dos estuários de Santos e do rio Itanhaém, o que atrai cardumes de diversas espécies de peixes e seus predadores. Golfinhos-pintados Stenella attenuata são uma visão comum e baleias-de-bryde Balaenoptera edeni caçam cardumes de sardinhas sobre a plataforma continental durante a primavera-verão. Orcas são visitantes regulares.
Em um embarque que fiz em um barco atuneiro, anos atrás, o mestre me contou de tempos em que pescava tubarões com redes de deriva. A prática era ir à Queimada, arpoar alguns golfinhos e usar sua carne como isca presa às redes para atrair os tubarões. Dizem que isso não ocorre mais. Não tenho certeza.
O litoral central de São Paulo é um berçário para diversos tubarões como os cações-frango Rhizoprionodon lalandii e R. porosus, tubarões-martelo Sphyrna lewini, e galhas-pretas Carcharhinus brevipinna e C. limbatus. Estes são capturados por pescadores artesanais em redes de espera colocadas entre 2 e 12 milhas da costa, atividade que logicamente impacta suas populações, já depauperadas pela pesca de espinhel feita em águas mais profundas.
Todas estes espécies são consideradas “sobrexplotadas” ou “ameaçadas de sobrexplotação” pela Lista da Fauna Ameaçada de Extinção de São Paulo, o que equivale a dizer que estão ameaçadas de extinção. O jargão esconde a postura brasileira de considerar o que vive dentro da água como “recurso”, e não como fauna.
Os parcéis e costeiras são área de alimentação de tartarugas costeiras e mostram corais esparsos e boas populações de peixes recifais incluindo grandes predadores como garoupas Epinephelus morio e as famosas caranhas Lutjanus cyanopterus. A diversidade da vida marinha nos vários parcéis ao redor da ilha atrai mergulhadores que, no Saco das Bananas, visitam os restos do cargueiro Tocantins, um cargueiro de 115 m que naufragou em 1933. Infelizmente esta riqueza também atrai caçadores submarinos (o Youtube tem vários vídeos) que visam espécies com populações consideradas colapsadas no Estado de São Paulo como a caranha. Pesquisadores estimam que seriam necessários 14 anos sem pesca, no mínimo, para que esta espécie recuperasse sua população.
Queimada Grande, oficialmente, é uma ARIE sob cuidados do ICMBio, com sede em Itanhaém. Pesquisadores há anos propõem que a ilha e o mar ao seu redor receba um status de proteção mais elevado através da criação de um parque nacional marinho, e o processo para tal está entre as preocupações da administração da Unidade de Conservação e seu recém-formado Conselho Consultivo.
Razões para uma proteção mais efetiva não faltam tanto em terra como no mar. A conservação de ambientes marinhos é uma das grandes lacunas no sistema brasileiro de unidades de conservação, com menos de 1% de nossas águas sob proteção. Ao mesmo tempo os estoques de várias espécies de importância comercial estão em declínio por que nosso setor pesqueiro prefere minerar os mares a explorá-lo sustentavelmente.
Há consenso entre quem se preocupa com a sustentabilidade da pesca no Brasil sobre a necessidade de delimitar áreas onde a pesca seja bem mais restrita ou mesmo proibida para que populações de peixes que já se tornaram quase lenda voltem a se recuperar, como lentamente ocorre no Parque Estadual Marinho da Laje de Santos, ao norte da Queimada Grande. É deprimente que o Ministério da Pesca não se inclui neste grupo, opondo-se veementemente à criação de áreas marinhas protegidas.
Reservas marinhas onde há exclusão da pesca são, comprovadamente, um instrumento efetivo para o aumento dos estoques pesqueiros e da produção (elas funcionam como fonte de pescado que é capturado nas áreas ao redor) e deveriam ser vistas como estratégicas pelo setor pesqueiro. Um parque nacional que abrangesse o entorno da Queimada Grande é uma necessidade apontada há muito tempo. Esperamos que o parque seja criado antes que o interesse ecológico da área já não seja mais tão relevante.
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