Uma justa homenagem a Marcelo Bagno, que ajuda a aliviar a saudade
Pois é meu velho, parece que foi ontem o primeiro dia de aula na biologia, quando vi aquele sujeito de cabeça raspada, com um chapéu do Partido polonês Solidarność. Mal sabia que esse sujeito diferente iria marcar profundamente minha vida.
Éramos muito jovens, enlouquecidos pelos animais e completamente fascinados pelo Cerrado. Me lembro quando, logo na primeira semana de aula, buscamos estágio no Departamento de Zoologia. Calouríssimos, queríamos aprender tudo, acompanhar tudo, mergulhar de cabeça naquele fantástico universo da pesquisa em Zoologia, que para nós, era um admirável mundo, novo e repleto de descobertas e oportunidades.
Claro que acabamos esquecendo outras coisas, como estudar para as provas das disciplinas, especialmente daquelas que exigiam trocar dias no campo por dias na frente dos livros. As escolhas eram óbvias, assim como o resultado. E acabávamos tendo que nos matar de tanto estudar para tirar boas notas nas provas finais. Justamente as mais complicadas e marcadas no fim dos semestres, quando havia dezenas de trabalhos de campo disponíveis tirando nossa concentração.
Aprendemos muito juntos. Crescemos muito pessoal e profissionalmente durante os anos de trabalho e amizade. Você se interessou pelas aves muito cedo e, com sua incrível inteligência, capacidade de observação, memória e senso crítico, logo se tornou uma referência no assunto. Amávamos caminhar horas a fio no Cerrado. Amávamos a natureza e nada era mais importante do que isso. Solitários, diferentes, quebrados de dinheiro, não foi nada difícil iniciar uma incrível amizade. Éramos inseparáveis. Nas festas, no campo, nos momentos difíceis, rachando as despesas da casa ou acudindo um amigo, sempre contávamos um com o outro. Infalivelmente. Éramos, acima de tudo, irmãos.
Vivemos muitas alegrias, mas também vimos muita destruição nos anos de trabalho de campo, projetos e consultorias. De famílias simples, dependíamos de bolsas de estudo e do dinheiro das consultorias. Com o passar do tempo, do acúmulo de experiência e da confiança de professores e amigos, sempre acabava aparecendo algum trabalho. E precisávamos trabalhar. Testemunhamos grandes desmatamentos, inundações, estradas, linhas de transmissão, minerações… De tanto trabalhar nos lugares onde o Cerrado era destruído, acabamos criando para nós a alcunha de “profissionais do fim do mundo”, justamente aqueles que estudavam o fim de populações, de comunidades, de ecossistemas, de paisagens inteiras. E isso pesava forte em nosso espírito.
Não demoramos a perceber que estávamos fazendo parte do problema e não da solução. Que em nada adiantava trabalhar na agenda cinza da destruição acompanhada de estudos de impacto ambiental temperados com acordos políticos e interesses econômicos diversos. Queríamos lutar pela conservação do que víamos ser destruído. Buscar uma agenda positiva. Foi nessa época em que você resolveu acompanhar dois amigos em um estudo para um barramento no rio Caiapó. Seria o último, você me disse, uma oportunidade para estar com bons amigos no campo. E foi realmente o último…
Uma balsa improvisada, uma enchente inesperada, o peso do equipamento e de quatro pessoas, incluindo um barqueiro presunçoso sem salva-vidas. E também uma pessoa com o maior coração do mundo, capaz de atos incríveis, mesmo em momentos de grande comoção. A balsa virou e todos caíram no rio assustador. Os dois amigos chegaram à segurança da terra firme. Você e o barqueiro desceram correnteza abaixo. O barqueiro gritava e você, de colete, resolveu prestar socorro. Aterrorizado, o barqueiro acabou te usando como balsa. Você se afogou e o barqueiro atingiu a margem. E você se foi.
Foram 14 dias de buscas infrutíferas. Família, bombeiros, polícia, voluntários, dezenas de amigos. Tudo inútil. Nada. Acho que nunca fiquei tão destruído, física e emocionalmente, em toda minha vida. Foi muito difícil aceitar a verdade. Eu tinha perdido meu irmão querido. Eu estava novamente sozinho. A única pessoa que realmente me conhecia e me entendia, uma das poucas pessoas que eu realmente admirava, havia partido. Sem retorno. Seu corpo só foi encontrado seis meses depois, no auge da seca.
Você recebeu muitas homenagens. Virou nome da coleção ornitológica da universidade, inspirou livros. Recebeu o mérito acadêmico da Reitoria. Muita gente ficou sensibilizada com sua partida. Foi bonito de ver, de perceber o quanto você era querido e especial. Mais de uma década se passou, meu velho… E não tem um dia sequer no qual eu não me lembre de você. Do seu humor irônico e ácido, da sua disposição para ajudar, da sua humildade, dos seus conselhos, da sua sabedoria despretensiosa, da sua amizade sincera. E daquela figura magra, de sorriso largo, infalivelmente vestido com camiseta branca, calcas jeans velhas e o indefectível tênis de lona para vôlei.
Já vi muita gente sem conteúdo algum ser homenageada. Desta forma, meu velho, fico com o sentimento de “missão cumprida”, por ter te prestado essa pequena homenagem, uma pessoa que simplesmente amava os animais, o Cerrado e o trabalho de campo. Uma pessoa realmente grandiosa. Pois é, agora o simpático sapinho Proceratophrys bagnoi, endêmico do Cerrado, carrega seu nome. O nome de um amigo muito amado, de imenso caráter, coração, conhecimento e dedicação ao Cerrado. Uma das maiores pessoas que já conheci na vida e cuja amizade me falta e me faltará por toda a vida.
Saiba Mais
Veja o artigo científico que descreve o Proceratophrys bagnoi: Three new species of Proceratophrys Miranda-Ribeiro 1920 from Brazilian Cerrado (Anura, Odontophrynidae)
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Sim Reuber muita verdade Ele era uma pessoa muito especial me lembro de vcs dois inseparáveis no campos da UnB ele deixou muita saudades vi seu post num grupo de amigos do antigo CEUB :que faço parte, que também estão saudosos dele!