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A lei dos homens

As Leis promulgadas pela Assembléia Legislativa do Rio não tratam de questões ambientais. Em compensação, regulam exaustivamente inúmeras inutilidades.

16 de setembro de 2004 · 20 anos atrás

Hoje, se me fosse concedido, por um gênio saído de uma lâmpada, o direito a ter um desejo realizado, eu provavelmente pediria que ele transformasse todos os evangélicos do estado em ambientalistas. A influência desse grupo de eleitores no Estado do Rio hoje é tanta que eles já colocaram no Palácio das Laranjeiras dois governadores, e sua influência política só faz crescer.

Todos sabem – ou deveriam saber – que o Brasil é um Estado laico, em oposição a uma teocracia. O art. 1º da Constituição Federal o qualifica expressamente como um estado democrático de direito. Por esse motivo, somos governados e representados por um Presidente da República, Governadores de Estado e toda uma miríade de figuras políticas, ao invés de padres, bispos, xás ou pajés.

Nossos representantes atuam dentro de um sistema complexo de leis e normas, de menor ou maior importância, que busca regular, na medida do possível, todo e qualquer aspecto de nossas vidas. Essas normas emanam das mais diversas fontes, através do processo legislativo, que pode ser federal, estadual ou municipal.

A Constituição Federal regula esse processo, e estabelece claramente quem pode legislar sobre o que, e em que circunstâncias. Aos Estados, por exemplo, cabe, juntamente com a União, o Distrito Federal e os Municípios, proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas. São competentes, ainda, para preservar florestas, fauna e flora.

Em termos legislativos, os Estados podem editar normas sobre florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, preservação do solo e dos recursos naturais, proteção ao meio ambiente e controle da poluição, além da responsabilidade por danos ao meio ambiente. Tudo isso, como se pode ver, permite aos Estados fazer muito – praticamente tudo o que for necessário – em termos ambientais.

Para o Rio, isso poderia significar uma verdadeira bênção. Problemas ambientais não nos faltam para resolver. Condutas danosas a serem punidas existem do norte fluminense à fronteira paulista do Paraíba do Sul. Nossa assembléia legislativa, no entanto, tem dado sinais de timidez crônica quando o assunto é meio ambiente. Por outro lado, demonstra uma desenvoltura surpreendente para aprovar leis a respeito de matérias de importância, no mínimo, pouco evidente.

Pela página da ALERJ na Internet pode-se ter acesso a todas as normas promulgadas por aquela casa, além de acompanhar o andamento dos projetos de lei. Na página de leis ordinárias, que estão organizadas em ordem decrescente de data, vê-se que, até o momento, em 2004, foram promulgadas cento e vinte novas leis.

Nela existem links para o texto integral das normas e ao lado do número da lei e de seu ano de promulgação, há um resumo da matéria tratada nela. É aí que algo de estranho começa a ser percebido. As leis que tratam de matéria ambiental, mesmo que de forma indireta, não chegam a cinco.

A lei nº 4731, por exemplo, considera de utilidade pública o Projeto Araras, em Petrópolis, que busca a preservação ambiental e a melhora social da região de Araras e adjacências, na serra fluminense. A lei nº 4336, por sua vez, faz o mesmo com a Organização Cultural, Ambiental e de Saúde – OCAS, uma ONG ambientalista do Município de Bom Jardim.

A declaração de utilidade pública estadual desses projetos tem como efeito permitir que eles busquem, junto ao Senado, declaração semelhante. Caso a consigam, fazem jus ao recebimento de verbas federais. Uma boa notícia, sem dúvida, em se tratando de projetos que buscam a preservação do meio ambiente.

Foi promulgada, ainda, em 2004, a lei nº 4362, que muda o nome da Unidade de Conservação do Maciço da Pedra Branca, na Zona Oeste, para Parque Estadual Burle Marx. Nada mais faz do que homenagear o renomado paisagista. Em termos de meio ambiente, não significa qualquer modificação ou avanço.

Por fim, a lei nº 4324 estabelece diretrizes que visam a garantir a saúde auditiva da população. Tratando de medidas efetivas para reduzir a poluição sonora, poderíamos dizer que esta lei, ao contrário dos exemplos anteriores, efetivamente trata de regular matéria ambiental. Mas é um único exemplo em mais de cem.

De que trata, então, o restante das normas que entraram em vigor este ano? Curiosamente, nesse período, nossos Deputados votaram e aprovaram cinco leis que dispõem, de uma forma ou de outra, sobre matéria religiosa.

Apenas nos últimos nove meses a Assembléia Legislativa aprovou leis para criar o dia dos dirigentes de oração, para declarar a utilidade pública do projeto IDE – Integrando, Discipulando e Expandindo o Evangelho do Reino e da Congregação das Missionárias da Caridade; instituíram o dia da juventude cristã; e promulgaram uma lei para autorizar os diretores de escolas públicas a ceder espaço para encontros de casais, jovens e adolescentes de todos os grupos religiosos.

Foram criados, ainda, o dia dos museus, da Polícia Federal, da televisão, do Estado do Rio de Janeiro, das reparações, do guia de turismo, do profissional de culinária, do reboquista e, como não poderia deixar de ser, do vereador. Isso só para citar alguns.

E não pararam por aí. Foram promulgadas também leis para declarar de utilidade pública a Associação das Bandas Carnavalescas do Estado do Rio de Janeiro e para outorgar à Polícia Militar do Rio, cuja truculência é assunto diário nas páginas dos jornais, o inteiramente inadequado título de “defensora da paz e da cidadania”. E por aí vai.

Os fatos falam por si. O Estado do Rio vive um momento de profunda crise social, ambiental e de segurança. Em meio ao quadro caótico e desanimador que temos que enfrentar todos os dias, choca ver uma atividade legislativa tão demagógica e pouco consciente das verdadeiras necessidades da população como um todo, e não apenas de seus eleitores.

Por enquanto, resta esperar que Deus, comovido, nos acuda.

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