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Equívoco pré-histórico

A Constituição define o meio ambiente como bem de todos. Nem precisava. Na longa história dessas relações, nós sempre a dominamos, em vez de desfrutá-la.

15 de outubro de 2004 · 20 anos atrás

A humanidade continua se colocando frente aos recursos naturais com uma postura dominadora, apesar de todas as evidências de que esse não é o melhor caminho a seguir. O tema é um tanto batido, sei disso. Mas, como estamos num país em que o óbvio ainda precisa ser repetido à exaustão, porque ainda não pegou, vale a pena insistir no assunto.

Nosso primeiro título de propriedade sobre a Terra – com maiúsculo, mesmo – aparece nas páginas iniciais do Antigo Testamento. Deus, em pessoa, nos deu, nos primeiros versos da Gênese, a Terra, com todas as criaturas vivas que nela se encontram. Desde então, devotos e obedientes, temos reinado sobre a natureza.

Mas não se pode culpar a Bíblia por nossas atitudes. Muito antes de se inventar a escrita, os primeiros hominídeos, há cerca de 50 mil anos, já exploravam os recursos naturais de uma forma tão predatória que deixaria o mito do bom selvagem com vergonha. Se Rousseau tivesse a chance de conhecer a verdadeira história da pré-história, a literatura universal certamente teria um clássico a menos.

O biólogo Fernando Fernandez, em seu magnífico livro “O Poema Imperfeito”, traz um capítulo sobre a história da relação homem-natureza, que, inclusive, dá nome à obra. Nele, com argumentos científicos e estilo irresistível, o autor demonstra como as extinções em massa dos grandes animais pré-históricos coincidem, precisamente, com a chegada dos primeiros hominídeos à região que habitavam. Derruba, assim, a idéia de que as extinções começaram com a chegada dos colonizadores europeus à América e à Ásia. Ao contrário, prova que o extermínio de espécies inteiras é uma prática tão antiga quanto a própria humanidade.

Fernandez aponta, por exemplo, que nossos primeiros ancestrais, que passando pelo Estreito de Behring pisaram no continente americano pela primeira vez há quase treze mil anos, ficaram presos no extremo norte do continente até que o gelo das últimas glaciações se retraiu, abrindo caminho para as grandes planícies da América do Norte. O que se seguiu foi uma onda de aniquilação total dos grandes mamíferos, acompanhando a rota migratória seres humanos até o que hoje é o extremo sul da Argentina, aproximadamente dois mil anos depois.

Quando os europeus chegaram por aqui, muitos séculos depois, ficaram maravilhados com a natureza exuberante, cheia de espécies desconhecidas, que eles pensavam ser intocada e habitada por populações que conviviam em harmonia com o meio ambiente. Mal sabiam que isso era apenas o que restara de um passado muito mais rico, muito mais espetacular. Isso há mais de 500 anos.

Ele conta que o mesmo aconteceu com os ingleses, quando aportaram na Nova Zelândia. Tendo chegado alguns poucos séculos depois dos Maoris, uma tribo polinésia que “descobriu” a Nova Zelândia há cerca de mil anos, depararam-se com um rastro de destruição, de indícios de inúmeras espécies que não chegaram a conhecer, porque foram previamente dizimadas, às centenas de milhares, pelos Maoris e seus animais de estimação.

O livro faz questão, ainda, de mostrar e desmentir, um a um, os argumentos contrários à teoria de que as grandes extinções teriam sido causadas pelo fator humano em detrimento de qualquer outro. Esclarece pontos aparentemente controvertidos, como, por exemplo, por que na África as extinções relacionadas à presença humana são bem menores. Resposta: sendo o continente africano o berço da humanidade, os animais que ali habitavam tiveram tempo de aprender, com nossos primeiros, mal aparelhados e ainda rarefeitos ancestrais, que era melhor manter distância de nossa espécie. Os animais da África sobreviveram porque aprenderam a ter medo de nós.

O livro, como já foi dito, é maravilhoso. Uma das melhores e mais completas aulas de conservacionismo que alguém pode ter em português, sem necessidade de tradução. Deveria ser de leitura obrigatória para quem se interessa pelo tema. Mas esta coluna não é de crítica literária. Nem o colunista aqui tem competência para isso. O que, então, o tema tem a ver com direito ambiental? Bastante.

A legislação ambiental brasileira é, com todos os méritos, louvada com sendo uma das melhores que existem. Uma das mais completas e que oferece um número considerável de soluções e punições para questões jurídicas ambientais. Mas isso de nada serve se os aplicadores do direito não tiverem em mente as idéias certas sobre o tema. Muitos deles não têm. A culpada, em parte, por isso, pode ser a nossa Constituição Federal.

Nela há um capítulo inteiro – de um artigo só, é verdade – dedicado ao meio ambiente, e mais algumas menções honrosas espalhadas pelo texto. O artigo 225, do meio ambiente, no entanto, peca em alguns aspectos. Seu caput, acima de tudo, é mais bíblico do que seria aconselhável. Nele o meio ambiente é colocado como “bem de uso comum do povo”. Mais uma vez, parece que nos é dada a propriedade sobre a natureza. A todos nós.

Não deveria ser assim. Aqueles a quem cabe interpretar e aplicar a lei devem dar maior importância ao restante do artigo, que trata o meio ambiente como ele merece, como essencial à sadia qualidade de vida, um direito de todos, das presentes e futuras gerações. No mínimo, como no anúncio dos relógios Patek Philip. Aquele que diz: “Você nunca possui de verdade um Patek Philip. Apenas toma conta dele para a próxima geração”. O meio ambiente não nos pertence. Não deve ser preservado para a humanidade. Mas por si mesmo, para a vida em geral. A nossa, sem dúvida. Mas também a de todas as espécies que coabitam o planeta.

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