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No carro ou na panela

Um engenheiro do Paraná anda há anos com veículos movidos a óleo vegetal, driblando a polícia e o governo, que nada faz senão atrapalhar suas pesquisas.

18 de fevereiro de 2005 · 20 anos atrás

O engenheiro mecânico Thomas Renatus Fendel rumava da cidade de Rio Negro, no Paraná, para Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, a caminho do Fórum Social Mundial – onde daria uma palestra sobre bioenergias – quando, na divisa entre os dois estados, encontrou um forte aparato militar e policial, às voltas com os Sem-Terra, próximo à cidade gaúcha de Vacaria. Atravessou o bloqueio policial sem problemas, mas foi parado, logo adiante, por um carro da Polícia Rodoviária Federal, que o seguira. Na hora, apreenderam-lhe o veículo, o computador, um gerador, ferramentas e 90 litros de óleo vegetal, entre outras coisas. Tudo por que um patrulheiro estranhara o ronco do motor da camionete de Fendel, Chevrolet Suprema, normalmente movida a gasolina, mas adaptada para rodar com óleo de soja.

Há mais de um ano, Fendel vem tentando homologar o carro junto às autoridades, mas não consegue. Já perdeu as contas de quantas pessoas e órgãos visitou, incluindo muitas idas a Brasília. A resposta é sempre a mesma: o carro não pode ser homologado. Não que seja perigoso, imprevisível ou algo do gênero. Simplesmente porque é diferente e o Brasil, do alto de sua burocracia, não sabe o que fazer com ele. Enquanto isso, o veículo continua recolhido aos depósitos do Detran. E deve ir a leilão.

O carro apreendido não foi o primeiro a ter esse destino. Há algum tempo Fendel teve apreendido um caminhão, também movido a óleo de soja. O dono fez questão de beber o combustível para provar que é mesmo óleo de soja. Com o caminhão, rodara mais de seis mil quilômetros. Antes dele, teve outro carro que usou por mais de vinte e cinco mil quilômetros. “Eles só precisam ter um motor diesel, adaptado para rodar com óleo vegetal. O desempenho, assim como o consumo, é cerca de 10% maior do que o do motor a diesel comum”, afirma. “As emissões também são menores e o óleo vegetal permite a instalação de catalisadores – que transformam grande parte dos gases poluentes em vapor d’água –, o que o diesel não permite, por conter enxofre”, complementa.

Como se pode notar, as bioenergias são um tema que o acompanha há muito tempo – cerca de vinte anos – e pelo qual ele é inteiramente fascinado. Na faculdade, projetou e construiu um carro movido a lenha e já escreveu até um livro sobre o tema, que está disponível, grátis, na sua página na internet. Hoje ele defende o uso de álcool e de biogás – proveniente do lixo – como combustíveis menos poluentes, e critica a “febre do hidrogênio” – que considera “muito pouco eficiente e caro em termos energéticos”. E explica: “ Se considerarmos a mesma quantidade de hidrogênio e de madeira, esta tem mais energia armazenada do que aquele. Além disso, para gerar energia o hidrogênio tem que ser comprimido a uma pressão de 700bar ou resfriado uma temperatura próxima do zero absoluto (-273º K). É muito complicado.”

Na Alemanha existem, atualmente, cerca de vinte mil veículos movidos a óleo vegetal circulando. Rudolf Diesel – o inventor dos motores diesel – rodava pelas ruas de Munique com um carro movido a óleo de amendoim já em 1897. Os carros de Fendel, portanto, não são nenhuma novidade. Mas, em tempos em que o seqüestro de carbono está na moda, seria interessante voltarmos a prestar atenção neles. Segundo Fendel – numa tese que ele mesmo afirma defender contra boa parte do mundo – as bioenergias são boas seqüestradoras de carbono e não neutras, como se costuma crer. Ou seja, elas efetivamente retiram dióxido de carbono da atmosfera.

Restam, portanto, como sempre, muitas perguntas sem resposta. Se os carros movidos a óleo vegetal têm tantos benefícios, por que é impossível homologá-los? Por que ninguém fala deles como uma alternativa viável e ecologicamente melhor? Por que o governo não investe no seu desenvolvimento? Por que não criamos meios de ao menos permitir que alguém se interesse pelo assunto e o pesquise, desenvolvendo a tecnologia? Das duas uma: ou a legislação brasileira precisa ser aprimorada nesse sentido ou são os responsáveis pela sua aplicação que têm que ser modernizados. Não é preciso procurar a resposta para essas perguntas. O combustível vegetal foi uma das vedetes oficiais da delegação brasileira na conferência sobre mudanças climáticas em Buenos Aires.

Além dos carros, Fendel também criou geradores movidos a óleo vegetal capazes de gerar 2MW/h de energia, que ele usa em casa simplesmente ligando na tomada. Quando não há nenhum aparelho ligado, o gerador efetivamente injeta essa energia na rede elétrica da cidade de Rio Negro, um excedente que ele vem tentando, também sem sucesso, vender à concessionária local de energia. Como se pode imaginar, os investimentos feitos não são pequenos. Quando Fendel leu que o Governo Federal gastara 100 mil reais para criar um centro de pesquisas de bioenergias em Piracicaba, riu. É muito menos do que ele já gastou com suas pesquisas. Quando, em setembro do ano passado, um acidente de trem despejou óleo vegetal num rio de Mafra, em Santa Catarina, Fendel comprou dois mil litros de óleo das sobras recuperadas. Com elas, até a apreensão, tocava seu carro e seu gerador.

Enquanto o Brasil não deixar Fendel andar com o seu carro – simplesmente porque no documento, no campo do combustível, se lê “gasolina” e não “óleo vegetal” – ele vai continuar levando adiante sua microindústria de máquinas feitas sob encomenda. Tudo porque ele não fez como o brasileiro Alberto Santos Dumont, que um século atrás foi inventar o avião em Paris, onde as autoridades toleravam até que suas máquinas feitas em casa caíssem no telhado da prefeitura.

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