A Escola Superior do Ministério Público da União acaba de editar um trabalho que consiste na compilação das deficiências encontradas com mais freqüência no “Licenciamento de Grandes Empreendimentos”, pelo grupo de trabalho constituído por membros da 4ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal – Meio Ambiente e Patrimônio Cultural. São experiências adquiridas pelo grupo na avaliação de Estudos Prévios de Impacto Ambiental e Relatórios de Impacto Sobre o Meio Ambiente — EIA/RIMA — para “subsidiar a atuação de Procuradores da República em inúmeros procedimentos administrativos e judiciais, referentes a empreendimentos dos mais diversos gêneros”. Em síntese, o trabalho apresenta um quadro do que se faz de mais errado em termos de avaliação e prevenção de impactos ambientais quando do licenciamento de grandes empreendimentos. Se tivesse sido aditado mais cedo, poderia ter evitado, por exemplo, a fraude levada adiante pelos construtores da Usina Hidrelétrica de Barra Grande ou, pelo menos, levado à assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta mais eficaz. Ainda assim, antes tarde do que nunca.
O trabalho começa por apresentar um brevíssimo histórico sobre as origens e a evolução da avaliação de impacto ambiental no Brasil. Em seguida fala, também de forma rápida, sobre o Termo de Referência, que define como “um roteiro com a delimitação dos recortes temáticos a serem contemplados nos estudos e avaliações de impactos de um projeto em particular”. Sua exigência ocorre, basicamente, em processos cujo licenciamento cabe ao Ibama ou a alguns órgãos estaduais. Destina-se, basicamente, segundo o trabalho, a garantir que o estudo de impacto ambiental não atenda apenas às disposições genéricas contidas na Resolução Conama 001/86, mas às características particulares de cada empreendimento e de cada região. Com ele, pode-se definir a equipe multidisciplinar mais capacitada a trabalhar na elaboração do EIA/RIMA de um determinado empreendimento, assegurando-se assim a maior preservação ambiental possível.
No capítulo seguinte, no entanto, é que o tema principal começa a ser abordado de fato. As deficiências apresentadas pelos EIA/RIMAs analisados — 80 no total, todos de grandes empreendimentos — são apresentadas, uma a uma, juntamente com as suas causas mais comuns. Assim temos, por exemplo, em primeiro lugar, as deficiências ocorridas no atendimento aos Termos de Referência. Segundo o trabalho, na maioria dos casos em que é elaborado um desses termos, o Estudo de Impacto Ambiental não realiza as pesquisas necessárias para atendê-lo adequadamente, ou simplesmente o ignora ou, ainda, o órgão licenciador empurra as suas recomendações para etapas posteriores do processo, quando muitas vezes já não podem mais surtir o efeito desejado.
Esse é apenas um caso, entre muitos. No fim das contas, a impressão que fica é a de que devem ser realmente raros os processos de licenciamento capazes de alcançar plenamente os efeitos pretendidos pela nossa legislação. Para que se tenha uma idéia, apenas nos 80 empreendimentos cujos EIA/RIMAs foram submetidos à analise ao Grupo de Trabalho do MP, constatou-se que esses estudos omitem dados relevantes sobre a fauna, a flora, a topografia, a hidrologia e sobre praticamente todos os aspectos relevantes das áreas que estudam. Há falhas, ainda, na escolha da metodologia utilizada; na identificação da zona de influência dos impactos causados pelo empreendimento, ou por suas partes; na correta identificação dos possíveis impactos de médio e longo prazo; na coleta de dados; na atualização de informações; e na análise das condições meteorológicas locais e de suas influências sobre o impacto causado pela obra, entre outras. A lista é grande.
Outro ponto importante é que os estudos, quase sempre, contrariando disposição expressa da Resolução Conama 001/86, deixam de apresentar alternativas viáveis — ecologica ou economicamente — à realização do projeto. Em um dos processos de licenciamento que passaram pelas mãos do Grupo de Trabalho, a sugestão de mitigação dos impactos causados por uma usina termelétrica foi a utilização de água de um reservatório que, em época de estiagem, já apresentava déficit hídrico. Em outro caso — um projeto de irrigação — a sugestão de medida mitigatória para a contaminação da água subterrânea por agroquímicos foi o simples monitoramento, o que, como bem aponta o trabalho, “não é capaz de reverter o dano à potabilidade da água.”
Vale mencionar, ainda, como faz o trabalho do MP, que há casos em que, após a elaboração do Estudo Prévio de Impacto Ambiental — o EIA da dupla EIA/RIMA—, o Relatório de Impacto Sobre o Meio Ambiente — RIMA — é redigido em uma linguagem exageradamente técnica e ininteligível para a população em geral. Dessa forma, fica prejudicada uma de suas principais funções, que é tornar públicas as informações colhidas pelo durante a elaboração do EIA, excluindo-se a população do processo de licenciamento. Dessa forma também abrem-se as portas para todo tipo de fraude e irregularidades. Vale lembrar, aqui, que todas essas trapalhadas e distorções forma detectadas em processos de licenciamento de empreendimentos de grande porte, que teoricamente recebem muito mais atenção da mídia e do público. Tendo isso em mente, dá para se ter uma idéia de como são conduzidos os processos de licenciamento de obras menores.
Além de deficiências criadas pela incompetência ou desonestidade humana, o trabalho aponta outras decorrentes de questões mais sérias e que ainda vão precisar de uma boa dose de discussão e ajuste para deixar de atrapalhar os processos de licenciamento. A primeira delas é a falta de tempo para a realização de cada todos os estudos, medições e coletas necessários para a produção de um EIA completo. Basta mencionar que, em circunstâncias ideais, as condições ecológicas de uma determinada área devem ser analisadas durante um ano inteiro para que se evite mascarar o resultado do levantamento com distorções sazonais. Até aí, nada de mal, a não ser o fato de que uma demora dessa magnitude pode inviabilizar a maioria dos projetos que supostamente serviria para licenciar. Nesse caso, o trabalho desenvolvido pelo MP destaca que o risível investimento que os governos brasileiros destinam à pesquisa, já há muitas décadas, faz com que a maior parte da bibliografia existente sobre temas ambientais esteja desatualizada. Ou seja, os estudos de impacto ambiental acabam fazendo o papel, muitas vezes, de verdadeiras teses de doutorado, por falta de fontes para a consulta.
Há, por fim, o problema do peso que ainda se dá ao fator econômico na hora de ponderar as perdas e ganhos decorrentes de um determinado empreendimento. No próprio caso de Barra Grande viu-se muito bem isso. Uma das justificativas para validar o ato inteiramente ilegal da construção da barragem usou o argumento — sem fundamentação, diga-se de passagem — de que aquela obra traria para a região benefícios econômicos que superavam os danos ambientais. Dificilmente. Mas enxergar esse tipo de coisa depende de uma mudança profunda nas visões ambientais do Judiciário e da população em geral. Enquanto isso, ao menos o MP tem agora uma cartilha sobre como se prevenir contra novas tentativas de embuste ambiental.
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