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Os verdes contra Mickey

Há cerca de quarenta anos, uma das mais importantes batalhas judiciais sobre o meio ambiente colocou frente a frente Walt Disney e uma ONG ambientalista.

19 de agosto de 2005 · 19 anos atrás

Desculpem-me se esta coluna ficar um tanto mais extensa quanto é de costume, mas a história que ela traz é boa demais para não ser contada em seus muitos detalhes.

Trata-se de uma batalha judicial, iniciada em meados dos anos 60 e que durou quase 20 anos, nos Estados Unidos, entre ambientalistas e diversos figurões políticos e agências governamentais, pela construção de um complexo turístico em um vale que hoje faz parte do Sequoia National Park, na Califórnia. Este seria o processo em função do qual a Suprema Corte dos Estados Unidos declararia a capacidade de entidades ambientalistas para defender, em juízo, a preservação do meio ambiente. A história é contada no livro Wild by Law, editado pelo Sierra Club — hoje Earthjustice —, uma ONG ambientalista norte-americana.

Tudo começou em 1949, quando o U.S. Forest Service (Serviço Florestal americano) decidiu atender às necessidades da crescente massa de esquiadores abrindo novas áreas para a prática do esporte. Depois de alguma busca, foi decidido que o melhor local para a implementação de uma nova estação de esqui seria um vale distante da Sierra Nevada, na Califórnia, chamado Mineral King valley. Iniciou-se, então, um processo de concorrência pública para atrair interessados em investir os US$ 3 milhões necessários para o empreendimento.

O complexo a ser construído teria, no mínimo, acomodações para 100 pessoas, cerca de 2 quilômetros de teleféricos e serviços de transporte de passageiros do vale até a cidade mais próxima. Chamado a se manifestar, o Sierra Club, uma entidade ambientalista local, deu parecer favorável ao empreendimento nos moldes propostos. Não obstante, não surgiram interessados, em grande parte por causa do dificílimo acesso ao vale, que exigiria um investimento de grande monta e, ao que tudo indicava, cheio de entraves burocráticos.

A idéia parecia ter sido enterrada até que, em 1961, foi descoberto que Walt Disney – ele mesmo, o pai do Mickey e do Pato Donald, membro honorário do Sierra Club e esquiador – estava comprando todas as terras que podia em no Mineral King Valley. Os empregados de Disney estudavam o vale para se certificarem de seu potencial enquanto estação de esqui, ao mesmo tempo em que membros do Sierra Club, preocupados com toda aquela movimentação, começavam seus próprios estudos sobre a flora e a fauna locais, para verificar o impacto causado por um eventual empreendimento de grandes proporções.

Em 1965, as ofertas recomeçaram, desta vez exigindo acomodações para mil pessoas, teleféricos para 2 mil pessoas por hora e estacionamento para 1.200 carros, entre outras coisas e com a promessa de que o Estado da Califórnia investiria cerca de US$ 30 milhões na construção e recuperação das estradas de acesso ao vale. Desta vez, o Sierra Club opôs-se ao projeto, alegando que seria necessária a realização de uma nova audiência pública, já que a anterior havia sido há mais de uma década.

Naquele mesmo ano, a proposta de Disney foi declarada vencedora. Segundo os planos apresentados, o ambicioso complexo turístico custaria US$ 35 milhões e modificaria o vale por completo. Haveria dezenas de quilômetros de teleféricos, com capacidade para mais de 11 mil pessoas por hora, acomodações para 3 mil pessoas e um estacionamento subterrâneo para 3.600 carros. A licença temporária de planejamento para três anos foi expedida pelo Forest Service em 1966. Walt Disney faleceu dois anos depois.

O maior problema passou a ser, então, a construção da estrada, que teria que atravessar o Sequoia National Park, causando um gigantesco estrago e contrariando a legislação da época, que já proibia obras de ampliação em estradas que cortassem parques nacionais exceto quando feitas em benefício dos visitantes do próprio parque. Não era o caso. O que se pretendia era ampliar o acesso ao vale além do parque, que viraria apenas passagem para mais de mil carros por hora, razão pela qual o Departamento do Interior dos EUA negou-se até o último momento a autorizar as obras dentro do parque. Mas teve que ceder às pressões políticas do governador da Califórnia e até do próprio Presidente da República.

Em janeiro de 1969, o maior entrave para a construção havia sido removido e o projeto de Disney foi finalmente aprovado. Não restava outra saída ao Sierra Club a não ser levar o caso para os tribunais. Mas isso era arriscado.

Aqui, cabe um parêntese para uma breve explicação jurídica. Um dos pressupostos para o processo judicial, tanto aqui quanto nos EUA, é que as partes litigantes tenham interesse na resolução de um determinado conflito pelo Judiciário. Por exemplo, se A e B assinam um contrato e B deixa de cumprir com as obrigações assumidas, uma terceira pessoa, C, não pode ajuizar uma ação judicial para compeli-lo a honrar seus compromissos a menos que consiga demonstrar que foi, de alguma forma, prejudicada pelo inadimplemento de B. Caso contrário, apenas A pode fazê-lo. Nos EUA dá-se a esse interesse o nome de “standing to sue” e, até meados dos anos 60, as cortes federais rejeitavam qualquer tentativa de entidades conservacionistas de levar a juízo demandas ambientais, sob o argumento de que o standing to sue dependia da demonstração de efetivos danos a interesses econômicos dessas entidades, o que elas não eram capazes de associar à degradação ambiental.

Mesmo assim, em 5 de junho de 1969, o Sierra Club, assistido gratuitamente por jovens advogados, ajuizou um processo contra o empreendimento de Disney, pedindo uma ordem judicial que parasse imediatamente as obras até que o processo fosse julgado em seu mérito. O caso foi parar nas mãos do juiz William T. 

Sweigert, que não tinha qualquer experiência em demandas ambientais mas era conhecido por sua ousadia (para que se tenha uma idéia, ele certa vez proferiu uma decisão na qual declarava a guerra do Vietnã inconstitucional).

O pedido do Sierra Club baseava-se em três pontos: a estrada que levaria ao vale era ilegal, porque contrariava frontalmente a norma que proibia este tipo de obra em estradas que cortassem parques nacionais; a concessão das terras públicas violava as leis vigentes, tanto na extensão quanto na duração do empréstimo; e a própria obra violava o vale, que desde 1926 era um Refúgio de Vida Silvestre.

Em sua petição inicial, o Sierra Club fazia um apelo emocionado para que lhe fosse concedido o standing to sue. Segundo seus argumentos, se uma entidade cuja principal finalidade é a preservação do meio ambiente não pudesse ir a juízo pleitear em nome dos recursos naturais, quem poderia? Quem poderia defender as terras públicas, de valor inestimável, de políticos inescrupulosos que as vendem por dinheiro, em frontal desobediência à lei? Os argumentos convenceram o juiz 

Sweigert, que deferiu o pedido de congelamento imediato das obras até o julgamento final da causa.

A causa ganhou as primeiras páginas dos principais jornais do país e forçou o Forest Service, representado pelo Departamento de Justiça dos EUA, a apelar para a corte de recursos da Califórnia, alegando a falta de standing to sue do Sierra Club e pedindo que a decisão de Sweigert fosse derrubada e as obras levadas adiante. O grupo Disney, por outro lado, não se envolveu diretamente na demanda judicial, preferindo não arriscar ficar mal com a opinião pública e contratar como assessores pessoas reconhecidamente envolvidas com a questão ambiental, incluindo um ex-presidente do Sierra Club.

As audiências do processo começaram em fevereiro de 1970 e duraram quase dois meses. Sete meses depois, por dois votos a um, a corte de apelações derrubou a decisão de 

Sweigert e autorizou o prosseguimento das obras. Em sua decisão, os juízes declararam que o Sierra Club não demonstrara satisfatoriamente o seu interesse processual ou os danos que sofreria com a construção da estação de esqui. Em suma, eles negaram que o clube tivesse o necessário standing to sue, rejeitando, também, os demais argumentos da entidade. O Sierra Club, por sua vez, não desistiu. Anunciou imediatamente que levaria o caso à Suprema Corte e convenceu os juízes da Califórnia a manterem a decisão de

Sweigert até que a corte superior decidisse sobre o caso, já que, caso as obras fossem iniciadas, os danos causados seriam irreparáveis mesmo que ele ganhasse a demanda.

Nesse momento, ambas as partes ganharam reforços de peso. Associações de esquiadores passaram a apoiar judicialmente a tese desenvolvimentista, de olho na realização das obras. O Sierra Club, por sua vez, recebeu o apoio fundamental de diversas entidades ambientalistas, que peticionaram lembrando aos juízes o estreito relacionamento do clube e de seus membros com o Mineral King Valley — e os danos da construção — o que fortalecia e muito, aos olhos do Judiciário, o seu standing to sue.

A audiência na Suprema Corte aconteceu em novembro de 1971. Aqueles que defendiam o empreendimento afirmavam que se fosse reconhecido o standing to sue ao clube, as cortes americanas receberiam uma verdadeira enxurrada de causas formuladas por quem quer que afirmasse ter algum interesse em qualquer demanda. Os ambientalistas, por outro lado, afirmavam que o que estava em discussão não era o direito de qualquer um pleitear qualquer coisa em juízo, mas a necessidade de se estabelecerem critérios melhores para avaliar o interesse processual de entidades e organizações. Além disso, afirmavam que se o Sierra Club, cuja relação com o Mineral King era indiscutível, não pudesse defendê-lo em juízo, ninguém poderia.

A decisão final da Suprema Corte saiu em abril do ano seguinte, mantendo a decisão da corte estadual e derrubando a liminar concedida pelo juiz Sweigert. Os desenvolvimentistas venceram por 4 votos a 3. Mas a decisão da Suprema Corte não foi, de forma alguma, uma derrota para o meio ambiente. A decisão fundamentava-se no fato de que a petição inicial do Sierra Club não mencionara, expressamente, o interesse particular do clube ou de seus membros na preservação do vale. Ou seja, um detalhe havia separado a vitória da derrota. Um detalhe que poderia ser corrigido facilmente.

No que o livro chama de “uma das mais famosas notas de rodapé da jurisprudência ambiental”, um dos juízes da Suprema Corte afirma que a decisão não impedia que os autores da demanda buscassem, junto ao juiz Sweigert, emendar a sua petição inicial para reiniciar a demanda. Ou seja, mesmo com a derrota, o Sierra Club havia conseguido levar a Suprema Corte dos Estados Unidos a repensar e rever seus conceitos acerca do standing to sue. Em seu voto, Blackmun, um dos juízes da Suprema Corte, questiona se as leis “deveriam ser rígidas e nossos conceitos procedimentais tão inflexíveis que nós fiquemos sem saída quando nossos métodos existentes e nossos conceitos tradicionais (…) mostrem não ser inteiramente adequados para questões novas?”. As coisas, evidentemente, começavam a mudar.

Não demorou até que o clube buscasse o juiz Sweigert para pedir a correção de sua petição inicial, incluindo como autores nove freqüentadores assíduos do vale e citando o recém-aprovado National Environment Policy Act, que obrigava os órgãos governamentais a fazer uma espécie de estudo de impacto ambiental prévio para quaisquer empreendimentos federais capazes de afetar de maneira significativa a qualidade de vida humana. Uma nova decisão obstando o andamento das obras foi concedida sem dificuldades. Mas a batalha judicial estava longe de acabar.

Em janeiro de 1973, foi realizado e divulgado o estudo de impacto ambiental exigido pela nova legislação. Mais de 4.400 pessoas, 14 agências federais, seis agências estaduais e 35 organizações privadas manifestaram-se sobre o documento, a maioria em críticas ásperas. A opinião pública estava em massa contra o empreendimento. Em 1975, Mineral King era a maior causa ambiental do país. O Forest Service ainda queria a obra, mas a Disney já olhava com outros olhos os riscos que ela representava para a sua imagem.

O projeto foi reduzido e um novo estudo de impacto ambiental realizado, mas o empreendimento já perdia forças, até que foi completamente deixado de lado em 1978.

Terminava assim, também, o caso que abriria as portas para as entidades ambientalistas litigarem em nome do meio ambiente não só nos EUA, mas no mundo todo.

Em outubro de 1978, Mineral King Valley foi, finalmente, incorporado pelo Sequoia National Park.

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